Mais de um século atrás, a disputa entre o marechal Hermes da Fonseca e o jurista e senador Rui Barbosa – com sua “Campanha Civilista”, em 1909/10 – opôs dois modelos. De um lado, Hermes, que foi ministro da Guerra, era um representante da República da Espada (período inicial da República, chefiado por Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, marcado por autoritarismo e conflitos civis). Do outro, se apresentava Rui Barbosa, identificado com juristas e intelectuais, com plataforma política pautada pela defesa das leis e da liberdade.
Essas características são citadas, em entrevista a Rayanderson Guerra, do Estadão, pela historiadora Vera Lúcia Bogéa Borges, autora de A Batalha Eleitoral de 1910 – Imprensa e cultura política na Primeira República (Rio de Janeiro, Apicuri, 2011), para descrever a primeira disputa eleitoral “real”, à americana, ocorrida no País, e que teve como “estrela” o político baiano, apesar da derrota.
Para a professora e pesquisadora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), mais do que uma campanha eleitoral, o movimento civilista foi uma tentativa de Rui de enfrentar a influência dos militares no governo. A seguir, os principais trechos da conversa:
Qual o cenário social e econômico do Brasil no período da Campanha Civilista?
As questões sociais do Brasil não estavam presentes naquela plataforma. Tanto Hermes da Fonseca quanto Rui Barbosa, como homens da elite, eram apresentados como o conselheiro Rui e o marechal Hermes da Fonseca. Há uma delimitação. É uma época com alto índice de analfabetismo, em um Brasil com pouco mais de 20 anos de República, ainda com um passado escravocrata muito forte. Para a história sempre ficou o lado perdedor. Quando falamos sobre a campanha de 1910, falamos da Campanha Civilista. Foi uma eleição com o militarismo e o civilismo. A Campanha Civilista vem como uma resposta ao militarismo. Na passagem do século 19 para o século 20, há tensões na Europa que tiveram suas repercussões no Brasil. De um lado, temos a formação tardia do estado nacional alemão, com o poderio militar forte, que vai colocar em xeque hegemonias da Inglaterra e da França. Esse militarismo vai dar origem depois à formação dos blocos. Estávamos às vésperas da Primeira Guerra. Esse termo militarismo vem da ideia da predominância e controle dos militares sobre os civis e seria uma propagação dos interesses militares na sociedade.
Quais eram os interesses dos militares em compor o governo da época?
Há uma crise na sociedade civil nessa esfera política e eles entraram para garantir a ordem e trazer tranquilidade. A ideia de hierarquia, da ordem da formação militar… São elementos diante de uma sociedade conservadora. A própria origem militar de Hermes da Fonseca e a de Rui Barbosa, que é filho de uma elite, vai estudar Direito e ser político de carreira, propiciou a ascensão desses dois homens naquele período.
Como surge a expressão ‘civilismo’?
O civilismo surge como uma resposta ao militarismo. Rui Barbosa, um jurista, entende a sociedade sob a égide das leis. É a expressão da liberdade e o respeito às instituições e às leis. E os eleitores serão os árbitros nessa disputa. Seriam aqueles que decidiriam os rumos do Brasil.
Como foram definidos os candidatos?
Outro ponto importante é o receio que Rui Barbosa tinha de sermos mais uma nação comandada por militares, o que poderia provocar impacto na nossa economia, como a concessão de empréstimos e parcerias econômicas. Ele fala com o olhar de quem está dentro, preocupado com as instituições, e antenado sobre como seria a repercussão internacional. Os dois nomes que surgem não eram novos na política. Rui era conhecido como a Águia de Haia e Hermes da Fonseca, por sua vez, era ministro da Guerra, e foi chamado de “kaiser sul-americano” por sua ligação militar.
Hermes da Fonseca era uma unanimidade entre os militares?
