Na primeira eleição para prefeitos nesta década, a configuração de forças políticas estava nítida. Em 2012, PT e PSDB, que aglutinavam esquerda e direita em seus respectivos campos, estavam entre os três partidos que mais elegeram prefeitos naquele ano.
Conforme levantamento do Yahoo Notícias, os tucanos saíram das urnas com 702 chefes do executivo municipal e os petistas, com 636, incluindo em São Paulo, a maior cidade do país. Ficavam atrás apenas do PMDB, hoje MDB, com 1.031 eleitos e com poder de barganha de sobra para oferecer apoio e outras coisinhas mais a depender de quem governasse o país. Era base de apoio da presidenta Dilma Rousseff como foi de Fernando Henrique nos anos 1990.
Logo atrás vinha o PSD, legenda recém-fundada por Gilberto Kassab que se dizia nem de esquerda nem de direita nem muito pelo contrário e que elegeu 497 prefeitos. Algo nascia ali como um novo peemedebismo.
Na última eleição para prefeitos desta década, encerrada neste domingo 29, a quebra, iniciada em 2016, do equilíbrio de forças que tinham o então PMDB como pêndulo bagunçou a cena e transformou em terra arrasada o campo da chamada política tradicional. Há quem classifique como o fim da Nova República.
O auge do reordenamento de forças aconteceria em 2018, mas a onda já tomava forma dois anos antes, quando emergiu das urnas uma nova direita que engoliria tanto a velha guarda da esquerda quanto a chamada centro-direita, de onde o PSDB se afastava a passos largos até ser impactado pelo fenômeno Jair Bolsonaro, que fez até João Doria, prócer do movimento, recuar.
São muitos os elementos que levaram o bolsonarismo ao desgaste de dois anos pra cá, entre eles a condução errática da pandemia e os indícios de corrupção entre os seus, com rachadinhas, candidaturas-laranja, parceiros de churrascos mocozados na casa de advogados milionários da família, etc. Teve também o esfacelamento do PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu, ajudou a eleger a maior bancada e na sequência implodiu.
O tranco no bolsonarismo
O bolsonarismo foi, então, ferido de morte por não ter eleito seus candidatos favoritos no Rio, em São Paulo, Fortaleza, Recife, Santos, Belo Horizonte e Manaus?
A resposta certa é…veja bem.
Seja pelas condições da atual campanha, em meio a uma pandemia, seja por preocupações maiores, como as investigações sobre os filhos ou sobre as interferências na PF, seja por não ser exatamente uma figura altruísta capaz de encerrar o experiente e fazer mais por alguém do que gravar mensagem protocolares de apoio a distância, Jair Bolsonaro botou o dedo dos pés mas não mergulhou de cabeça na campanha de ninguém. Não subiu em carro de som, não ofereceu carona ao ser carregado por apoiadores na frente de aeroportos, não prometeu mandar oponentes para a Ponta da Praia.
Bolsonaro mais torceu do que entrou em campo. Não tinha sequer um partido para chamar de seu –se algo ficou evidente é que ele precisará encontrar uma legenda logo se não quiser ver tantas forças dispersas como aconteceu em 2020.
E, por mais que tenha emitido seu selo de certificação, e alguns candidatos como Marcelo Crivella e Celso Russomanno, ambos do Republicanos, tenham vestido a carapuça com flertes ao negacionismo científico e forte discurso antiesquerdista, a eleição mostrou que Bolsonaro só tem um. Alguns até foram eleitos no rebote da onda que estourou no Palácio do Planalto em 2018, mas eram pastiches de outro pastiche e logo entraram em desgraça.
No geral, candidatos que abraçaram o bolsonarismo e o discurso antipolítica, contra tudo o que está aí, não vingaram dessa vez. Houve exceções, como em Vitória (ES). E candidatos que deram canseira nos candidatos eleitos em Belém, Fortaleza ou mesmo no Rio. Na capital cearense, aliás, o candidato mais identificado com a pauta bolsonarista teve de vestir alguma civilidade para não ser engolido pelas urnas. Foi derrotado, mas por pouco.
Segundo o jornal O Globo, a popularidade de Bolsonaro caiu em 23 das 26 capitais. O que não significa que, pelo interior ele não tenha feito escola. Nem que, caso o cenário de 2018 se repita, com um representante à esquerda como oponente, a chamada direita moderada não tape a respiração para dar a ele mais quatro anos de governo para evitar o “mal pior”.
PT foi o grande derrotado
Aqui entra a principal força política da atualidade: o antipetismo. A rejeição ao partido após a Lava Jato ficou evidente no desempenho de seus candidatos nas principais cidades e na perda de prefeituras que vem registrando desde 2016. Usado até por ex-aliados, como João Campos (PSB), em Recife, foi tiro fatal, por exemplo, contra Marília Arraes (PT). Pela primeira vez desde a redemocratização o Partido dos Trabalhadores não terá representante na prefeitura de nenhuma capital. Os prêmios de consolação foram Mauá e Diadema, na Grande São Paulo.
