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quarta-feira 1 de julho de 2020 às 14:23h

‘O Brasil está dando respostas erradas às perguntas certas’, diz Edson Fachin

JUSTIÇA, NOTÍCIAS


Há cinco anos o site JOTA pediu ao recém empossado ministro Edson Fachin uma entrevista para que falasse dos problemas que, na sua opinião, encontraria no Supremo. Fachin disse que só falaria depois de um período de cinco anos de observação do tribunal por dentro. Passado este período, o site voltou a ele. E Fachin cumpriu o compromisso.

Nesta entrevista, o ministro expõe sua visão do tribunal e as diferenças do cenário de cinco anos atrás para agora. “Na verdade, creio que, nesse período, o Supremo passou por sístoles e diástoles. O Supremo foi desafiado e, naquele momento em que entrei no tribunal, o Supremo via a aproximação de alguns ‘tsunamis’ do ponto de vista jurídico e, portanto, constitucional. E do ponto de vista político e institucional, obviamente, também”, disse.

Hoje, sua visão é de otimismo, apesar das dificuldades e manifestações contra o STF. E uma das razões é a percepção – interna – de que o tribunal atravessa a crise colegiadamente mais forte. “Nós antevimos algumas circunstâncias que iriam se passar com um elevado grau de preocupação. De modo que hoje a preocupação que nós temos, paradoxalmente mais otimista, é uma preocupação de quem já viu o tamanho do tsunami ou dos tsunamis pelos quais o Supremo passou, está a passar e poderá eventualmente vir a se defrontar”. .

Fachin também analisa o quadro político-institucional. E resume: “Eu diria que o presente no Brasil, em diversos campos – e não estou me referindo a apenas um poder -, o Brasil está dando respostas erradas às perguntas certas, está dando respostas incorretas às perguntas legítimas”. As respostas possíveis, disse o ministro, estão delimitadas pela Constituição. A não ser que houvesse uma ruptura, algo que ele disse não acreditar.

Sobre as diferentes posições do Supremo nesta crise – o presidente Dias Toffoli fala em STF como moderador, outros o apontam nesta crise como contramajoritário e outros ainda como protagonista – , Fachin traz uma visão mais complexa, num paralelo de imagem com o tribunal de onze ilhas. Do ponto de vista da atuação do STF na crise, é preciso vê-lo como um fractal.

“A teoria dos fractais ajuda um pouco a entender o mosaico que se forma na ambiência do Supremo Tribunal Federal. Mas ao contrário de causar alguma desesperança, algum alvoroço institucional, é preciso compreender que este mosaico é próprio do tribunal”, disse. E explicou: “Evidente que às vezes ele pode ser um poder moderador ou de arbitragem de conflitos. Pode. E deve. Mas não exclusivamente. Às vezes há uma solução em busca de um conflito ser mais explicitado, de uma nitidez maior do conflito. E portanto o conflito é bem-vindo”.

Fachin fala ainda sobre o processo contra a chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral, sobre a Lava Jato, sobre as críticas a decisões de seu gabinete a respeito de operações policiais no Rio de Janeiro em tempos de pandemia da Covid-19 e sobre demarcação de terras indígenas.

Abaixo, a íntegra, sem edições, da entrevista.

Há cinco anos, quando o senhor chegou ao STF, me disse que iria observar durante cinco anos o tribunal e só então faria observações sobre o seu funcionamento. Os cinco anos passaram e agora queria uma análise, primeiro sobre o que observou do funcionamento do tribunal, mudanças que podem ser feitas e críticas à Corte que o senhor considera injustas.

Muito bem, do ponto de vista do ‘quinquênio’, o que acaba de ocorrer, eu de fato tenho uma visão do tribunal nesse período tomada agora de dentro do tribunal. Antes eu tinha um ponto de vista, e agora eu tenho uma vista de dado ponto, e isso seguramente me faz refletir sobre um conjunto de fatos e fenômenos que se passaram nesses cinco anos e como o tribunal reagiu a esses fatos e fenômenos.

Quando nós iniciamos nossos afazeres, eu imaginava do ponto de vista metodológico que o tribunal se defrontava, do ponto de vista de minha observação, com pressões que diziam respeito a cultura interna, do modus operandi do tribunal. Em segundo lugar com a formatação das normas regimentais internas. Terceiro lugar com a legislação infraconstitucional nomeadamente em matéria de processo penal. E em quarto lugar a arquitetura ou desenho constitucional que é reservada ao STF.

Nesses quatro horizontes, eu diria que um conjunto de imprevistos não acidentais evidenciaram elementos interessantes para a análise do tribunal. Não é preciso dizer que nós, ao falarmos de imprevistos não acidentais, estou me referindo a circunstâncias possíveis, mas não necessariamente prováveis. Como por exemplo, o evento que estamos vivendo em face dessa pandemia, era possível mas não era provável. Possível porque logo após eu entrar no tribunal, o Brasil enfrentou a epidemia do Zika, um pouco mais tarde tivemos em vários países da África a questão do Ebola. E a literatura, que de algum modo já tornava possível aquilo que não era provável, mas ocorreu de modo não acidental. Esse é um cenário sanitário.

Do ponto de vista do cenário político institucional o país também vivenciou, não só o impedimento da presidente Dilma [Rousseff], como também um conjunto de circunstâncias relevantes no plano dos efeitos da chegada e do desenvolvimento da operação Lava Jato no âmbito do STF, envolvendo a presidência da Câmara dos Deputados e outras circunstâncias.

Concomitantemente a isso, o tribunal também se defrontou com a crise fiscal dos estados que acabou aportando no âmbito do tribunal, isto significa que esses imprevistos não acidentais foram demandando um olhar diferenciado naquele primeiro patamar da cultura interna do tribunal.

