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segunda-feira 24 de abril de 2023 às 19:38h

O n de nada e ninguém, por André Curvello

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Há alguns dias tive a chance de rever o mais famoso discurso do reverendo pacifista Martin Luther King Jr. Em 1963, ele falou para 250 mil pessoas no Lincoln Memorial, em Washington, Estados Unidos. Foi a primeira vez que assisti à versão colorizada daquele que considero como um dos melhores falas já proclamadas.

Graças à generosidade dos meus pais, consegui estudar nos Estados Unidos e tive a oportunidade de conhecer um pouco da história norte-americana. Digo generosidade porque sei do imenso sacrifício que eles fizerem para me proporcionar aquela experiência inesquecível. Faço questão de sempre, sempre mesmo, agradecer a ambos, sem os quais eu não seria nada. Eles acreditaram em mim e até hoje tenho minhas dúvidas se consegui corresponder. Sigo tentando.

Aquele discurso do pastor batista King Júnior continua atual e fantástico. Era um líder negro que defendia o fim da segregação racial de forma pacífica e ordeira, enfrentando um câncer chamado preconceito, enraizado em instituições como a Ku Klux Klan, braço de um preconceito estúpido e desumano. Não era apenas a KKK o símbolo da imbecilidade racista e, sim, a sociedade americana da época, com sua estrutura legal, organizada e opressora.

No passado, a abolição da escravidão terminou sendo fator preponderante para a eclosão de uma página triste e sangrenta na história americana, a Guerra de Secessão, em que irmão levantou armas contra irmão. E nem assim aquele país aprendeu a ser tolerante.

Voltemos ao discurso de Luther King, justíssimo vencedor do Nobel da Paz de 1964. Intitulado “Eu Tenho Um Sonho”, prega a igualdade, a fraternidade entre brancos e negros, entre pessoas que deveriam ser qualificadas pelo seu comportamento e caráter e não pela cor da sua pele.

Recentemente, também tive a oportunidade de assistir, talvez pela milésima vez (estou exagerando!), ao filme o Poderoso Chefão, obra magnífica de Francis Ford Copolla. São espetaculares as interpretações de Marlon Brando e de Al Pacino, pai e filho, líderes do clã mafioso Corleone. Em uma das passagens, percebi, pela primeira vez, um diálogo que sempre me passou despercebido.

Naquela Nova Iorque de Mario Puzzo, ainda inocente diante das drogas e seus efeitos que tanto males provocam à sociedade, um dos chefões, ávido pelo lucro fácil da venda de entorpecentes, defende o comércio dessas substâncias desde que seja distante das escolas e das crianças. E ressalta: que a droga seja consumida pelos negros porque, de acordo com a fala da personagem, eles não eram gente. Sim, o racismo estava lá, indelével!

Do Eu Tive um Sonho do doutor King Jr. até os dias de hoje lá se vão 60 anos. Deixamos de ser hipócritas e preconceituosos durante esse período? Temo que não. É verdade, adquirimos muita tecnologia e com ela a possibilidade da democratização da informação, da disseminação do conhecimento, da convivência pacífica e da tolerância entre os seres humanos.

Porém, o que fizemos foi solenemente desperdiçar esse ouro comportamental, e passamos a mobilizar a internet e as redes sociais para propagar o ódio e o preconceito. A tecnologia deveria ser um instrumento de fortalecimento do respeito, pois sem ele a sociedade não evolui de forma saudável.

Hoje vivemos a velocidade alucinada da contemporaneidade. Não enxergamos nada, não absorvemos nada. Apenas vivemos de forma líquida, sem nos determos às essências da existência.

É preciso acordar para a reflexão urgente sobre a velocidade atroz e a lenta destruição que ela provoca em nosso humanismo. Sem respeito e sem Deus no coração, nos transformamos apenas em negação, em nada, em ninguém.
Quando me refiro a Deus, me sinto muito a vontade para falar em amor e respeito. Não tenho conhecimento sobre qualquer religião, o que defendo é respeito, é gentileza e solidariedade. A indiferença não constrói. Ela nos afasta e nos esvazia.

Martin Luther King foi um grande homem com inúmeros serviços prestados à humanidade. Sua obra nos convoca a um exercício contra a omissão, para escaparmos da sina de sermos nada e ninguém. Eu continuo tendo um sonho.

Por André Curvello – Jornalista e secretário de Comunicação do governo do estado da Bahia.

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