Quando a primeira candidatura apareceu, a do Hermes da Fonseca, o presidente da República era Afonso Pena. Era um mineiro que tentou usar o seu peso político para conseguir emplacar um candidato (Davi Campista, que era ministro da Fazenda). Nesse meio do caminho, ele morre e é sucedido pelo seu vice, Nilo Peçanha, que posteriormente apoiaria Hermes da Fonseca. Afonso Pena tinha pressionado Hermes da Fonseca a não disputar. Hermes defendia que a República deveria fugir do comando dos conselheiros. Ou seja, do Rui Barbosa, do Afonso Pena, do Rio Branco… Em maio de 1909, é lançada a chapa Hermes da Fonseca e Venceslau Brás. Seria a primeira vez que um militar chegaria à Presidência da República pelo voto. Os dois anteriores não foram eleitos. Numa sociedade autoritária, machista, ele peitou o presidente da República para se impor como candidato.
O que Rui Barbosa defendia como candidato à Presidência?
Rui Barbosa defendia um modelo de República muito próximo do norte-americano. Um regime presidencialista e pensando o papel do Poder Judiciário. Hoje em dia, conhecemos o Supremo Tribunal Federal (forte). Nada disso era uma realidade naquele momento. Outro ponto defendido por ele era a preocupação com a intervenção federal nos Estados. De alguma maneira, isso está presente na administração de Hermes da Fonseca, com as chamadas políticas salvacionistas (com intervenções na Bahia, em Pernambuco e em outros Estados). A chapa que vai se formar tem Rui Barbosa como representante do Partido Republicano Liberal com Albuquerque Lins, presidente do Estado de São Paulo. Era o termo usado na época.
Por que a senhora trata a eleição de 1910 como ‘batalha de 1910′?
Há uma batalha eleitoral. Um confronto, conflito, não necessariamente com mortes, mas eu conto um episódio no livro que no dia da eleição há um confronto de partidários de Rui Barbosa e de Hermes da Fonseca. Uma pessoa acaba morrendo. É importante observar que as questões do militarismo e do civilismo não vão se esgotar com o fim da eleição.
Quais são as inovações e novidades da Campanha Civilista em relação ao modelo que estava estabelecido na época?
Primeiro: não temos um único candidato (como ocorria antes). Temos dois nomes surgindo. Há uma disputa e um processo eleitoral acontecendo. Alianças e distanciamentos são estabelecidos. Temos ainda a elaboração de plataformas eleitorais. Antes de Afonso Pena ser presidente, o presidente anterior foi Rodrigues Alves. Na sucessão de Alves, em 1906, o nome de Afonso Pena não foi consenso. Há a tentativa de emplacar o nome, o que não acontece. Rui Barbosa se alia a outros políticos da época para barrar a candidatura. Aquilo que não teve força em 1906, em 1910 se consolidou. Outro ponto importante: os primórdios da República são trazidos à tona. O protagonismo dos militares está sempre ligado ao início da República – Hermes da Fonseca é sobrinho de Deodoro da Fonseca, que proclama a nossa República -, e pelo fato de termos o início do período com os militares. O terceiro ponto importante são os meetings (como se chamavam os comícios). Há uma mobilização política popular acontecendo. É claro que tudo ligado às cidades. Isso não dá conta do que é o Brasil. Ainda temos um Brasil rural, com o passado recente da escravatura e a questão migracional. E, por último, a cobertura jornalística. A imprensa tem um papel fundamental. Ela vai explorar a oposição. Vai se vender muito jornal. Há por exemplo, o Correio da Manhã e o Estadão apoiando Rui Barbosa, e o Carlos de Laet, do Jornal do Brasil, como crítico do Civilismo.
Como foi o processo eleitoral de 1910 na prática?
A eleição foi no dia 1.º de março de 1910. Você tem até um mês para que as atas estivessem prontas e fossem enviadas para o Congresso. De maio a junho de 1910 há a apuração, como previa o Congresso. As sessões do Congresso, de 15 maio a 20 de junho de 1910, eram destinadas para a apuração das eleições de presidente e vice-presidente. A posse só vai acontecer em 15 de novembro. Em 29 de julho de 1910, Rui Barbosa apresenta um documento, que ele chama de memória, em que ele defende a eleição. Ele entendia que a nação tinha abraçado a causa civilista.