A análise do primeiro escalão das 27 unidades da Federação que tomaram posse em janeiro mostra que, assim como a quase totalidade dos demais postos de comando na política brasileira, o secretariado nos estados é majoritariamente branco.
Conforme reportagem de Ranier Bragon e Lucas Marchesini, na Folha, dos cerca de 570 cargos de elite dos Executivos estaduais, apenas 14% são comandados por negros (pretos e pardos) ou por pessoas que, embora tenham características físicas de brancos, se declaram pardas. Algumas unidades da Federação ainda estão em processo de reestruturação das pastas.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 56% da população brasileira se declara preta (9%) ou parda (47%).
Dos 27 governadores e governadoras, 18 são brancos, 8 se declaram pardos e 1, Jerônimo Rodrigues (PT-BA), indígena.
O caso dos chefes dos Executivos estaduais é ilustrativo de como, na prática, a presença negra nos postos de comando da política tende a ser ainda menor do que a declarada.
O governador afastado do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), por exemplo, tem fenótipo de uma pessoa branca —e assim se declarou na disputa eleitoral de 2018. Mas em 2022 trocou sua autodeclaração para pardo.
No caso dos secretários de estado, a Folha considerou os principais cargos de primeiro escalão, usou dados disponíveis de autodeclaração (no caso de secretários que se candidataram nas eleições de 2022) e fez análise da característica física dos demais, tendo enviado os dados coletados para a assessoria de todos os governos estaduais.
Uma das maiores referências do ativismo pela igualdade racial no Brasil, o professor e escritor Helio Santos afirma que o número real de negros ocupando secretarias de estado certamente é menor e que, se eles fossem submetidos a uma banca de heteroidentificação (usada em algumas instituições onde há cotas raciais para validar ou não a autodeclaração das pessoas), boa parte não seria aprovada.
“Quando se fala que as cotas raciais estão sob ameaça, digo que, na minha avaliação, elas sempre estiveram. De todas as formas de racismo, e há várias delas, a mais vil é quando a sociedade desenvolve e aprova políticas para reparação e várias pessoas não negras dizem: ‘Olha, existe essa política que beneficia os negros, mas eu posso fraudá-las porque eu tenho o privilégio da impunidade'”, diz o professor.
De acordo com Santos, que é presidente dos conselhos deliberativos da Oxfam Brasil e do Cedra, um sinal positivo ocorreria se ao menos 30% das secretarias estaduais fossem comandadas efetivamente por negros.
“Para causar um mínimo impacto, isso jamais deveria ser inferior a 30%, cerca de metade da população negra [56%]. Estamos em 2023, após o black lives matter, depois da eleição de uma vice-presidente negra [Kamala Harris] nos EUA e de uma vice-presidente negra [Francia Márquez] na Colômbia. Imaginava-se um avanço maior no Brasil, que é pioneiro na América Latina nas políticas de promoção da igualdade racial.”
A Bahia, onde 80% da população é negra, é o único estado em que mais da metade do secretariado se declara preto ou pardo (17, contra 10 brancos).
Região onde há a maior concentração proporcional de brancos no Brasil (75%), o Sul é também onde a presença de negros em postos de comando dos Executivos estaduais é menor.
Há apenas dois negros, o secretário de Fazenda do Paraná, Renê de Oliveira Garcia Júnior, e a secretária extraordinária de Inclusão Digital do Rio Grande do Sul, Lisiane Lemos.
Presidente nacional do Tucanafro (núcleo da militância negra do PSDB), Gabriela Cruz diz que a ainda maciça predominância de brancos na titularidade de secretarias de estado contrasta não só com o espelho da população, mas com a quantidade “de negros e negras que têm competência e qualificação para trabalhar não só nas áreas de igualdade racial, mas em diversas áreas de conhecimento”.
Gabriela —que integrou a equipe de transição do governo Lula (PT) e hoje é diretora na Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo do governo Eduardo Leite (PSDB-RS)— afirma, porém, ver avanços, e cita seu estado como exemplo.
“Tanto no Legislativo quanto no Executivo do Rio Grande do Sul, pela primeira vez na história há uma presença massiva de representatividade negra”, diz, se referindo, entre outros exemplos, à nomeação de Lisiane, à presença de outros negros e negras em postos de comando no Executivo e à histórica eleição das primeiras parlamentares negras para a Assembleia Legislativa do Estado, Bruna Rodrigues (PC do B) e Laura Sito (PT).