Eu creio que nesses cinco anos, o tribunal evidenciou uma cultura que responde muito mais a visibilidade do que já respondia a grande visibilidade que tinha cinco anos atrás.

Nós saímos da TV Justiça, que expunha o tribunal, para todas as TVs abertas e programas que escrutinam hora a hora, dia a dia os procedimentos do tribunal.

Além disso, o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas como o tribunal fez recentemente em função da pandemia, revelou-se um caminho acertado. É um caminho em curso, há muita coisa a fazer ainda nesse sentido, mas o tribunal deu uma resposta que, em meu modo de ver, está à altura do desafio que foi chamado nesse momento da crise sanitária.

Portanto, no aspecto da cultura interna do tribunal, creio que nesses cinco anos houve modificações expressivas do ponto de vista de uma exposição ainda maior, nem sempre desejável, mas isso independentemente do modo de ser de cada um dos ministros do tribunal como instituição.

Em segundo lugar, a questão regimental andou mais lentamente do que nós imaginávamos, mas aqui também – e por curioso que pareça, isso é uma mera coincidência – nesse momento em que estou lhe dando essa entrevista, está em curso, começou hoje [segunda-feira] ao meio-dia uma sessão administrativa para votar um conjunto expressivo de emendas regimentais, dentre elas algumas que, no curso desses anos, eu também tive a oportunidade de formular algumas, com iniciativa que eu tive, outras em conjunto com o falecido ministro Teori, com o ministro Luís Roberto Barroso, autor de propostas importantes que estão sendo debatidas. O próprio presidente Dias Toffoli que abraçou essa ideia e essa sessão administrativa está sendo levada a efeito graças a sensibilidade que ele tem para que ainda, na gestão dele, se possível, e se alguma dessas propostas forem acolhidas, se dê um passo adiante importante nesta matéria.

Portanto, nesse segundo patamar que é do ponto de vista das mudanças regimentais, esta sessão irá até quarta-feira ao meio-dia, nós veremos quais são as propostas que serão acolhidas ou não – vou tomar a liberdade, nesse momento, de elas não me referir, pois se trata de uma votação em curso -, mas eu posso lhe dizer que elas resumem boa parte das discussões que nós tivemos nesses cinco anos, e só o fato de isso já está em votação, isso já me deixa agradavelmente recompensado do ponto de vista desse horizonte que o tribunal se colocou.

É claro que os diálogos interinstitucionais para eventuais mudanças legislativas, sofreram sístoles e diástoles nesse período, por razões notórias, mas eu creio que haverá, a médio prazo, condições para que nós retomemos esse debate descontaminado da conjuntura e projetado com a procura de mudanças que diz respeito à estrutura do funcionamento do tribunal.

Nós ainda lidamos com uma avalanche excessiva de feitos de natureza recursal, é um tempo que já foi muito maior, mas ainda assim, nós, os ministros e o meu gabinete em especial têm um volume imenso de trabalho de natureza recursal que muitas vezes, é o tempo que se leva para decidir que não vai se decidir. E isso precisa ser racionalizado, do ponto de vista racional e sistemático não há conceito mínimo de eficiência que resista à uma avalanche tão grande de feitos de natureza recursal e, portanto, nesse sentido é fundamental que se pense, não apenas no funcionamento do STF, mas também do Superior Tribunal de Justiça, dos tribunais de justiça dos estados, nos TRFs. Enfim, aqui há um universo muito interessante de articulações da legislação especial e infra funcional para ser pensado.

E do ponto de vista do desenho constitucional, não é preciso dizer que nesses cinco anos, o tribunal foi chamado várias vezes a dizer de si mesmo, foi chamado várias vezes a se pronunciar sobre sua própria identidade como tribunal constitucional, como agente autorizado do ponto de vista da política institucional a fazer o controle de constitucionalidade, de atos do poder executivo e do poder legislativo, de omissões por meio de mandados de injunção importantes que foram apreciados e julgados pelo tribunal de modo que, do ponto de vista do contexto da instituição. Eu lhe diria – ainda que pareça paradoxal – eu estou mais animado hoje do que nos primeiros dias que entrei.

Há um universo importante de circunstâncias a percorrer, eu olho o tribunal desde junho para frente nos próximos cinco anos, porque é possível que em torno de outubro de 2025 eu esteja na presidência do tribunal. De agora para frente eu estou pensando nesta perspectiva, na gestão que vai se iniciar com o ministro Fux, posteriormente a ministra Rosa, o ministro Luís Roberto Barroso. Somos pessoas que temos uma interlocução institucional muito boa e, creio que há um universo de questões interessantes para que sejam, assim, desenvolvidas. E do ponto de vista pessoal, só para arrematar a sua pergunta que, obviamente, é bastante ampla, eu creio que tentei fazer com que os compromissos que eu assumi como o magistrado do STF fossem cumpridos.

Evidentemente ninguém é infalível, mas eu espero que eu tenha praticado uma judicatura das evidências, ou seja, aquela que procura observar uma afirmação feita, embora em outro contexto, mas que vale a pena ser repetida segundo a qual a prática no critério da verdade.

Essa é a diretriz e a orientação que eu tenho procurado levar a efeito e evidentemente, para ser coerente com o que acabo de dizer, não vou fazer um discurso sobre a prática, ela mesma tem que construir uma narrativa.

Isso que o senhor falou, sobre paradoxalmente hoje estar mais otimista…mas não me parece um paradoxo, me parece absolutamente coerente, ainda mais o supremo saindo dessa crise, tanto do ponto de vista econômico, social e etc, mas evidentemente político e institucional, o Supremo está mais forte do que há cinco anos. O senhor não tem essa impressão?

