‘O quarto poder do CAB: centro administrativo é a meca dos ebós’
Por João Gabriel Galdea, do jornal Correio da Bahia
O verde que abraça e ocupa as brechas entre as sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário estaduais, no Centro Administrativo da Bahia (CAB), em Salvador, também abre caminhos para um espaço de poder sagrado, colocando o bairro no comando dos nossos destinos tanto no plano físico, tangível, quanto no espiritual, divino. É nisso que creem muitos religiosos da umbanda e principalmente do candomblé que, orientados por seus sacerdotes, tornaram uma das áreas mais movimentadas da capital – epicentro político e paraíso natural – no mais visível e acessível ponto de colocação de ebós, as oferendas dedicadas aos orixás que costumam carregar anseios de limpeza e equilíbrio, embora no local predomine a busca por elementos mais concretos ou resolutivos.
Mas o que faz do CAB esse destino preferencial para parte dos encantados? Segundo Nilo Cerqueira, pesquisador do culto a Exu – um dos orixás mais “requisitados” entre os que buscam, por exemplo, abrir os caminhos –, o fato de ser um oásis verde não é o único atrativo ao sagrado por ali.
“O candomblé é uma religião que tem por filosofia a integração com a natureza, também por considerar que há força nesses espaços. E onde é possível arrear um ebó num mato em Salvador? Tá tudo tomado de prédio. Além disso, existem inúmeros locais que são utilizados para que a mensagem possa ser enviada. No entanto, é necessário que exista um nexo entre o que está contido na mensagem e o destinatário, e o objetivo da mensagem, com a provável resposta”, pontua ele, antes de explicar que o CAB também “concentra espaços de decisão, movimento intenso de pessoas, encruzilhadas, ou seja, que dialogam com inúmeras demandas que as pessoas buscam resolver em suas vidas, buscando esse apoio nos orixás”.
Essa proximidade com o poder e os fluxos característicos de um local de passagem também são elementos destacados pelo presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro, como forma de explicar essa predileção.
“No momento que a gente vai no jogo [consulta oracular], para obter a resposta espiritual de qual ebó vai ser feito, ali também já nos é revelado o local onde deve ser arriado ou realizado aquele ebó. Pode ser na beira de uma lagoa, de um rio, ou numa mata, numa estrada, mas normalmente os ebós para atrair bons negócios, para fazer com que a riqueza circule e a gente faça bom uso, às vezes se escolhe ou é revelado um local de muito movimento, e também onde é palco de grandes decisões”, menciona Leonel, também salientando que o ebó nem sempre é uma oferenda. É possível, por exemplo, que o ato litúrgico envolva o uso de materiais específicos no corpo do religioso.
Filha de santo no Ilê Axé Omin Oyá, na Valéria, Jéssica Santana, 32 anos, é vendedora há 3 na Casa Preto Velho, uma das maiores e mais tradicionais da Feira de São Joaquim, e costuma atender em média cinco pessoas por dia em posse de uma lista de materiais para compor uma oferenda. Segundo ela, a maioria das pessoas que levam essas ofertas ao CAB costuma ir em busca de objetivos concretos, que vão desde um novo emprego até a chamada amarração de amor. “O CAB é o local dos pedidos. Já o Parque São Bartolomeu é mais o lugar de agradecimento para Oxóssi, Oxum, Oxumarê, por conta das cachoeiras”, delimita.
GALINHA E CHAMPANHE
Mas se os agradecimentos nas doces águas do parque ecológico em Pirajá costumam não estar à vista da população, por se tratar de um local ermo e restritivo, no caso do CAB, a coisa fica tão à vista que, se vacilar, a pessoa tropeça no desejo alheio.
No caso do jornalista Yuri Almeida, 38, uma dessas oferendas tentou atravessar a rua, e por pouco ele não atropela. “Nesse dia, estava de moto e ia pegar a Avenida Paralela. Ao chegar próximo da ‘Balança’, na região da Assembleia Legislativa, avistei uma galinha melada de farofa correndo na pista. Consegui frear e desviar bem em cima”, relembra ele, que mudou de comportamento após o incidente: “passei a ficar mais atento pois na região é comum as oferendas das religiões de matriz africana.”
O consultor político e jornalista Geraldo Honorato, 41, foi outro que passou a ficar ligado na grande quantidade de ebós na área administrativa. De tanto observar e identificar padrões, notou quando havia algo que parecia ‘fora do lugar’.
