Conceito usual
O conceito usual — está em vários compêndios — de gaslighting é que se trata de uma forma de abuso psicológico em que informações são distorcidas, seletivamente omitidas (ignoradas) ou inventadas fazendo a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.
Um tipo comum de gaslighting é o gaslighting médico. O paciente conta seus sintomas e o médico ignora. Pior: não pede exames. Descuida. Induz o paciente a erro. Resultado: a piora ou a morte do infeliz.
Espere um pouco e já verá meu objetivo! Recém cheguei na oitava linha. O padrão de paciência do leitor médio é de 15 linhas. Arriscarei e escreverei 78.
Gaslighting jurídico
É o seria, então, o gaslighting jurídico? É como a angústia. Difícil ou impossível de explicar. Mas tentarei.
É aquele aperto no peito do causídico…!
Pensemos assim. O advogado ingressa com ação. Cita, na forma do artigo 489 do CPC (ou 315 do CPP) um precedente ou súmula que lhe dá razão. É um elemento objetivo a seu favor. Pela lei, cabe ao juiz dizer que ele não tem razão (inciso VI).
Todavia…
Quando o judiciário ignora os “sintomas”
O judiciário ignora os “sintomas”. Ignora o que foi alegado. O advogado ingressa com embargos (como um paciente que mostra caroços no seu corpo) dizendo que houve omissão, etc.
E aí vem a decisão: “nada há a esclarecer”.
Ou “a parte deseja rediscutir o mérito”.
Ou “o juiz tem livre convencimento e por isso não necessita responder aos argumentos da parte, se já está convencido do resultado” (Tema 339 do STF).
O gaslighting jurídico também pode ser detectado (ou sentido) quando a decisão possui erro crasso (digamos, assim, um desacordo empírico que qualquer leigo detectaria) e o causídico ingressa com embargos de declaração. Na medicina seria algo como o paciente chegar com pressão alta, taquicardia, tossindo e o esculápio não fazer as medições e receitar paracetamol (meu cunhado morreu assim). Um piloto de automobilismo morreu assim no RS, recentemente. Ficou três horas esperando no hospital. Tudo indicava fraturas internas. O gaslighting médico o matou.
De como o gaslighting jurídico aniquila direitos
É desse modo que o gaslighting jurídico ceifa direitos todos os dias. Ignorar claros limites semânticos também é jus gaslighting.
Dois juristas que foram ao “médico” com sintomas…
Por exemplo, Juarez Tavares e eu fomos “ao médico” em 2008 para dizer que “o artigo 212” do CPP dizia que… Mas ninguém seguiu “o protocolo”.
Somente recentemente os “médicos” dos tribunais “descobriram” a doença que estava no “CID 212-CPP”. Vejo que, recentemente, por voto do ministro Sebastião Reis, que o STJ avança na “juscirurgia”, deixando assentado que o prejuízo, tantas vezes exigido como ônus do réu por meio do infame pas de nullité sans grief, agora é exatamente aquilo que Juarez e eu (e André Karam Trindade) apontávamos como sintomas há tantos anos: é presumido. Lembro de um HC do STF em que a prova toda foi produzida pelo juiz. Condenação de nove anos. Habeas negado com base no pas de nullité… O que se diria a esse paciente (nos dois sentidos da palavra, a levar em conta minha metáfora) agora?
Ou seja, quantos “morreram” nesses anos?
Pior: o gaslighting era tamanho que Juarez e eu passamos por chatos, para dizer pouco. Como fazem com o gaslighting afetivo. Compreenderam a metaforização do jus gaslighting? Juarez e eu sofríamos já então de gaslighting emotivo.
A manipulação dos “sintomas”
O gaslighting jurídico é a manipulação do próprio direito para dizer que não se tem direitos.
É o direito contra o direito usado por aqueles que, como o pombo enxadrista, derrubam as peças, o tabuleiro, e saem de peito estufado cantando vitória.
O problema? O gaslighting jurídico é tão arraigado que é capaz de criar torcida…pelo jus gaslighting.
“Há direitos demais”, “o país da impunidade” e quejandos. É o direito contra o direito.
De que modo o pobre do utente convence o médico…ou… o judiciário… De como o reitor Cancellier sofreu e morreu por jus gaslighting
Provar que um esculápio fez gaslighting é tão difícil quanto provar que houve jus gaslighting.
Medicina é coisa séria e deve evitar a prática de gaslighting. Isso pode matar.
O jus gaslighting mata direitos (por vezes, tira vidas), e o direito, por ser também coisa séria, deveria criar mecanismos para vedar a prática.
Já vimos, mais de uma vez, que pode matar literalmente. Quem não se deixa manipular pelo discurso oficial sabe do que falo. O reitor Cancellier vive em memória para denunciar o gaslighting jurídico.
Post scriptum: por falar em médicos e advogados, repito a pergunta que faço há mais de 20 anos:
– Você se operaria com um médico que estudou cirurgia em livros como “Cirurgia Cardíaca Desenhada”?, “Manual Mastigado de Cirurgia”? “Cirurgia Estudada na Sombra e Água Fresca”? “Resumo do Resumo da Cirurgia de Cérebro”? “Seja f… em Cirurgia do Fígado”? “Anatomia Tuitada”? Ah, não?
Pois no direito pode? Parece que sim. Para quem acha que depois do “Seja F…” e “Direito Constitucional Desenhado” nada mais surgiria na área jurídica, agora apareceu o “Manual Caseiro de Direito Tributário”. Pronto.
Depois nos queixamos dos embargos.
Logo, logo, o Instituto Universal Brasileiro (lembram do velho IUB?) assumirá a coordenação da área jurídica do MEC. Na inscrição, ganha um kit de montar e desenhar. Algo como “Faça você mesmo a sua lei em casa” e “Os cinco passos para escrever seu próprio manual de direito facilitado”…!
Post Scriptum 2: Palestra hoje, quinta-feira (15/9), presencial na Estácio — auditório — na Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Minha terceira palestra presencial pós-pandemia!
O tema será “O que é isto — a hermenêutica jurídica“. Estarão comigo na mesa os professores Eduardo Val e Luã Jung a partir das 18h30. Claro: também falarei do jus gaslighting e do Dicionário Senso Incomum que está no prelo! Jus gaslighting é um dos verbetes.
Por Lenio Luiz Streck do ConJur