Na verdade, creio que, nesse período, o Supremo passou por sístoles e diástoles. O Supremo foi desafiado e, naquele momento em que entrei no tribunal, o Supremo via a aproximação de alguns ‘tsunamis’ do ponto de vista jurídico e, portanto, constitucional. E do ponto de vista político e institucional, obviamente, também. Portanto nós antevimos algumas circunstâncias que iriam se passar com um elevado grau de preocupação de modo que, hoje, a preocupação que nós temos, paradoxalmente mais otimista, é uma preocupação de quem já viu o tamanho do tsunami ou dos tsunamis pelos quais o Supremo passou, está a passar e poderá eventualmente vir a se defrontar.

Mas o relevante aqui, não é o evento em si. Eu entendo que nesses cinco anos, o tribunal demonstrou uma capacidade metodológica de responder a esses eventos e, nesse sentido, eu diria que os dias atuais me colocam mais otimista em função desta resiliência que eu entendo que o tribunal tenha demonstrado individual e colegiadamente. Portanto, essa é a razão de eu ter usado o termo ‘paradoxo’, mas o fato é que eu estou realisticamente animado com o que nos espera daqui para os próximos cinco anos.

O senhor falou de sístoles e diástoles, muita gente passou a ver a metáfora das 11 ilhas como um passado que, tautologicamente, ficou para trás. A gente sabe que, na verdade, não é bem assim, mas no momento de conflito, quando o tribunal foi desafiado no nível que foi, me parece que ele sai mais coeso, então nessa sístole e diástole, o tribunal sai dessa crise mais coeso do que há cinco anos. O senhor tem essa impressão também?

Tenho a impressão de que em momentos chave, a preocupação institucional esteve acima das preocupações eventualmente individuais e das concepções de cada um dos ministros.

Eu entendo que o tribunal, como colegiado, está a responder essa crise que nós vivenciamos hoje – crise sanitária, social e econômica e evidentemente a crise que desafia a juridicidade, a normatividade e ordenamento jurídico – o tribunal está saindo dela colegiadamente mais forte. Eu concordo com a sua avaliação.

Eu gostaria de fazer uma pergunta que parece bastante prosaica, mas que chama muita atenção de quem observa o tribunal: o senhor recentemente liberou alguns processos polêmicos no plenário virtual que, tradicionalmente, a gente esperaria que fossem julgados no plenário físico. E em alguns momentos o senhor liberou alguns processos para o plenário virtual e o próprio presidente trouxe para o plenário físico. Algumas pessoas perguntam se o senhor usa isso também como uma forma de estratégia de pautar esses temas quando o senhor acha que estão devidamente preparados para serem julgados, ou seja, seria uma forma de “driblar” o engarrafamento da pauta do plenário físico. E o senhor colocaria no virtual, o que forçaria a discuti-los naquele momento. Por exemplo: inquérito das fake news, o senhor liberou para o virtual e o presidente puxou para o plenário físico, entre outros casos. Eu queria entender se existe, por trás disso, alguma estratégia decisória?

Não. O que parece, nesse caso, não é. Na verdade, quando tenho os processos prontos, eu libero para a deliberação colegiada e uma certa presença mais frequente do plenário virtual se dá porque eu entendo que esta crise também abriu algumas portas, no sentido de dar ao plenário virtual a dignidade que ele merece nos juízos colegiados. Por isso, alguns têm dito ‘olha, nós nunca trabalhamos tanto’. Sim, porque, de algum modo, esta chamada que o plenário virtual está realizando de todos é uma chamada que valoriza o próprio plenário virtual. Então a liberação que eu tenho feito obedece a rigor esta lógica de considerar a igualdade e dignidade do ponto de vista da prestação colegiada qualquer forma do plenário se colocar. Claro que há algumas disfuncionalidades que precisam evidentemente ser corrigidas, e ademais, quem é o gestor da pauta, quer na turma, quer no plenário e mais intensamente evidentemente no tribunal pleno, é o presidente que tem a visão institucional e define o que é relevante para apreciação da pauta. Tanto que no caso da ADPF 572, do denominado inquérito das fake news, eu já tenho a compreensão formada há muito tempo, inclusive desde o ano pretérito, quando eu o indiquei para pauta, indiquei preferência para o julgamento, que era importante que o tribunal se manifestasse. A definição do que vai da indicação para a pauta ao calendário é uma definição que diz a respeito à estrutura presidencial da gestão de pauta que está no STF.

O senhor recentemente, em um debate acadêmico, disse que algumas manifestações de integrantes do governo negam o diferente e revelam uma desumanidade em algumas opiniões. Ainda nesse debate, o senhor disse não haver espaço para retrocessos dentro da Constituição. Eu queria que o senhor fizesse uma análise sobre este momento político que nós estamos vivendo de ataques ao Supremo que o senhor, sobre o inquérito das fake news e no seu voto na ADPF, já deu algumas respostas. Queria que avaliasse esse momento do ponto de vista do Supremo, político constitucional… 

Pois bem, é evidentemente que eu não vou fazer uma análise política, que a mim não compete. Vou fazer a análise que tenho, da visão a partir das responsabilidades que tenho como ministro do STF. Eu diria que o presente no Brasil, em diversos campos – e não estou me referindo a apenas um poder -, o Brasil está dando respostas erradas às perguntas certas, está dando respostas incorretas às perguntas legítimas. Nós fomos nos últimos sete, cinco, quatro, três, dois anos, todos os poderes do estado – e a própria sociedade – foram chamados a responder algumas questões do ponto de vista da ordem econômica e social das políticas públicas, dos direitos fundamentais, da máquina do Estado e, portanto, também do funcionamento do Poder judiciário, sobre a questão da corrupção. Todos foram desafiados a se pronunciar – e o presente evidenciou o conjunto das respostas que formam o caldo de cultura hoje reinante.

O nosso desafio nesse momento é compreender que as respostas legítimas devem ter os seus enfrentamentos buscados dentro dos limites da Constituição. Eu disse e repeti várias vezes que ninguém tem uma Constituição para chamar de sua.