“Eu sempre encontrava ebós nas muitas encruzilhadas da região, alguns muito próximos de órgãos da administração estadual ou do judiciário, parecendo até que eram dirigidos para determinadas secretarias e outras estruturas. Mas, em um dia específico, me chamou a atenção um ebó arriado próximo à Assembleia. Neste, ao invés da tradicional cachaça, tinha uma champagne de grife”, recorda, citando um item que costuma estar presente em oferendas voltadas a questões conjugais.
POR TODOS OS LADOS
Além da quantidade, a beleza dos trabalhos também surpreende e encanta quem presta mais atenção. “Todo dia tem um ebó novo perto de onde trabalho. Outro dia tinha um cheio de garrafas, pratos e outros materiais que chamavam a atenção e tornavam o trabalho muito bonito”, contou um trabalhador da região, sem se identificar.
Para o pesquisador Nilo Cerqueira, a profusão de ofertas no CAB também tem a ver com a proximidade do local com bairros muito populosos em que há grande presença de terreiros urbanos, como são os casos de Sussuarana, Tancredo Neves, São Rafael e São Marcos.
Quem mora neste último é o vigilante Alan Ricardo, 37, que trabalha há 10 anos na Secretaria da Administração do Estado (Saeb). “Sexta-feira é o dia que mais tem ofertas. Antigamente era mais à noite, escondido, mas hoje as ofertas ocorrem a qualquer hora do dia”, explica ele, testemunhando que os trabalhos costumam ser arriados por duplas ou trios de pessoas em trajes brancos.
Uma grande palmeira ao lado de pequenas rochas, num canteiro central entre a Saeb e a Assembleia, é um dos locais que costumam receber muitos ebós, mas ele aponta um gramado em frente à Secretaria da Fazenda (Sefaz), cerca de 300 metros abaixo, no sentido Paralela, como um ponto preferencial dos religiosos.
A informação é confirmada por outro morador de São Marcos, Reinaldo Antônio, 57, que é porteiro na Sefaz. “É no CAB inteiro, tem em tudo que é lugar. No ônibus a gente passa e as pessoas estão colocando os ebós, mas aqui parece que vem mais. Colocam ali no meio do mato”, aponta, antes de liberar a cancela para um carro passar.
Mas se a passagem de veículos costuma ser autorizada, a dos ebós na área de sua jurisdição, não. “Aqui eles não entram, mas se deixar… um dia desses a gente impediu a colocação embaixo do pé de caju, logo na entrada. Pedimos que colocassem no mato em frente, porque ali fazia parte da área do órgão”, explicou o porteiro, que disse não ter religião e tampouco preconceito.
Mas, e se deixasse, quem iria retirar? Procuramos a Limpurb, que informou que a limpeza e manutenção do CAB é de responsabilidade da Superintendência de Patrimônio (Supat), órgão ligado à Saeb. Procurada, a assessoria da Saeb não respondeu aos pedidos de informações sobre o processo e frequência de retirada dos artigos religiosos.
Uma fonte, que preferiu não se identificar, informou que a remoção dos materiais em frente ao Centro de Exposições – a famigerada ‘Balança’, projetada pelo arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé) – costuma acontecer pela manhã, por volta das 7h30, e no final da tarde.
Mas, afinal, o que é um ebó e quais mistérios ele carrega
Palavra do iorubá, ebó significa oferenda, algo sacralizado, ou designa a troca de elementos com os orixás. Portanto, não existe apenas naquele formato encontrado nos gramados e matas do CAB. “Tudo que é sacralizado e oferecido a um orixá, nkisi, vodum, é ebó, pois envia uma mensagem que aguarda uma resposta. Grãos, frutas, velas ou bichos são elementos que serão usados nesse processo litúrgico, à medida que a demanda do consulente é identificada pelos oráculos”, explica o pesquisador Nilo Cerqueira. “Em última análise, é uma mensagem encriptada com signos que, juntos, serão sacralizados e imantados de energia, destinada a uma finalidade específica, a qual o oficiante deseja obter na sua vida”, complementa.
O presidente da AFA, Leonel Monteiro, define os ebós como rituais específicos que são destinados a promover, por exemplo, uma limpeza no indivíduo ou um “reequilíbrio do axé, ou seja, a força vital”. “Então, o ebó pode ser feito no sentido de oferendas a determinadas divindades ou pode ser de passar determinados elementos no corpo”, reitera.
