Em 2019, a sigla CACs, até então mais usada por pessoas que se interessam por armas de fogo, começou a fazer parte do vocabulário popular.
Decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro mudaram regras de acesso a armas e munições para, nas palavras do presidente, “facilitar a vida” de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores — representados pela sigla.
O interesse da população em entrar para esse grupo já vinha se mostrando nos dados públicos há anos, e atingiu o ápice em 2019. O número de pessoas registradas como CACs cresceu consideravelmente depois das mudanças na legislação, e o volume de armas nas mãos dos CACs, também, segundo dados do Exército obtidos pelo Instituto Sou da Paz, organização que pesquisa e propõe políticas públicas sobre segurança.
A quantidade de registros ativos de CACs fechou 2019 em 396.955, aumento de 50% em relação a 2018 segundo o BBC Brasil. A maior parte dos CACs é composta por atiradores (200.178), seguidos por colecionadores (114.210) e caçadores (82.567).
Novos registros de CACs aumentam anualmente desde pelo menos 2014. Entre 2014 e 2018, esse aumento foi de 879%, de 8.988 para 87.986. De 2018 para 2019, o crescimento foi de 68%.
Grande parte está nos Estados de São Paulo (93.678 registros ativos), Paraná e Santa Catarina (57.265) e Rio Grande do Sul (55.741). Em seguida vêm Goiás, Distrito Federal, Tocantins e parte do Mato Grosso (32.665). Também é nesses Estados que está concentrado o maior número de clubes de tiro e lojas de arma de fogo.
O volume de armas nas mãos dos CACs também cresceu 24%, o maior aumento percentual desde pelo menos 2015, fechando 2019 em 433.246 armas, um crescimento de 91% desde 2014.
Especialistas em segurança pública atribuem o aumento à disseminação de uma cultura de armas, facilitada por comunidades online, e às várias mudanças na legislação que deram aos CACs acesso a mais armas e munições.
Eles veem com preocupação tanto as mudanças na lei quanto o aumento da procura e do volume de armas nas mãos dessa categoria. Apontam que a legislação abriu brecha para o porte de arma, ou seja, o uso no cotidiano, sem que o usuário receba um treinamento adequado para isso.
Dizem também que há sinais de que procedimentos de fiscalização não acompanharam o aumento do número de CACs e de armas nas mãos desse grupo. Finalmente, alertam que haver mais armas em circulação representa ameaça para a população.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Exército foram procurados para responder às avaliações, mas não haviam se pronunciado até a publicação deste texto.
O que mudou na lei?
Antes de assinar um decreto sobre mudanças para os CACs, Bolsonaro disse, em transmissão ao vivo feita em abril em rede social, que elas “facilitariam e muito a vida” da categoria.
Depois de muito vaivém, com decretos publicados, revogados e substituídos por outros, estas são as principais mudanças que estão valendo, de acordo com levantamento do Sou da Paz:
- aumentou o número de armas e munições que CACs podem comprar (atiradores: de 16 armas, 60 mil munições e 12 kg de pólvora para até 60 armas, 180 mil munições por ano e 20 kg de pólvora; caçadores: de 12 armas, 6 mil munições e 2 kg de pólvora para 30 armas, 90 mil munições e 20 kg de pólvora; colecionador: de uma arma de cada tipo para 5);
- a validade do registro dos CACs aumentou de 5 para 10 anos;
- permissão de portar uma arma municiada nas ruas.
Por que aumentou a procura?
A maior parte dos brasileiros (66%) acham que a posse de armas deve ser proibida, segundo pesquisa Datafolha feita em julho de 2019; 31% acham que a posse de armas deve ser um direito e uma parcela de 2% não opinou.
Ao mesmo tempo, o número de registros de posse vem crescendo há anos e também o número de armas vendidas no mercado legal. Essa tendência de aumento no interesse também se mostra em dados de CACs.
Perguntado sobre os possíveis motivos dessa busca da população por registros de CAC, o presidente da Associação CAC Brasil, Marcelo Midaglia Resende, diz que “é um subterfúgio para ter a arma de fogo. Nosso trabalho na associação é dar orientação sobre a responsabilidade que vem com ser um CAC”.
Até o início de 2019, a lei exigia que um cidadão que quisesse ter posse de uma arma — ou seja, o direito de usá-la em casa para defesa pessoal e do patrimônio — deveria provar à Polícia Federal que precisava realmente do artefato — por exemplo, por viver em uma área isolada.
Um CAC precisa provar ao Exército muitas das mesmas coisas que alguém que tem posse de arma, como ter endereço fixo, ocupação lícita, que não cometeu crimes no passado e que não é investigado ou responde a processos criminais, além de demonstrar capacidade técnica e psicológica, mas não é preciso provar a necessidade de ter uma arma.
A facilitação da posse de armas trazida pelos decretos do governo não deveria, então, neutralizar a procura por CACs? Na opinião de especialistas e do presidente da Associação CAC Brasil, o aumento dos CACs reflete também o desejo de porte de arma, ou seja, de poder transportá-la para fora de casa e circular com o artefato em locais públicos.