Portanto as opções que foram feitas pelo constituinte 1988 criaram uma convivência que é, obviamente tensional, entre a importância do parlamento e o Poder Executivo fortalecido com as medidas provisórias, [o constituinte] manteve e superlativou a estrutura do poder judiciário, tendo o Supremo ao topo como o responsável por dar a última palavra, por assim dizer, e ao mesmo tempo, por definir sentidos da Constituição, inclusive após a manifestação diante da omissão dos outros poderes. A própria Constituição, também não sem intenção, procurou uma temperança entre o estado social – do ponto de vista dos direitos fundamentais e individuais das políticas públicas – e uma ordem econômica que conjugou a ideia da função social com a valorização da ordem econômica liberal. Portanto, este arranjo tensional que está na Constituição foi demandando perguntas que afloraram mais incisivamente a partir de 2013.

Anteriormente, o Brasil teve políticas governamentais que chegaram próximas de oferecer respostas corretas para esses temas. Basta lembrar – vou citar três governos anteriores – do governo do presidente Itamar Franco, que é preciso ser lembrado nessa História, o governo do presidente Fernando Henrique e os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que arrostaram esses desafios e as respostas que deveriam ser dadas, nem sempre – obviamente – dando as mesmas respostas. Então, nesse momento que nós vivemos no presente, nós estamos a perceber que a busca dessas respostas não é um processo acabado e que os seus eventuais desvios de percurso fazem parte do percurso. E, portanto, só dentro das regras desse jogo democrático é que as respostas no presente são avaliadas e eventualmente reescritas logo ali adiante. É por isso que eu disse que não há e não pode haver retrocesso diante da Constituição.

Enquanto não houver ruptura constitucional – e no meu modo de ver, o Brasil, nesses últimos anos, passou por testes importantes e, no meu modo de ver, não houve ruptura constitucional, e entendo que nem há risco que haja no presente de ruptura constitucional –  é a Constituição que estabelece as nossas balizas.

O que é possível e o que não é possível depreende-se dessa extração constitucional. E onde houver tensão, a palavra a ser dada nesta dimensão conflituosa, a Constituição reservou ao poder judiciário. Por isso que paradoxalmente eu sou otimista, ou seja, nunca quiçá o Poder Judiciário foi chamado a tão longe, muitas vezes até mesmo indo em demasia na espacialidade democrática da política. Nunca o poder judiciário foi chamado a ir a tão longe, ao mesmo tempo do ponto de vista meteorológico, no meu modo de ver, nós começamos a encontrar cada vez mais um equilíbrio nessa dimensão dos freios e contrapesos e conviver com essas tensões, com essa disputabilidade de sentidos. A experiência de outros países, veja você a crise que a Suprema Corte dos Estados Unidos enfrentou em vários momentos – eu gosto de citar esses exemplos que é um salto entre diferenças culturais e históricas, econômicas – mas, assim, na renúncia do presidente Nixon, a Suprema Corte foi chamada a se pronunciar sobre questões essenciais. Lá atrás, no macartismo, também a suprema corte teve um papel importante, ou para voltar o New Deal, com o presidente Roosevelt, em que a Suprema Corte foi desafiada literalmente, não apenas por palavras.

De modo que, portanto, é nesse sentido que eu vejo o presente como um presente que está oferecendo um conjunto de respostas que não me parecem corretas do ponto de vista do que a Constituição demanda.

A Constituição demanda respeito aos direitos humanos, a Constituição demanda respeito na tolerância, a Constituição demanda respeito às minorias, respeito aos povos indígenas, respeito aos quilombolas, respeito a um conjunto de direitos e obviamente de deveres que dizem a todos, e quando as respostas confrontam a Constituição, esta resposta não é correta. Agora, isto tem que ser avaliado legitimamente pelos órgãos respectivos dentro do jogo democrático.

Daí a importância das eleições, que é obviamente um objeto prioritário da preocupação do ministro Luís Roberto Barroso e também minha neste ano de pandemia. Enfim, a avaliação do presente, muito recortada, eu diria que é essa. O que o presente, digamos assim, coloca por vir, em meu modo de ver, é um fenômeno de que nós ainda continuaremos tendo imprevistos não acidentais. É uma espécie de aplicação entre nós, quiçá profana, da dimensão da serendipidade. Nós vamos ter imprevistos não acidentais com coisas boas e outras nem tanto, mas que a estrutura metodológica dos poderes do estado democrático têm reagido, em meu modo de ver, muito bem nas circunstâncias e nessa conjuntura.

Ministro, aproveitando que o senhor falou de mudança de sentido, de uma visão histórica de olhar algumas respostas que foram dadas no passado e também pelos olhos de hoje. Eu não queria perguntar de processo específico, mas do conceito que é a operação Lava Jato, que produziu enormes benefícios no combate a corrupção e expôs muitos dos problemas que nós tínhamos; mas também tem uma outra visão que está sendo dada hoje, pelo vazamento de informações, como por exemplo pelo The Intercept. Eu queria saber a visão que o senhor tem hoje sobre a Lava Jato, seus avanços e se é possível um questionamento sobre a legitimidade dos seus procedimentos e avanços.

Veja assim, em matéria de processo penal, eu sou um juiz da singularidade, digamos assim, da micro-história que se faz no processo penal – para reproduzir a palavra que o Carlo Ginzburg utiliza para narrar um pouco do livro dele que obviamente você e todos conhecem “O queijo e os vermes”. Nessa dimensão, de uma história da peculiaridade e da singularidade, eu como juiz aprecio isso. Quando eu vou examinar o pedido da instauração de um inquérito como relator dos feitos da denominada Lava Jato no Supremo, examinar a instauração de um inquérito, uma busca e apreensão ou mesmo um pedido de Habeas Corpus ou o recebimento ou não de uma denúncia, e como tenho feito, no julgamento das ações penais, evidentemente, o contexto é relevante para que ele ilumine o que se tem como fatos relevantes para aquele julgamento. Mas ninguém no direito penal, na sua singularidade pode ser julgado pelo conjunto da obra. Esse é um julgamento que pode existir no ponto de vista ético, político e moral.

