O filósofo escocês Adam Smith, considerado o pai das Ciências Econômicas, já demonstrava em 1776 – quando publicou seu Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações – que não é o acúmulo de ouro ou a extensão das terras que leva um país à prosperidade, mas sua capacidade de comercializar bens e serviços. A livre circulação beneficia todas as partes envolvidas ao permitir uma expansão dos mercados para as empresas e uma maior variedade de produtos ao consumidor.
São muitas as razões para que o Brasil esteja com a economia estagnada há uma década, mas entre elas não consta falta de ouro ou terras. Consta, porém, uma baixa integração ao comércio internacional. A rede brasileira de acordos preferenciais e de livre-comércio totaliza apenas 8% das importações mundiais de bens. A título de comparação, esse índice é de 73% para a Coreia do Sul, e 64% para o Canadá.
Mas o Brasil tem a chance de melhorar drasticamente esta situação. Após 20 anos de negociações, foi fechado em 2019 o Acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Ele ainda carece da chancela dos conselhos dos dois blocos, e possíveis novas exigências na área ambiental por parte da Europa, e de compromissos sobre compras governamentais por parte dos sulamericanos, parecem travar a assinatura final. Urge que isso seja feito o quanto antes. Uma vez em vigor, a rede de acordos brasileira saltaria para 37% das importações mundiais de bens. Será o maior mercado de livre comércio do planeta pela sua abrangência e importância. “Existe uma janela de oportunidade agora em 2023 porque os líderes ora no poder são entusiastas do acordo”, explica Constanza Negri, gerente de Comércio e Integração Internacional da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Essa janela será perdida se forem reabertas as discussões, uma vez que a rotação nas presidências dos blocos e as eleições em vários dos países participantes vai acabar empurrando a assinatura do acordo indefinidamente”.
Os 27 países da UE e os quatro do Mercosul somam um produto interno bruto (PIB) de 20 trilhões de dólares, cerca de 20% da economia mundial. Trata-se de um mercado consumidor de 780 milhões de pessoas. O Brasil tem um longo histórico de boas relações comerciais com o continente europeu, mas este elo está se perdendo, com prejuízo para a economia nacional – especialmente a indústria. Dados oficiais apontam que, entre 2002 e 2022, as exportações brasileiras deixaram de ter no mercado europeu seu principal destino e passaram, cada vez mais, a ter foco na China. Nesse período, a participação da UE nas nossas vendas externas caiu de 23% para 15%, enquanto a parcela chinesa cresceu de 4% para 27%. Mas apenas 22% do que vendemos ao mercado chinês, em 2022, correspondia a bens da indústria de transformação, ao passo que esses produtos responderam por 49% de tudo o que o Brasil exportou para o bloco europeu no ano passado. Aumentar o comércio com a UE, com destaque para os produtos industriais, significa fomentar a criação de empregos formais.
O acordo também tem potencial para promover uma diversificação das exportações brasileiras. Em 2022, apenas os dez produtos mais exportados representavam 54% do valor total das vendas brasileiras ao exterior. A entrada em vigor contribuirá a um processo de retomada da relevância do comércio bilateral de bens da Indústria de Transformação – o qual perdeu 18,4 p.p. na composição do comércio do Brasil com a EU, entre 2001 e 2022. Um levantamento da CNI mostra que cerca de três mil artigos terão tarifa zero para entrar na UE já na assinatura do tratado, e outros tantos ganharão o mesmo tratamento em um período de 10 anos.
Frise-se que há um cuidado com outras áreas para além da economia, como os compromissos assumidos em instrumentos multilaterais em relação à proteção das condições de trabalho, meio ambiente, política multilateral, segurança, clima e energia. Ainda é prevista a possibilidade de apoio técnico e financeiro da UE para fortalecer capacidades exportadoras, bem como para auxiliar no cumprimento de compromissos ambientais do Mercosul.
Nas próximas páginas, VEJA INSIGHTS, em parceria com a Confederação Nacional da Indústria, faz um raio-X do acordo entre Mercosul e União Europeia, e do seu potencial para impulsionar a indústria nacional em específico e a economia em geral. Para criar, como preconizava Adam Smith, a riqueza da nação. Boa leitura!