Mas ele lembra que o trabalho não vai funcionar se for feito por conta própria, sem a orientação de sacerdotes. “Tudo isso é acompanhado de uma sequência de regras, que devem ser seguidas, e que são a nós reveladas no jogo de búzios, no Ifá. Por exemplo, se é uma oferenda ou se vai passar os elementos no corpo; aonde ela vai ser arriada ou passados esses elementos no corpo. Ou seja, a indicação vem através da espiritualidade, isso é, da forma que vai ser feita ou realizada esta limpeza ou oferenda”, complementa.
As ‘mensagens’, lembra Leonel, estão direcionadas a obter apoio dos orixás na vida, desde questões de trabalho e êxitos em ações judiciais até a busca por uma relação amorosa bem-sucedida. “Mas há também mensagens menos específicas, que buscam uma espécie de equilíbrio genérico, requerendo apenas estar alinhado com seu destino, sua missão neste mundo”, acrescenta o presidente da AFA. A vendedora Jéssica Santana conta que a grande maioria das pessoas que frequentam a Casa Preto Velho chegam com a nota (espécie de receituário) feita pelos babalorixás e ialorixás a fim de montar oferenda. “De 100% das pessoas que vem aqui, de 85% a 90% são para buscar elementos para preparar ebó”. Parte do material vendido ali vem direto da África, trazido por representantes da Nigéria e Congo, por exemplo.
Ainda segundo a vendedora, os clientes quase nunca dão pistas sobre a finalidade da oferenda – o mistério é uma das características dessas religiões de matriz afro –, e também não dão ‘feedback’ sobre o sucesso (ou não) da empreitada. “Na verdade, a gente só fornece os produtos. Se for pra agradecer, vai agradecer lá aos sacerdotes, né?” Né.
Vendedor da Casa de Oxumarê, Victor Hugo, 25, confirma o caráter confidencial na relação com a clientela. “Quando eles vêm fazer isso, já vem com a lista do que precisa. Pra que que serve, o que vão fazer, ninguém fala. Já não falam pela religião ser muito fechada, e também por eles mesmos, por decisão pessoal”, comenta o rapaz.
Ele acrescenta que há determinadas épocas do ano em que o movimento na loja cresce. “Em março e abril, e também em novembro, porque os Exus estão bem ativos. Então, é a época que o pessoal procura muito. Alguns produtos acabam tendo o estoque reforçado”, menciona Victor.
Segundo Nilo Cerqueira, a relação com o catolicismo pode ajudar a explicar essa sazonalidade. “Há algumas datas que estão relacionadas ainda com o sincretismo religioso e que ainda repercutem na atualidade com o candomblé. Março e abril, por exemplo, pode coincidir com o final da quaresma. No Sábado de Aleluia, diversas casas fazem festas dedicadas a Exu. (…) Mas esse calendário não é comum a todos os terreiros. Cada casa tem o seu, que pode coincidir ou não”, pondera. Ao lado, confira notas fictícias, elaboradas a pedido da reportagem na Casa Preto Velho, com materiais que costumam estar presentes em três tipos de ebós.
Materiais comuns e preços de três tipos de oferendas
EBÓ DE AMARRAÇÃO DO AMOR
Mel R$ 8
Rosas vermelhas R$ 5
Casal de bonecos R$ 4
Champanhe R$ 12
Óleo essencial Atração do Amor R$ 8
Vela vermelha R$ 5
Incenso rosa vermelha R$ 4
Pemba amarração R$ 2
Morim vermelho R$ 4
Novelo vermelho R$ 5
Alguidar R$ 8
EBÓ PARA CONSEGUIR EMPREGO
1 kg de inhame R$ 10
1 litro de azeite de dendê R$ 12
Obi vermelho R$ 1
Prato de naje R$ 5
Danda da costa R$ 2
Alguidar médio R$ 8
21 moedas correntes
Favas de Exu R$ 2 cada
Folha da fortuna R$ 3
EBÓ PARA LIMPEZA E ABERTURA DE CAMINHOS
21 moedas correntes
7 ovos brancos R$ 8
7 velas brancas R$ 5
7 acaçás brancos R$ 3 cada
7 acaçás vermelhos R$ 3 cada
1 kg de milho branco R$ 10
1/2 kg de sal grosso R$ 2
7 tipos de folha de amaci
Folha abre caminho R$ 3
Danda da costa R$ 3
1 kg de farinha branca R$ 6
Madrasto branco, vermelho e preto R$ 4 cada
1 litro de whisky R$ 35 (a partir)
Alguidar médio R$ 8