Eu estou dizendo isso para dizer que eu tenho um juízo muito grande de contenção para fazer avaliações macroscópicas da operação Lava Jato. O que eu entendo é que o Supremo respondeu e tem procurado responder a seu tempo e a seu modo, porque nós somos um colegiado e obviamente que há dissensos, como foi o caso da execução da prisão após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, há dissensos e, portanto, dentro desses dissensos de cosmos visões que enxergam o processo penal e a resposta punitiva do estado de uma maneira diferente, mas o Supremo nessa singularidade, na dimensão das especificidades, tem feito o seu trabalho.

Eu tenho procurado publicar relatórios periódicos dos afazeres que vão desde o começo, quando estava nosso saudoso ministro Teori, quando eu recebi a relatoria, o que se passou nesses períodos todos. Veja você que, nesse ano, mesmo com todas as circunstâncias que cercaram a licença médica do ministro Celso, que é o meu revisor na turma, e mesmo com a pandemia, nós começamos e encerramos o julgamento de uma ação penal que, como sabe, nesse caso o tribunal faz praticamente a tarefa de um juiz de primeiro grau, o relator, o revisor e o ministro têm que analisar prova por prova, depoimento a depoimento com todas as vicissitudes que isso tem. Por isso eu não faço essa avaliação macroscópica, porque a mim incumbe a dimensão do fazer em cada um desses processos. A avaliação macroscópica que se fará da Operação Lava Jato, creio que o distanciamento histórico trará bons indicadores para que ela seja feita, mas eu lhe diria que nesse ponto – isso obviamente está espelhado nos votos e, portanto, na conduta que eu tenho -, a constituição brasileira elegeu a resposta punitiva do Estado como uma das respostas dentro do Estado democrático de direito. Portanto, aos mal ferimentos da coisa pública dos bens jurídicos tutelados pela ordem penal, cabe ao estado-juiz responder , e se for a hipótese, punir sim.

Evidente que nós podemos imaginar um sistema penal cujos padrões ou dimensões da resposta punitiva sejam rebaixadas ao mínimo quiçá inexistentes. Isto poderá ir e levar a um futuro que queira uma sociedade assim para o Brasil, mas na sociedade constituída pela Constituição de 88, ao lado de alguns mandados de criminalização que estão na própria Constituição, a Constituição legitima a sanção punitiva por parte do estado juiz. E é isso que se deve fazer, e é isso que motivou a atuação do sentido originário dessa operação e evidentemente, como tudo que se faz, no plano da normatividade é submetido ao escrutínio jurídico. O escrutínio já estava lá atrás, o ministro Teori tomou diversas decisões que já demonstravam que ao Supremo cabia à luz dos casos concretos, estabelecer limites, rever decisões e confirmar outras decisões….

Veja que até mesmo em matérias de colaboração premiada, das mais de 100, nós temos quatro cujas rescisões estão solicitadas, o Supremo vai examinar essa matéria, deve examinar a sua resposta. Portanto, nesta percepção, o desenvolvimento que se teve é um desenvolvimento submetido ao escrutínio cotidiano. Eu mesmo como o relator de várias coisas tive a relatoria desafiada, levei isso ao colegiado e o colegiado ofereceu a resposta que entendia correta ofertar, e é assim que as coisas vão continuar se passando, com escrutínios outros que virão, quer para reformar, quer para confirmar, quer para o Supremo modular as decisões à luz da sua leitura de natureza constitucional.

Como o senhor tem analisado e visto esses movimentos e essas saídas, por exemplo agora, de integrantes da equipe da PGR que cuida de Lava Jato. E, ao mesmo tempo, avaliar a velocidade da operação e das investigações a partir da PGR.

Pois bem, eu antes citei o Carlo Ginzburg. Há uma outra frase que eu estava relendo um livro que são de entrevistas com vários historiadores, ‘Muitas faces da História’. E uma das entrevistas é com ele e tem uma afirmação que me parece quase uma platitude, mas é de uma correção imensa; ele diz que a vida é um jogo de xadrez cujas jogadas cruciais foram feitas antes do xeque mate. Portanto, eu não avalio eventos da conjuntura, nem presente e nem passado, mas é preciso que eles sejam entendidos nesse tabuleiro onde há uma disputa de narrativas e uma disputa de sentidos.

Eu queria perguntar para o senhor sobre colaboração da JBS, para saber se o senhor pretende levar esse tema a julgamento no segundo semestre. E uma dúvida que eu sei que pode adentrar ao voto do senhor, mas é uma dúvida também de sistema, porque a gente está lidando com algo novo. O que aconteceria com uma prova se um acordo de colaboração é desfeito?

Quanto ao julgamento, já faz um tempo razoável que eu já estou pronto para julgar e  já disse isso à Presidência do STF. Nós íamos julgar em junho, houve a superveniência do julgamento da ADPF 572, mas o feito continua indicado à pauta e a Presidência do tribunal, no meu modo de ver, tem condições de pautá-lo, assim que possível, porque eu estou pronto para levar ao colegiado o estudo que eu fiz desse alongado processo e, digamos assim, com todos seus aspectos novos, do ponto de vista procedimental até mesmo para o tribunal.

A segunda parte da sua pergunta diz respeito do destino das provas numa hipótese de uma rescisão de acordo de colaboração premiada que se dê. Esse é um tema que o tribunal vai enfrentar e, certamente neste caso ou em outros casos, quando a rescisão se der, o tribunal dirá se a rescisão tem efeito ipso facto no plano da validade das provas. E essa é uma resposta que eu irei ofertar por ocasião do julgamento, mas é um tema que será objeto de apreciação neste ou em outros casos que serão apreciados pelo tribunal.