ACORDO COM UE É CRUCIAL PARA A INDÚSTRIA
ROBSON BRAGA DE ANDRADE
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE), concluído em junho de 2019, após duas décadas de negociações, representará um novo marco na inserção competitiva internacional da indústria brasileira. Sua entrada em vigor será uma contribuição importante para a reindustrialização do país, sem a qual nossa economia continuará indefinidamente em um ciclo de estagnação ou de baixo crescimento. Por isso, é urgente avançar em direção à assinatura do tratado em seu formato atual, sem a reabertura das negociações comerciais. Essa deve ser uma prioridade do governo.
Para que comece a valer de fato, o acordo ainda precisa passar por algumas etapas para compatibilizar legítimos objetivos nas áreas de sustentabilidade e proteção ambiental com compromissos equilibrados, levando em conta as condições socioeconômicas diferenciadas entre os países dos blocos. Neste ano, temos uma oportunidade ímpar para fazer o trabalho que resta, aproveitando a presidência do Conselho da UE pela Espanha no segundo semestre. O país é firme apoiador do tratado, tendo amplas condições de impulsionar os trâmites necessários à assinatura e à ratificação, pelas instituições europeias, dos componentes comerciais e políticos firmados.
“Com quase 720 milhões de pessoas e cerca de 20% da economia global, o acordo formará uma das maiores áreas de livre comércio do planeta”
Conjugando um mercado consumidor de quase 720 milhões de pessoas e cerca de 20% da economia global, o acordo formará uma das maiores áreas de livre comércio do planeta. Ele contribuirá para a retomada da relevância da indústria na pauta comercial brasileira com a União Europeia, que foi o nosso segundo parceiro comercial em 2022, com uma corrente bilateral de mais de 95 bilhões de dólares.
O acordo também contribuirá para a diversificação das nossas exportações, que são fortemente dominadas por bens primários de menor valor agregado. A concentração geográfica também é preocupante. Dados oficiais apontam que, entre 2002 e 2022, as exportações brasileiras deixaram de ter no mercado europeu seu principal destino e passaram, cada vez mais, a ter foco na China. Nesse período, a participação da UE nas nossas vendas externas caiu de 23% para 15%, enquanto a parcela chinesa cresceu de 4% para 27%.
Apenas 22% do que vendemos ao mercado chinês, em 2022, correspondia a bens da indústria de transformação – em contraste, esses produtos responderam por 49% de tudo o que o Brasil exportou para o bloco europeu no ano passado. Aumentar o comércio com a UE, com destaque para os produtos industriais, significa fomentar a criação de empregos formais. As vendas brasileiras para a União Europeia contribuíram com a geração de 21,4 mil vagas por bilhão de reais exportados em 2022 – valor significativamente maior do que a contribuição dos embarques do Brasil com destino à China (15,7 mil empregos).
Por isso, estamos confiantes de que o acordo com os europeus vai dinamizar os segmentos que têm um grande efeito multiplicador na economia, particularmente a indústria. Como o setor industrial é o que paga os melhores salários, o tratado também tende a melhorar a renda média do país. Uma vez que passe a vigorar, será o instrumento mais ambicioso negociado pelo Mercosul em mais de três décadas de existência e o mais moderno já assinado pelo Brasil.
“Cerca de 40% de todos os produtos deixarão imediatamente de ter a cobrança do imposto de importação ao entrar na Europa”
No texto negociado com a UE, há dispositivos favoráveis ao desenvolvimento econômico sustentável do país, prevendo amplos benefícios, que vão além de uma agenda de redução tarifária equilibrada. Com sua entrada em vigor, a tendência é de diminuição dos custos de insumos e de aumento da demanda europeia por nossos produtos de maior valor agregado. As empresas nacionais passarão a ter mais acesso ao mercado europeu de bens, serviços e compras governamentais.
Nossas estimativas são de que cerca de 40% de todos os produtos ofertados pela União Europeia no acordo – e que estão sujeitos a algum tipo de tarifa em suas aduanas – deixarão imediatamente de ter a cobrança do imposto de importação ao entrar no bloco europeu. Se os compromissos já valessem em 2022, isso equivaleria a quase 13 bilhões de reais em exportações brasileiras à UE. Desse valor, 99% correspondem a produtos da indústria de transformação.
O acordo também viabiliza uma agenda de diálogo, cooperação e articulação política entre os dois blocos em áreas estratégicas como segurança, meio ambiente, energia e mudanças climáticas. Hoje, a última grande pendência à sua celebração final é a negociação de um instrumento adicional detalhando as regras na área do desenvolvimento sustentável. A indústria brasileira defende que esse texto deva reforçar os termos já presentes no capítulo sobre o tema, sem gerar novos compromissos que comprometam o equilíbrio alcançado.