“Evidente que ainda falta muito, mas é um avanço ver a presença negra em um mural de secretários onde nunca se viu nenhuma cara preta.”
A Folha mostrou na última sexta-feira (10) que a indicação dos secretários de estado também deixa a desejar na questão de gênero. Os novos governos dos 26 estados e do Distrito Federal terão, em média, 28% dos cargos de primeiro escalão ocupados por mulheres, apesar de elas serem maioria na população (51,1%).
Dos governadores eleitos, há apenas duas mulheres, Raquel Lyra (PSDB-PE), e Fátima Bezerra (PT-RN).
O estado de São Paulo reflete essa realidade em relação a negros e mulheres. O primeiro escalão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem apenas 5 mulheres e 2 pessoas negras para as 25 secretarias estaduais.
No governo Lula, das 37 pastas, 10 são ocupadas por autodeclarados negros, incluindo Juscelino Filho (Comunicações), que tem fenótipo de branco e assim se declarou à Justiça Eleitoral em 2014 a 2018. Em 2022, mudou a declaração de sua cor/raça para pardo. Há ainda dois autodeclarados indígenas, Wellington Dias (Desenvolvimento Social) e Sônia Guajajara (Povos Originários). São 26 homens e 11 mulheres.
A falta de diversidade racial e de gênero nos legislativos também é uma realidade, apesar da criação de cotas e incentivos à inserção de negros e mulheres na política.
Em 2022, apenas cerca de 25% dos congressistas eleitos se declararam pretos ou pardos, isso sem contar os vários casos controversos. Já as mulheres são cerca de 15% no Senado e 20% na Câmara.
Governos dizem valorizar diversidade
O Governo do Rio Grande do Sul afirmou que “a diversidade e a representatividade negras, bem como de outros recortes sociais, é pauta permanente do governo, que não se encerra apenas na composição do primeiro escalão”.
Santa Catarina disse que “a avaliação para cada posição de liderança dentro do governo estadual levou em consideração apenas experiência e competência técnicas”, resposta similar ao de Roraima, segundo quem “os critérios para a composição do primeiro escalão de governo levam em consideração quesitos técnicos”.
O Governo de São Paulo afirmou que investe “na valorização da diversidade em todas as esferas e em todos os sentidos”, trabalhando para que “todos os 46 milhões de paulistas se sintam representados e acolhidos nas escolas, no serviço de saúde, nas delegacias, sem distinção de raça, gênero, religião ou orientação sexual”.
O Executivo de Minas Gerais disse ser um desejo da atual gestão a ampliação “da participação das minorias representativas em cargos de liderança”.
“Vale dizer que, em março de 2019, o Governo de Minas lançou o Transforma Minas, ferramenta de renovação do processo seletivo para vagas de liderança e cargos estratégicos da administração pública”, priorizando critérios técnicos em detrimento de indicações políticas.
Em nota, o Governo da Bahia listou autodeclarados indígenas (como o próprio governador) e negros em pastas e órgãos que concentram algumas das principais atividades do estado.
Espírito Santo afirmou que preza pela diversidade de gênero e raça na composição da equipe, “tanto que o secretariado é formado por homens, mulheres, brancos (as), negros (as) e indígenas”, o que ocorre nas demais esferas da administração.
O Acre afirmou que nos primeiros quatro anos do governo Gladson Cameli foram adotadas políticas de diversidade e direitos humanos. “Na nova gestão, todas essas políticas serão reforçadas, assegurando os direitos e garantias das liberdades individuais, equidade, justiça social e respeito a mulher, aos negros, índios e ao público LGBTQIA+.”
Maranhão afirmou que a composição do secretariado ainda não é definitiva e que deve passar por reforma administrativa em março, com prováveis novos nomes à frente das pastas.
O Governo de Sergipe afirmou não ter ainda como quantificar a quantidade de negros no primeiro escalão porque a autodeclaração de cada um ainda está sendo recebida.
O Pará disse que “não realiza questionamentos sobre identidade de gênero, cor ou raça no processo de nomeação dos servidores do estado para não ocorrer distinção de pessoas”.
Os demais governos de estado não responderam às tentativas de contato.