O senhor relatou de um processo que é bastante sensível sobre incentivos fiscais e agrotóxicos. O senhor chegou a liberar para a pauta, eu me lembro disso, e por alguma razão ele foi retirado. Também gostaria de saber se o senhor pretende levá-lo a julgamento em breve, se pode inclusive levá-lo no plenário virtual?

Este tema tem inúmeros amici curiae no processo, e ele envolve uma discussão bastante abrangente que, ao menos na avaliação que eu fiz até o presente, creio que o julgamento em uma sessão para o feito dessa abrangência seria mais interessante ao contraditório, à ampla defesa e à exposição de visões que se opõem de uma maneira a ser mais coerente com a realização de uma sessão virtual presencial, por assim dizer. Portanto, neste momento, não tenho uma inclinação para mudar o caminho, exceto se o tempo transcorrer demasiadamente, e como eu não vejo nenhuma diferença de patamar entre os dois plenários, lá também as sustentações orais são ouvidas e levadas em conta, isso poderá eventualmente ocorrer, mas não é o caminho que neste momento eu tenha como presente, até porque é um processo importante, está pronto para o julgamento, e se eu for consultado pela presidência para indicar alguns feitos que são relevantes para a apreciação, este certamente estaria entre os 10 feitos que eu considero importantes serem julgados.

O outro tema, o senhor já deu uma decisão, é sobre a demarcação de terras indígenas e a suspensão dos efeitos do parecer da AGU que definem as condicionantes para o processo de demarcação. E a gente ouvindo o setor do agronegócio ou a própria AGU, inclusive foram despachar com o ministro Alexandre de Moraes sobre o assunto, eles alegam que a decisão provoca mais insegurança jurídica porque eles acharam que era um assunto já dado para o setor. E eu quero só ouvir um comentário do senhor sobre essa avaliação que provoca uma instabilidade nesse processo.

Eu entendo que a segurança jurídica, a previsibilidade e a instabilidade são pressupostos de uma jurisprudência firme e coerente. Portanto, o Poder Judiciário tem o dever de oferecer segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade. E é por isso que esta matéria, tão logo que seja possível, também deverá ser apreciada pelo colegiado, quer em si mesma, quer incidentalmente em algumas ações civis originárias que tratam de demarcações de terras indígenas que possam vir no tribunal ou mesmo em sede de recurso extraordinário.

Eu mesmo sou relator de alguns processos dessa natureza e já estou começando a liberá-los para que este tema também seja apreciado pelo colegiado. E é nesse sentido que um tema importante como esse receba apreciação do colegiado e se houver uma compreensão majoritária no sentido diverso daquele que eu expus, nesse contexto da pandemia, evidentemente que esta será a direção que todo tribunal vai se conduzir.

Nesses cinco anos, aliás, eu tenho feito disso numa verdadeira profissão de fé: havendo uma posição majoritária do tribunal e imediatamente todos nós a aplicamos, claro que quando tem uma volta ao plenário ninguém no tribunal pleno pode ser compelido a ressalvar a sua opinião, ali nós estamos onde as divergências devem ser respostas e por isso nós somos 11. Para que o dissenso construa o julgamento, mais do que o consenso. Então sobre esse tema eu concordo com a premissa da segurança jurídica e eu espero que no tempo mais breve possível o colegiado do tribunal se manifeste sobre a matéria de fundo.

Eu gostaria de fazer uma pergunta para o senhor sobre uma decisão recente, sobre as operações policiais e a suspensão em tempos de pandemia. Quem lê a decisão do senhor ressalta alguns receios no cumprimento da decisão, porque numa ADPF o senhor não poderia dizer exatamente em qual condição que a polícia pode ou não pode agir, mas a gente já viu matérias dizendo que a polícia tem pouca clareza do que seriam as situações excepcionais. Gostaria de ouvir do senhor sobre o impacto dessa decisão e sobre essa ponderação de que seria de difícil cumprimento.

O deferimento foi parcial e, evidentemente, em nenhum momento as operações foram obstadas. O que o conjunto das medidas ali deferidas traduz é uma necessidade imperiosa de que essas instituições de controle tenham diálogos na formulação desse tipo de atividade e que permitam reconhecer os limites e as possibilidades de intervenção da polícia, para que a intervenção da polícia não redunde em maior violência.

Até porque não é esse o objetivo originário de nenhum componente das corporações policiais, ao contrário, os seus objetivos originais estão voltados para oferecer segurança a todos, inclusive segurança para si próprios, que também é imprescindível. Essa necessidade de uma cultura de justificação, de uma institucionalização do modus operandi é que é o fio condutor dessa decisão. Os eventuais descumprimentos no todo ou em parte, evidentemente, poderão ao seu tempo e modo serem apreciados nos autos. Quanto às notícias, que muitas vezes se tem um ou outro sentido, é preciso também se entender que o cumprimento das decisões judiciais às vezes pode ser feito num ato só, é instantâneo, como uma busca e apreensão ou a prisão de alguém. Mas outras vezes ele tem uma execução continuada e progressiva.

Veja o caso da doação de sangue de casais masculinos homoafetivos. Eu proferir um despacho lá traz pedindo justificações a agência reguladora, pedi pauta para a apreciação, começou o julgamento, houve uma interrupção, voltou-se o julgamento, pronunciou-se o julgamento no sentido que me parece correto como uma resposta – essa é uma resposta correta a uma legítima pergunta – e ainda sim noticiou-se dificuldades nesse comprimento, mas isso faz parte da própria espacialidade segundo a qual a institucionalização das decisões também é progressiva.