Essa rejeição certamente seguirá vagando como alma penada ao menos até a próxima eleição. O que antes era alavanca hoje é âncora e não colheu dividendos do desgaste do bolsonarismo.
Diante desse desgaste, a velha direita e centrão-direita (podemos chamar assim?) se reorganizaram e viraram a opção mais palatável diante de fenômenos de rejeição.
Renascida após os tombos de 2016 e 2018, ao menos nas disputas majoritárias, a esquerda precisou se renovar e misturar as cores da paleta se quisesse sair incólume da grita, ainda evidente, de que a bandeira brasileira jamais será vermelha.
Entre o amarelo CBF desbotado do bolsonarismo e o vermelho de outras disputas, os eleitores toparam o cinza e o cinza-chumbo das velhas forças insossas, mas também o roxo e cor-de-rosa que marcaram as campanhas dos candidatos do PCdoB e do PSOL em Porto Alegre, São Paulo e Belém. Entre eles, só o candidato da capital paraense, Edmilson Rodrigues, foi eleito, mas os três saíram da campanha como postulantes a cara nova da nova esquerda no momento em que fica evidente a perda de hegemonia do PT no campo em que sempre foi protagonista.
Em 2020, ficou evidente que defesa de minorias, dos direitos das populações periféricas, do discurso antirracista e das pautas feministas têm eco cada vez maior no eleitorado, sobretudo os mais jovens.
Avanço do centrão
Se em 2012 o PMDB era a joia da coroa que PT e PSDB, referências à esquerda e à direita, disputavam em troca da governabilidade, em 2020, já como MDB, é o partido decadente que ainda mais elege quadros. É seguido, porém, de dois próceres do chamado centrão, uma invenção do emedebista Eduardo Cunha em seu curto reinado como presidente da Câmara: o PP e o PSD.
O PSDB vem na sequência, seguido pelo DEM e o PL.
Em sétimo lugar no ranking, o PDT é o partido à esquerda que mais elegeu prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. Ao menos na distribuição de quadros pelos municípios, o PT é hoje a terceira força do campo.
O vácuo das lideranças nacionais
Antigo midas das disputas políticas, que transformava em candidato eleito tudo o que tocava, Lula deixou a prisão no ano passado, mas não conseguiu catapultar os candidatos de seu partido em cidades-chave como São Paulo, Rio, Salvador, Belo Horizonte, Vitória e Recife, talvez a derrota menos esperada e mais dolorida.
Não foi a única referência nacional que falhou no teste. Marina Silva até hoje não conseguiu fazer de sua Rede Sustentabilidade um fenômeno razoável de votos. João Doria e outros tucanos de alta plumagem precisaram ser escondidos para não atrapalharem os planos de Bruno Covas (PSDB) para a reeleição em São Paulo, onde os tucanos mantiveram seu enclave com custo. E Ciro Gomes (PDT) até mostrou força em sua terra-natal, onde evitou a vitória de um adversário bolsonarista em Fortaleza, mas fez pouco ou quase nada para evitar as duas derrotas dos candidatos da aliança do seu partido com o PSB nas duas maiores cidades do país.
Em outras palavras, nenhum pretendente a presidente em 2022 saiu fortalecido das urnas em 2020.
Os partidos do chamado centrão, embora tenham avançado numericamente, seguem sem uma liderança nacional no horizonte (Ciro Nogueira e Gilberto Kassab seriam traços numa disputa presidencial) e sem uma força hegemônica que confira qualquer unidade entre eles.
Forças conservadoras e o futuro da ‘nova direita’
Durante anos, dizer que era de direita em um país tão marcado pelas desigualdades, como o Brasil, era perda de votos, e de amigos, na certa. Com a crise da esquerda, Bolsonaro tirou do armário o orgulho destro e esticou a mola até a ponta do populismo. Desgastada, essa mola agora recua a um ponto que falha aqui e ali, mas está mais próxima do centro gravitacional do marco civilizatório.
É o que explica, por exemplo, a derrota de Marcelo Crivella no Rio, mesmo tendo a máquina municipal e apoio do presidente, para um ex-prefeito que não deixou assim tanta saudade, mas que se beneficiou do racha no campo progressista. Crivella achou que poderia governar e conversar apenas com os seus e perdeu de lavada.
Fica como última lição para as próximas disputas. Entre tantas correntes, os grupos evangélicos são uma força social e política ascendente e inegável no Brasil. Será cada vez mais difícil ganhar eleição sem seu apoio. Mas é também impossível governar APENAS com este apoio.
Do mais, é impressionante como questões relacionadas a religião ainda são determinantes para o sucesso ou não de candidatos no Brasil. Ninguém ganha se não for ao culto, ou à missa, pedir a bênção e prometer manter longe dos gabinetes temas polêmicos relacionados a cobrança de impostos e outros tabus no campo da saúde e das decisões individuais. Entre as fake news, nenhuma produz ainda tanto estragos como associar um adversário político ao ateísmo ou planos diabólicos para supostamente censurar o direito ao culto.
O Brasil de 2020 tem muito a aprender com a Alemanha de 1517, onde Martinho Lutero instituiu as bases da separação entre igreja e Estado. Mas esta é outra história. Ou não.