Dados do Exército mostram de acordo com Sarah Teófilo, do R7, que houve um aumento de 333% no número de novos registros de armas para CACs (caçadores, atiradores e colecionadores de armas de fogo) em 2021 em comparação com 2018. O total saiu de 59.439 registros para 257.541. No mesmo período, o número de CACs aumentou 325% – passou de 255.402 registros ativos em 2018 para 1.085.888 em 2021. Cada colecionador, atirador ou caçador pode ter mais de um registro.
A concessão de registro para CACs é feito pelo Exército por meio do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma). Outros civis que desejam ter armamento precisam fazer a solicitação à Polícia Federal pelo Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Em ambos os casos, é preciso seguir uma série de regras.
Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabel Figueiredo relata que, desde 2017, ela observa com atenção o aumento do número de CACs. A pesquisadora aponta que o aumento se dá pelo fato de as pessoas terem percebido que era mais fácil conseguir um registro como CAC do que provar à Polícia Federal a efetiva necessidade para obter o armamento pelo Sinarm. “Por isso que vemos um aumento nesses anos pré-Bolsonaro”, pontua.
O cenário já mudou, segundo ela, após um decreto (9.685) assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, em 2019, dizendo que “presume-se” a efetiva necessidade.
Figueiredo afirma que o aumento de armas nas mãos dos CACs é algo que preocupa. De acordo com ela, há um conjunto robusto de pesquisas que mostram que o aumento do número de armas em circulação gera uma tendência de aumento da criminalidade violenta, acidentes domésticos e suicídios.
No âmbito da criminalidade, ela conta que o impacto se dá nos conflitos: quando há alguma briga e existe uma arma de fácil acesso, a tendência é que o desfecho seja mais violento. O outro problema são os desvios de armas. “A arma legal migra facilmente para a ilegalidade. O cara perde a arma, é roubado. Em outros casos, a pessoa compra arma como CAC e, na verdade, ela integra o crime organizado e fornece a eles [criminosos] armamentos”, explica.
Um caso que exemplifica esse ponto ocorreu em janeiro deste ano, quando a Polícia Civil do Rio de Janeiro apreendeu um arsenal com um traficante que tinha registro como colecionador e atirador desportivo, “O impacto é grande na segurança pública”, afirma a pesquisadora.
Instrutor de armamento e tiro credenciado e guarda civil metropolitano de Goiânia, Leder Pinheiro diz que houve um aumento de interesse por armas de fogo depois que o país passou por uma onda desarmamentista. “Pode acontecer que tenham alguns casos isolados que venham a ter problema, mas toda profissão também tem”, defende.
A reportagem enviou perguntas ao Exército e aos ministérios da Defesa e da Justiça e Segurança Pública sobre a flexibilização do acesso a armas de fogo, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Projeto no Senado
No Senado, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) analisa uma proposta enviada pelo Executivo e aprovada na Câmara que flexibiliza as regras e o acesso a armas para a categoria, dando porte de arma a atiradores com mais de cinco anos de registro. Atualmente, eles têm a posse e permissão de carregar o armamento apenas para o local de treino, com trajeto definido.
O assunto está sendo tratado há semanas na comissão, mas diante da resistência ao texto, a análise foi adiada. No fim de fevereiro, a votação foi adiada com o pacto de que seriam incluídas algumas emendas propostas e haveria a formação de uma comissão para dialogar sobre o assunto na Câmara dos Deputados, para onde a matéria retorna após aprovação no Senado. A ideia seria acordar com os deputados a manutenção do texto com as mudanças feitas pelos senadores.
No entanto, o relator Marcos do Val (Podemos-ES) incluiu diversas alterações em novo relatório apresentado no início de março. A mais questionada, após o acolhimento de emendas, foi a ampliação do porte de arma para diversas categorias.
As categorias beneficiadas são membros do Congresso Nacional, agentes socioeducativos, defensores públicos, policiais das assembleias legislativas, oficiais de justiça e do Ministério Público, peritos oficiais de natureza criminal dos estados e do Distrito Federal, agentes de trânsito dos estados, DF e municípios, auditores estaduais e distritais, advogados públicos da União, dos estados, do DF e dos municípios e auditores fiscais agropecuários.
Os senadores contrários ao texto afirmam que as alterações geram confusão e que precisavam de tempo para analisá-las.
Antes disso, o projeto era questionado por trechos, como um que fixava em 16 a quantidade mínima de armas que podem ser registradas por um CAC, mas sem determinar a quantidade máxima. O próprio relator concordou que a questão preocupa e sugeriu que seja fixado um limite.
Agora, o projeto prevê que “a quantidade de armas autorizadas para o apostilamento de caça ou de tiro desportivo será regulamentada pelo Comando do Exército, assegurada a quantidade de 16 armas de calibre permitido ou restrito por acervo, das quais seis poderão ser de calibre restrito”.
O projeto foi enviado pelo Executivo ao Congresso depois que o presidente Jair Bolsonaro editou, em 2019, diversos decretos sobre o assunto. Alguns foram suspensos pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que ainda analisa a questão.
Sobre a quantidade de armas, atualmente o que vale é um dos decretos de 2019, que permite que atiradores e caçadores possam ter até 90. O decreto autoriza 60 armas para atiradores e 30 para caçadores — então, se uma pessoa tem os dois registros, pode ter acesso a 90 armas. Colecionadores podem ter mais: cinco armas de cada modelo.
Segurança jurídica
O projeto voltou a ser amplamente falado na comissão no fim do ano passado, quando o relator da matéria frisou na CCJ que havia pressa para a apreciação da matéria. À reportagem, na época, ele disse que buscava essa apreciação célere para garantir segurança jurídica aos CACs, ainda que o texto fosse menos amplo do que aquele enviado pelo Executivo. O senador dizia ter receio de que houvesse alguma decisão monocrática no STF derrubando os decretos hoje existentes.
A justificativa de que o projeto visa garantir segurança jurídica é criticada por organizações que estudam a violência no Brasil. Os institutos Sou da Paz e Igarapé divulgaram uma nota conjunta dizendo que o argumento é falso. “Não pode justificar a aprovação de um grande retrocesso para o controle de armas e munições no Brasil”, pontuaram.
As duas entidades ressaltam que o projeto define como direito de todo cidadão “as atividades de tiro desportivo, colecionamento e o registro de armas para caça (atividade que é proibida no país, salvo em casos excepcionais)”.
“Os benefícios concedidos a essas categorias são tão desproporcionais que o projeto de lei chega a definir como responsabilidade do Exército Brasileiro ‘incentivar e facilitar a prática do tiro esportivo’, ignorando que a função social e coletiva do Exército é garantir a defesa nacional e não servir à promoção de hobbies e esportes privado”, frisou.
Isabel Pinheiro, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que é importante que haja uma lei específica sobre o assunto, mas que o projeto em si é prejudicial. “Não concordo com o teor do projeto, que derruba inclusive a legislação em vigor hoje e vai no sentido contrário das evidências que temos de armas. Do ponto de vista do atirador bem intencionado, está ok. Só que há um impacto no cenário todo. E a gente não faz política de arma só com base no atirador desportivo”, disse.