Não se muda a cultura de violência, de intolerância tão somente por um decreto ou decisão judicial.

Isso implica colocar na espacialidade pública… no caminho entre o jardim e a praça há muitas coisas, e todas elas interferem nessa caminhada e nessa travessia, e o próprio debate, a própria dimensão pública que isto tem faz parte desta perspectiva de uma execução progressiva e muitas vezes deflagrada no tempo das próprias decisões judiciais.

Mudando de tribunal. O senhor já deu um voto sobre uma das ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão e o presidente da República, mencionou em determinado momento que o TSE não pode dar vasão a processos políticos. Eu queria ouvir o senhor sobre a juridicidade do processo.

Eu vou me referir ao cerne do voto que eu já proferi, porque quanto a isso me sinto à vontade para comentar. A divergência que eu suscitei ao meu voto em relação ao voto do ministro relator foi que, ao julgar a ação de investigação judicial eleitoral improcedente, ele assim o fez por ausência de prova, tendo indeferido uma das provas relevantes nessa matéria.

Portanto o julgamento é eminentemente técnico-jurídico, ou seja, na minha compreensão, não é possível julgar improcedente uma ação por falta de provas e ao mesmo tempo não dar a oportunidade de produzir a prova.

Produzida a prova, se a ação será procedente ou não isso será um outro juízo de valor. De modo que meu voto é muito resumidamente exatamente isso. Portanto, é um voto exclusivamente técnico e jurídico.

Agora uma pergunta que é muito aberta, mas com a qual nos deparamos muito nesses últimos tempos: o processo no TSE pode servir de solução para uma crise política?

O TSE tem uma feição dúplice que é muito interessante: de um lado ele é um órgão, por assim dizer, administrativo, ele administra as eleições. Eu estive como observador das eleições no Peru no começo deste ano, em janeiro, e lá quem administra as eleições é um determinado órgão do Estado, e a justiça eleitoral é o outro. Aqui, o TSE administra as eleições e exerce essa função jurisdicional. Esta afeição é tão interessante que o exemplo da ponte que une esses dois afazeres são as consultas que o TSE responde. A consulta a rigor se faz em um órgão administrativo, ninguém vai ao juiz fazer consulta, pelo menos não deve. E se o juiz ouviu consulta não deve responder. Portanto, consulta-se um órgão administrativo, mas na justiça eleitoral, o órgão que tem a jurisdição, tem também o dever de responder às consultas. Portanto, o TSE construiu uma jurisprudência, dizendo se a consulta deixar entrever que na verdade ali é um caso concreto, o TSE não responde à consulta. Por isso, quando o TSE aprecia as chamadas ações de investigação judicial eleitoral, o que o TSE está apreciando é a aptidão de um determinado fato ser considerado um ilícito a tal ponto de ser reputado como suscetível de gerar os efeitos que potencialmente podem produzir, que é a cassação de um mandato e a inelegibilidade. Constatado o ilícito, o TSE verificará que tipo de ilícito é do ponto de vista da legislação, porque o TSE aplica, não apenas a constituição, mas o conjunto de leis infraconstitucionais, nomeadamente a lei das eleições, o código eleitoral, e ele verificará se esse ilícito admite um juízo de proporcionalidade quanto à sua gravidade. É possível extrair daquele ilícito uma gravidade tal que desequilibrou a legitimidade e a normalidade das eleições. Como se pode perceber, esses são juízos que estão na normatividade técnico-jurídica da prestação jurisdicional, e é isso que o TSE vem fazendo e continuará fazendo.

Ouvi uma certa vez, de um colega do senhor, que um processo no TSE pode funcionar como a válvula de segurança de uma panela de pressão. A válvula normal é a política. Se ela não resolve um problema político, a válvula de segurança seria o TSE, e ela seria acionada. E isso se comentou no processo no governo anterior, por isso que eu fiz a pergunta para o senhor, se o senhor acredita nessa duplicidade de válvulas, para saber se o TSE pode dar vazão – e muita gente tratando dessa crise política falou: o caminho mais rápido para resolver uma crise política é o TSE.

Do meu ponto de vista, essa tese defere ao Poder Legislativo uma certa inércia em tomar as decisões. Mas quiçá essa tese esqueça que não decidir no legislativo também é uma decisão. E o exemplo mais evidente são os mandados em junção que tem estatuto constitucional, portanto, em primeiro lugar é preciso ter uma deferência para o lugar próprio da solução de questões políticas que evidentemente é a espacialidade do legislativo, nomeadamente se o legislativo entender, como recentemente entendeu, que havia no processo precedente da presidente Dilma e lá trás no processo do presidente Collor, que havia crime de responsabilidade a ser apurado. Essa é uma competência do legislativo. Se houver alguma imputação de crime comum, e isso dependerá da PGR em fazer essa provocação, a competência é do STF.

Se houver um ilícito eleitoral com gravidade tal e que tenha gerado uma ofensa à paridade de armas no pleito, a sua legitimidade ou normalidade, o fórum é o próprio TSE. E é assim que esses órgãos se compõem dentro das balizas constitucionais. Portanto, cada um com a sua especialidade própria, não vejo nenhum como uma espécie de substitutivo institucional do outro.

Primeiramente, o Supremo tem alguma parcela de responsabilidade pelo agravamento do conflito com o executivo nas últimas semanas, e a gente viu que no tempo mais recente a temperatura baixou, mas saber se o Supremo tem algum grau de responsabilidade por isso. E na sequência, gostaria de ouvir o senhor sobre que função o senhor acha que o Tribunal exerce. Como seria melhor compará-lo? O ministro Toffoli fala de um Supremo moderador, mediador. Outros colocam o Tribunal necessariamente contra majoritário neste momento de crise. E alguns olham o Tribunal como um ator, ativo no estabelecimento de algumas balizas e, portanto, como um protagonista na crise. Então, gostaria de ouvir o senhor: se o Supremo tem alguma responsabilidade pela crise política e essa posição do tribunal como um moderador, contramajoritário ou como um protagonista na solução da crise?