Essa parceria com a União Europeia traz evidentes benefícios à nossa economia: diversificação das exportações, estímulo à competitividade dos produtos brasileiros no mercado externo, cooperação para a transição energética e fomento à geração de empregos. Por tudo isso, sua conclusão formal é mais do que uma prioridade para melhorar a integração internacional do Brasil: é essencial para o desenvolvimento econômico, de forma competitiva e sustentável, do nosso país.
OPORTUNIDADES PARA A INDÚSTRIA
As razões pelas quais a indústria perdeu importância no Brasil desde os anos 1980 são muitas e complexas. Mas não há dúvidas de que esse processo foi ruim para o país – em 1995, a manufatura brasileira representava 2,77% da produção mundial, mas hoje é de apenas 1,28% – e que as tentativas de revertê-lo, até hoje, foram infrutíferas. O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, aprovado em 2019 mas ainda pendente de aprovação pelos conselhos dos dois blocos, não é a bala de prata que vai resolver o problema de uma hora para a outra, porém seu potencial para impulsionar a indústria nacional é enorme. A queda das barreiras às empresas brasileiras, afinal, vai subitamente abrir um mercado de 450 milhões de pessoas, com um PIB de quase 19 trilhões de dólares.
E vai fazer isso de várias maneiras. O carro-chefe de qualquer acordo comercial é a redução ou eliminação das tarifas na exportação entre os participantes. Neste caso, serão gradativamente zeradas as tarifas de exportação dos países do Mercosul para os da União Europeia de 92% dos produtos vendidos em um período de transição de dez anos. Para a indústria, no entanto, a UE se compromete a eliminar 100% das suas tarifas em até 10 anos, sendo cerca de 80% já na entrada em vigor do acordo. Para compensar o fato de que a economia dos sulamericanos é menos desenvolvida, ficou decidido que a contrapartida europeia é menos agressiva: o Mercosul eliminará as tarifas de 91% dos bens vindos da Europa, e terá um período de transição mais longo em cinco anos. Para a indústria especificamente, apenas 72% dos produtos importados da UE ficarão isentos em uma década, e esse número sobe para 90,8% cinco anos depois.
Alguns setores terão liberação apenas parcial de tarifas, obedecendo a critérios de cota, preços de entrada e preferência (veja quadro), o que levará o total das exportações para a UE desoneradas a 99%. (Nos primeiros sete anos, por exemplo, haverá um limite de 50 mil carros entrando no Brasil). A título de comparação, hoje apenas 24% das vendas brasileiras para a UE estão livres de taxas.
O acordo também vai ampliar o grau de liberalização do comércio de serviços, como telecomunicações e financeiros. Para oferta agrícola, 81,8% do que a União Europeia importa do Mercosul terá tarifa zero em 10 anos. No mesmo período, 67,4% do que o bloco sul-americano compra ficará sem tarifa. “O Brasil e o Mercosul tem hoje uma abertura de apenas 8% do comércio mundial de bens, e a assinatura desse acordo vai nos expor a 37% dos compradores internacionais”, explica Constanza Negri, gerente de Comércio e Integração Internacional da CNI. “Mas o tratado vai muito além do corte de tarifas, ele traz a estruturação de uma agenda viva de integração econômica muito profunda”.
De fato, a eliminação de tarifas é apenas um de mais de 20 temas negociados no acordo. Um facilitador importante do comércio que impacta a indústria em especial é a harmonização de uma série de regulamentos técnicos entre o Mercosul e a UE, como os referentes à segurança de produtos, saúde e meio ambiente. Mais do que a uniformização, o acordo prevê dispositivos de reconhecimento mútuo de avaliação da conformidade. Isso significa que um produto aprovado, por exemplo, pelo Inmetro não precisará passar por todo o trâmite burocrático para ter sua venda autorizada pelos institutos correspondentes em cada um dos 27 países do bloco europeu.
Melhor ainda é a criação de um sistema de pré-listagem que reconhece as empresas dos dois lados do oceano que apresentam um histórico de conformidade com as normas técnicas e tarifárias. Uma vez na lista, a empresa passa a ter suas exportações/importações verificadas na alfândega por amostragem, o que barateia e acelera muito as trocas comerciais.
A redução de barreiras sanitárias e fitossanitárias entre o Mercosul e a UE facilitará o comércio de alimentos e produtos agrícolas entre as duas regiões, pois as empresas não precisarão mais obter autorizações de importação tão demoradas e caras.