“Hoje existe uma cultura mais forte de arma. A pessoa compra uma arma e quer poder usá-la, não só deixar guardada. Quer praticar o tiro esportivo. Mas outros também querem ter porte, embora a gente tente deixar muito claro que o CAC não tem porte, tem apenas porte de trânsito”, diz Resende.
“Não é possível dizer com certeza por que aumentou a procura. No entanto, é verdade que começaram a surgir grupos e fóruns que divulgam o que é correto por lei, que é o caminho para tirar uma licença de CAC, mas também a informação de que é mais fácil obter arma por meio do registro CAC do que pela Polícia Federal. Há despachantes nesses fóruns que dizem explicitamente, ‘se você quer ter porte de arma, se registre como atirador’. Essas práticas não são baratas. Portanto, essa explosão faz a gente suspeitar que essas pessoas não estão praticando tiro esportivo, participando de competições ou colecionando armas de valor histórico”, diz Natalia Polachi, do Sou da Paz.
“Hoje, o cidadão consegue a posse mais facilmente, mas o porte, não. Porte exige prova de que a pessoa vive sob ameaça, exige uma situação mais grave”, diz Polachi.
Por que o aumento de CACs pode ser um problema?
Um dos grandes problemas apontados por especialistas é que o impacto da maior circulação de armas no mercado legal pode se refletir, também, no mercado clandestino.
“O arsenal de armas e munições autorizado para CACs preocupa sobremaneira porque as munições vendidas a particulares no Brasil não são marcadas, o que impede rastrear o destino que recebem após a aquisição. Permitir que atiradores tenham 60 armas para praticar o esporte e que colecionadores tenham até 5 armas do mesmo modelo ignora o grave problema de desvio de armas de fogo e munições no país”, diz o Sou da Paz, em nota divulgada em novembro.
Segundo Polachi, há indícios de que a fiscalização não tem sido suficiente. A pesquisadora diz que não é possível afirmar se há mais desvios agora porque o banco de dados onde ficam registrados os CACs, que é do Exército, não está disponível para as polícias estaduais, então, quando um policial apreende uma arma, não vai conseguir consultar a origem dela se a origem for um CAC. “Essas armas só são rastreadas em casos muito específicos.”
Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública diz que”o impacto vem também do aumento de armas em circulação na sociedade brasileira”. “A sociedade fica inundada com novas armas de fogo. Há uma ligação do mercado legal com o ilegal por meio de roubos, esquemas com clubes de tiro e colecionadores mal intencionados. Um aumento no mercado legal acaba elevando o número de armas em circulação no mercado ilegal também. Pesquisas mostram que quanto mais armas, mais fácil é para criminosos obterem armas também.”
A questão do porte de trânsito também é vista com preocupação. Um decreto do governo de Michel Temer permitiu que atiradores levassem uma arma municiada consigo no caminho de casa para o local de prática de tiro.
Com os decretos de 2019, isso passou a valer também para caçadores e colecionadores. Especialistas dizem que isso cria problemas para a fiscalização, pois é difícil avaliar se o dono da arma está de fato indo a um local de treino.
“Do ponto de vista formal, não é porte, mas do ponto de vista prático, é”, diz Marques. “A legislação virtualmente garante o porte para o CAC sem que ele faça o treinamento necessário para isso. E aí os acidentes acontecem”, diz ele.
O Sou da Paz avalia, em nota pública, que “o preparo técnico em stands ou na mata em nada se compara ao preparo necessário para atuar em situações cotidianas dinâmicas e em meio a multidões”.
Resende, da Associação CAC Brasil, diz que a lei confunde os usuários e abre brechas para ilegalidade. “As pessoas muitas vezes querem vir para a categoria para achar que têm porte de arma. O que acaba acontecendo? A pessoa pega a arma, começa a transitar para cima e para baixo. Aí é parada pela polícia e, se não estiver indo para o clube de tiro, pode perder o registro, mas também não tem uma condenação, porque a lei é pouco clara”, diz Marcelo.
Para Marques, as mudanças na lei dificultam a tomada de decisão de agentes de segurança que deparam com uma pessoa com registro de CAC, mas que esteja usando sua arma fora do trajeto de sua casa para o local de prática.
O aumento do número de clubes de tiro também preocupa os especialistas. Uma investigação da Polícia Federal que teve início em fevereiro de 2019 expôs indícios de falsidade ideológica na emissão feita por instrutores de tiro de laudos de capacidade técnica.
Os instrutores credenciados são responsáveis pela emissão de laudos que atestam a capacidade técnica dos que requerem registro e de porte de arma de fogo para defesa pessoal junto à Polícia Federal e também dos que pretendem obter o Certificado de Registro (CR) como atiradores esportivos junto ao Exército Brasileiro.
Para conseguir os laudos, pessoas que buscavam comprar ou portar arma de fogo pagavam valores diferentes dos que costumam ser praticados no setor.
Em janeiro, a corporação deflagrou uma operação para fiscalizar instrutores credenciados pela Polícia Federal em São Paulo. Os agentes encontraram irregularidades em ao menos dez locais — por exemplo, autorizações em branco já assinadas por instrutores.
“O aumento do número de clubes abre brechas para fraudes, para atiradores que só querem andar armados”, diz Marques.