O Supremo se defronta com aqueles dois caminhos que a teoria política, a teoria da sociologia institucional desenvolveu, que é o caminho de cortes de deliberação que coloca em primeiro plano os processos de construção da deliberação, portanto dando ênfase ao ponderar, ao refletir, e um outro caminho que atribui aos tribunais, como o STF, como o local da decisão, o local onde é preciso resolver. O Supremo anda sobre as águas turbulentas da realidade com uma boia de um lado e uma boia do outro. Em determinados momentos, toma maior densidade o ponderar e refletir. É o Supremo habermasiano, que vai construindo processos de decisão. Vai construindo a legitimação pelo procedimento. E é nesse sentido que eu me referi a decisões instantâneas e decisões de execução progressiva. Veja você que nós interrompemos, mas certamente retomaremos, o julgamento acerca da descriminalização das drogas. Este é um caso de legitimação pelo procedimento, o Supremo está construindo uma resposta sobre isso. Na criminalização da homofobia foi construída uma resposta sobre isso. Em muitas matérias tributárias importantes, as respostas são progressivamente construídas – se reconhece a repercussão geral, depois se inicia a apreciação… daí a importância do pedido de vista, que também permite ao próprio tribunal oxigenar – nem sempre com a intensidade que eu acho que deveria –  o diálogo. Mas se estabelece com a volta da vista, que certamente não deveria ser a perder de vista, deveria-se cumprir o regimento, que são 15 dias…Portanto, com suas dificuldades, há essa dimensão, digamos assim do ponderar, do refletir e lá na frente tomar a decisão. Outras vezes, a água levanta esta parte da boia, e é o de decidir e de resolver, e aí vem o papel – e todo o debate sobre as decisões monocráticas. Cada vez mais, o próprio tribunal também está a perceber, em meu modo de ver positivamente, que a força do tribunal está no colegiado e, portanto, que as decisões a serem tomadas quando há evidentemente razões justificáveis e em caráter excepcional, possam sim ser em monocráticas e, estas decisões serem imediatamente colocadas a referendo no tribunal. Portanto, esta é uma mudança cultural daqueles quatro horizontes aos quais me referi há cinco anos. Nós aqui temos passos muito grandes dentro da cultura interna no tribunal. E é nesse sentido que quando se acentua muito o resolver e decidir monocraticamente sem que o colegiado seja chamado, pode-se imaginar que ao invés de contribuir para a harmonia, as decisões contribuem para alguma exasperação. Agora, as tensões são inevitáveis, porque o artigo 2º da constituição diz que antes de tudo os poderes são independentes… e, se possível, harmônicos. Portanto as tensões são inevitáveis, e essas tensões, a rigor, são construtivas. Porque elas contribuem para que os sentidos postos, quer pelo tribunal ou outros poderes, venham a ser escrutinados publicamente, e um tribunal que tem a função constitucional que o STF tem, é um tribunal que escrutina os sentidos da Constituição e é permanentemente escrutinado, e é bom que seja assim, inclusive com críticas mais ácidas, que de modo algum devem ser proibidas ou retiradas de sítios eletrônicos ou de publicações. As críticas, mesmo as mais ácidas, fazem parte do conjunto de percepções que estão dentro das balizas da Constituição, e é nesse sentido que eu votei na ADPF 572. Crítica não traz risco efetivo para ninguém e, portanto, faz parte da ambiência democrática.

Por isso que essas tensões são criativas e construtivas. Elas às vezes tomam uma dimensão extraordinária, porque a ambiência político-institucional do país, obviamente, está contaminada por processos eleitorais que parecem que não acabam, por disputas que parecem que tem um fim em si mesmo, ao invés de serem processos de solução de controvérsias.

É nesse sentido que eu digo que nós temos um presente recheado de respostas erradas para perguntas legítimas. É nessa perspectiva que eu entendo que é difícil achar uma síntese para um tribunal que é recheado de fractalidades. A teoria dos fractais ajuda um pouco a entender o mosaico que se forma na ambiência do Supremo Tribunal Federal. Mas ao contrário de causar alguma desesperança, algum alvoroço institucional, é preciso compreender que este mosaico é próprio do tribunal. Evidente que às vezes ele pode ser um poder moderador ou de arbitragem de conflitos. Pode. E deve. Mas não exclusivamente. Às vezes há uma solução em busca de um conflito ser mais explicitado, de uma nitidez maior do conflito. E portanto o conflito é bem-vindo. Eu tenho sempre dito aos meus alunos que a crise é aquele fenômeno que se apresenta entre uma proclamação discursiva que está na ordem normativa e os fatos sociais que não obedecem àquela ordem normativa e se comportam num outro caminho.

Essa crise obviamente fará com que a disputa dos sentidos da ordem normativa discursiva, conforme os fatos, quando a moldura toma conta da fotografia, ou os fatos se imponham e traduzem uma mudança normativa. É quando a fotografia se impõe diante da moldura. Portanto, fazer uma síntese do tribunal, dizendo que ele é um ator nessa espacialidade política, no meu modo de ver, diz pouco do tribunal.

O tribunal não se comporta como um jogador nas partidas disputadas pelo jogo democrático, mas o tribunal busca calibrar o seu protagonismo dentro de um jogo que não é conjuntural, de um jogo que é de natureza estrutural.

E, portanto, nesse sentido, pode ser sim um ator de natureza institucional, mas em questões estruturais, não nas questões conjunturais. Eu não sou muito afeito a esta síntese…A síntese sempre leva a um plebiscito. E não há nada mais pobre do que a redução da complexidade num plebiscito. E é melhor trabalhar com a complexidade.

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