E se é verdade que a abertura dos mercados vai trazer competidores estrangeiros para a indústria nacional, também é fato que a redução de tarifas e barreiras comerciais também significa que as empresas nacionais podem importar insumos e matérias-primas com custos mais baixos, além de acesso a tecnologias hoje distantes. Isso pode resultar em uma redução nos custos de produção e aumento da inovação, tornando-as mais competitivas tanto no mercado doméstico quanto no internacional.
E a segurança e previsibilidade proporcionadas pelos acordos aduaneiros podem atrair investimentos estrangeiros para a indústria nacional. Isso pode ajudar a modernizar a infraestrutura e trazer tecnologia e know-how para o país, contribuindo para o seu desenvolvimento econômico.
Não adianta produzir nada se não houver para quem vender. O acordo abre um mercado enorme para a indústria brasileira. Não se pode perder uma oportunidade como essa.
COMPRAS GOVERNAMENTAIS
Qualquer empresário sabe o grande negócio que é se tornar fornecedor do Estado. O cliente é enorme, assim como seu apetite por produtos e serviços. Em média, o volume de compras governamentais equivale a entre 10% e 15% do PIB de cada país. No Brasil, trata-se de um mercado de pelo menos 157 bilhões de dólares ao ano. Uma enormidade, mas que soa bem menos impressionante quando confrontado com a voracidade da União Europeia: 2 trilhões de dólares ao ano, entre os 27 países-membros e a burocracia do bloco em si.
Por lidar com somas tão vultosas e envolver diretamente decisões de Estado, as compras governamentais em qualquer país são envoltos em regras rígidas com o intuito de evitar distorções ou induzir desenvolvimento econômico. Em outras palavras, elas são usadas como uma forma de política pública – principalmente para o setor industrial. E, por essas razões, sempre merecem um capítulo à parte em acordos comerciais.
No caso do acordo Mercosul-UE, houve um entendimento para que ocorra uma abertura recíproca dos mercados de compras públicas de todos os países que fazem parte dos dois blocos. Isso significa que fornecedores de bens e serviços brasileiros não encontrarão nenhuma barreira para participar de licitações de órgãos governamentais e entidades públicas na Europa, bem como as empresas europeias terão sinal verde para disputar os contratos brasileiros em igualdade de condições com as nacionais.
Uma particularidade do acordo chama a atenção dos especialistas. Via de regra, os acordos proíbem a prática de offsets, ou contrapartidas, que são exigências feitas na licitação como índices mínimos de conteúdo local ou transferência de tecnologia ao país comprador. Os negociadores do Mercosul conseguiram manter aberta a possibilidade de se exigir offsets por até 15 anos. Há, ainda, cláusulas de exceções que preservam o direito de cada país de restringir ou adotar medidas em licitações que se relacionem à segurança nacional, à proteção da saúde pública, e a programas de segurança alimentar, alimentação escolar e apoio à agricultura familiar.
A abertura do mercado de compras governamentais está restrita à esfera federal. Licitações de governos estaduais e municipais, portanto, seguem com as regras e restrições inalteradas. Estatais e fundações públicas também estão excluídas do acordo. As compras de alguns bens específicos, como certos equipamentos de construção e mineração, colheitadeiras, acessórios para caminhões e tratores, aparelhos de ar-condicionado, pesticidas, gases comprimidos ou liquefeitos, além de diversos produtos têxteis para os Ministérios da Defesa e da Educação, como uniformes infantis e fardas militares, também estão salvaguardadas.
O acordo também deixa intacta a Lei Complementar 123/2006, que permite ao governo brasileiro aplicar uma margem de preferência de 10% a 25% para micro e pequenas empresas — ou seja, companhias de menor porte podem vencer uma licitação mesmo oferecendo preços superiores dentro desta margem.
Há um piso nos valores das licitações que serão abertas à concorrência intercontinental nos dois lados do Atlântico. A praxe em acordos comerciais é que todas as regras sejam recíprocas, mas a União Europeia aceitou um período de transição na abertura das compras governamentais do Mercosul que não vai existir para a entrada dos sulamericanos na Europa (Os limites mínimos de acesso são definidos pelos Direitos Especiais de Saque (Special Drawing Rights), um instrumento monetário do Fundo Monetário Internacional baseado em cesta de moedas. Atualmente, uma unidade de DES equivale a cerca de 1,35 dólar):
Bens: Licitações para compras de quase todos os bens pelos órgãos do governo federal, inicialmente com contratos de valor a partir de DES 330 mil (aproximadamente 2,3 milhões de reais para cada licitação), sendo o valor reduzido progressivamente até chegar a DES 130 mil (cerca de 900 mil reais para cada licitação) após quinze anos de vigência do acordo;
Serviços de construção e concessões de obras públicas: Licitações para compras de serviços de construção e concessões de obras públicas pelos órgãos do governo federal, inicialmente com contratos de valor a partir de DES 8 milhões (cerca de 55,2 milhões de reais para cada licitação) nos primeiros cinco anos e DES 5 milhões (cerca de 34,5 milhões de reais para cada licitação) a partir do 6º ano de vigência do acordo;
Outros serviços: Licitações para compras de apenas alguns outros tipos de serviços pelos órgãos do governo federal, tais como serviços de engenharia e arquitetura, consultoria em gestão, pesquisas de mercado e opinião, limpeza predial e serviços de saneamento, inicialmente com contratos de valor a partir de DES 330 mil (aproximadamente 2,3 milhões de reais para cada licitação), sendo o valor reduzido progressivamente até chegar a DES 130 mil (cerca de 900 mil de reais para cada licitação) após quinze anos de vigência do acordo.
SUSTENTABILIDADE
O tema da sustentabilidade e da proteção do meio-ambiente é especialmente sensível nas discussões entre Mercosul e União Europeia para a assinatura do tratado. É o principal entrave, hoje, para a ratificação do acordo comercial entre os blocos. Os sulamericanos acreditam que os europeus, principalmente a França, se aproveitam da importância fundamental da defesa dos biomas para impedir a entrada de concorrentes brasileiros e argentinos à agricultura local.
No início de 2023, a UE enviou ao Mercosul um documento, chamado de side letter, com novas exigências na área de proteção ambiental que não estavam no acordo fechado em 2019. Os sulamericanos devem indicar aos europeus que não aceitam um compromisso adicional vinculante nem o estabelecimento de sanções relacionadas a um eventual descumprimento de cláusulas ambientais. O presidente Lula já chegou a afirmar que vai fazer o possível para ratificar o acordo ainda em 2023, mas que as últimas reivindicações são “impossíveis de aceitar”.
O acordo tem um capítulo de desenvolvimento sustentável bastante robusto e moderno, e que reforça compromissos que todos os países envolvidos já assumiram em outras instâncias, como o Acordo de Paris (que estabelece metas de redução na emissão de gases do efeito estufa). O receio brasileiro é que pressões políticas internas de agricultores nos países europeus gerem sanções aos brasileiros que, na prática, seriam medidas protecionistas contra a concorrência estrangeira.
Mas a postura da UE é consoante com medidas unilaterais de sustentabilidade em cadeias produtivas que seus países passaram a adotar recentemente, depois que o acordo com o Mercosul foi fechado em 2019. Passaram a ser exigidos certificados de que os produtos importados não tenham origem em áreas de desmatamento, obrigando todos os fornecedores de gado, soja, café, cacau, azeite de palma, borracha, madeira e derivados a provar que se enquadram nas novas exigências. Também foi criado um imposto sobre artigos com emissão intensiva de carbono, o chamado “Mecanismo de Ajuste ao Carbono nas Fronteiras”, que vai impor taxas ao aço, ferro, alumínio, fertilizantes, cimento e hidrogênio, bem como a certos derivados. E há em tramitação o “dever de diligência de sustentabilidade”, que obriga as grandes empresas a se certificar que toda a sua cadeia de fornecedores se adeque às normas de proteção ao meio ambiente e leis trabalhistas locais, o que atingirá gigantes como a Petrobras, Braskem e Embraer.
Todas essas medidas estão sendo questionadas na Organização Mundial do Comércio (OMC), por isso os europeus tentam garantir sua aplicação em concordância com o Mercosul. As preocupações dos europeus são todas legítimas, e o Acordo Mercosul-UE pode se tornar uma oportunidade para o Brasil moldar essas regras de acordo com as suas necessidades – afinal, o país um longo histórico de defesa da diversidade de biomas e só tem a perder no longo prazo com a extração predatória.
A Suécia, que atualmente tem a presidência da UE, considerou que “vale a pena estudar” oferecer assistência técnica a estes países, disse em entrevista Johan Forssell, ministro sueco da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e Comércio Exterior.
GEOPOLÍTICA
A cronologia é conhecida: em 1999 é anunciado, durante a cúpula Mercosul-UE no Rio de Janeiro, o início das negociações do acordo birregional em três pilares (comercial, político e de cooperação); um primeiro documento é rejeitado por ambos os blocos em 2004; discussões são interrompidas e recomeçadas diversas vezes nos anos seguintes; finalmente um acordo é assinado em 2019. As resistências de parte a parte durante o governo Bolsonaro, porém, acabaram travando a ratificação do tratado pelos conselhos dos blocos e pelos parlamentos de cada um dos países envolvidos.
Depois de mais de 20 anos, o Acordo Mercosul-UE voltou à pauta em 2023 com uma urgência que não se viu nas duas décadas anteriores. Então por que a pressa?
As razões são muitas, mas três delas se destacam. A primeira é a coincidência de as lideranças dos dois blocos estarem, neste segundo semestre de 2023, nas mãos de dois entusiastas do acordo: o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, assumiram em julho as presidências rotativas do Mercosul e do Conselho da União Europeia, respectivamente. Ao assumir o cargo durante a Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, o presidente Lula enfatizou em seu discurso a importância da assinatura do acordo. “Estou comprometido com a conclusão do acordo com a União Europeia, que deve ser equilibrado e assegurar o espaço necessário para a adoção de políticas públicas em prol da integração produtiva e da reindustrialização”, discursou.
A pressa também diz respeito ao passo seguinte para a entrada em vigor do tratado, que é a sua ratificação por cada um dos 27 poderes legislativos dos países da UE, mais os quatro dos países do Mercosul. Tanto o parlamento da União Europeia, quanto vários de seus membros individuais realizarão eleições no fim do ano, e os novos arranjos políticos podem recomeçar uma discussão com potencial de atrasar por mais alguns anos a conclusão do acordo.
Mas há um cenário de fundo muito mais importante para se buscar celeridade na abertura mútua dos mercados dos dois lados do oceano Atlântico. A pandemia de Covid-19 escancarou para todos a importância de se diversificar as cadeias de produção. O fechamento dos portos chineses interrompeu parte da produção industrial em todos os continentes, tamanha a dependência que se criou da potência asiática tanto para matéria-prima quanto para peças e equipamentos como chips e baterias. Na sequência veio a guerra entre Rússia e Ucrânia, que reforçou a lição: europeus entraram em pânico com a possibilidade de perder acesso ao gás russo, e mesmo o Brasil correu risco de ficar sem fertilizantes oriundos de Moscou.
Não é por outro motivo que a Europa tem pressa em estreitar laços com o Mercosul, mas não só. O bloco desenvolveu uma estratégia de se aproximar de toda a América Latina, a começar pela proposta do chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, de estabelecer reuniões regulares entre chefes de Estado e governo, além de um “mecanismo de coordenação permanente” entre a UE e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). De maneira mais concreta, a então presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou em junho investimentos de 10 bilhões de euros (cerca de 52 bilhões de reais) em projetos de infraestrutura em todo o continente, de forma a fazer frente à influência chinesa na região.
A UE é a principal fonte de investimento estrangeiro direto na América Latina e no Caribe, segundo dados de instituições europeias, assim como a Celac é o maior destino de injeção de capitais por parte da Europa. Ainda é insuficiente, acreditam os burocratas de Bruxelas, tanto que o bloco está negociando a expansão de seus acordos com a América Central; com o Chile; com o trio Colômbia, Peru e Equador; e com o México.
Pudera. A entrada de dinheiro chinês na região cresce a olhos vistos: o comércio bilateral de bens da América Latina com o gigante asiático aumentou 26 vezes desde 2000: passou de 12 bilhões de dólares (cerca de 58 bilhões de reais) para 315 bilhões de dólares (cerca de 1,5 trilhão de reais). E a expectativa é que ainda dobre para 700 bilhões de dólares até 2035.
Mas enquanto a China importa praticamente só matéria-prima e produtos agrícolas da América do Sul – de menor valor agregado – a indústria de transformação foi responsável por 49% das vendas brasileiras para a Europa em 2022. Aumentar o comércio com a UE, com destaque para os produtos industriais, significa fomentar a criação de empregos formais.
Não são poucos os economistas que preveem que o motor do comércio mundial está se movendo para o oceano Pacífico – sobretudo entre China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, os membros da organização ANSA, Austrália, Rússia, Canadá, México e Estados Unidos. Um acordo entre Mercosul e União Europeia é fundamental para manter a dominância do Atlântico.