Em 13 de maio de 1888, o Senado aprovou a extinção do trabalho escravo no Brasil. Imediatamente a Princesa Isabel assinou a célebre Lei Áurea. A tramitação do projeto no Legislativo foi rápida — apenas cinco dias. Levou muito tempo, entretanto, para que fossem tomadas medidas de reparação histórica capazes de restituir a dignidade recusada aos ex-escravizados. E decorridos 136 anos ainda tais providências têm se mostrado insuficientes para garantir direitos iguais aos negros.
Um dos principais temas em debate no Congresso Nacional no momento é justamente a prorrogação das cotas afirmativas no serviço público, caminho apontado por pesquisadores como indispensável para garantir uma maior presença de pretos e pardos no topo do funcionalismo, mas que divide parlamentares.
Caso não seja renovada até 10 de junho, a Lei 12.990, de 2014 perde a validade, o que abre brecha para a realização de concursos sem a reserva de vagas específicas para pessoas negras, tenham elas como objetivo os cargos mais elevados ou outros níveis de inserção no serviço público.
No dia 8 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou, em segundo turno, o projeto de lei (PL) 1.958/2021, que prorroga essa política pública por dez anos. O projeto também amplia de 20% para 30% a reserva de vagas em concursos públicos federais para negros. E inclui nessa cota pessoas pardas, indígenas e quilombolas. A redação aprovada deriva do substitutivo ao projeto original, que previa somente a ampliação para 20% da cota reservada a negros. A matéria, obteve 17 votos favoráveis e recebeu 8 contra. Agora segue para a Câmara dos Deputados, salvo recurso para análise em Plenário.
Apresentada pelo senador Paulo Paim (PT-RS), a proposta foi relatada pelo senador Humberto Costa (PT-PE) e mostrou-se um tema controverso não apenas para os parlamentares. Consulta pública disponível no Portal e-Cidadania apontava até o dia 6 de maio que 19,4 mil dos respondentes eram contrários ao PL, enquanto 13,4 mil se diziam favoráveis.
O debate entre senadores evidencia que o projeto ainda será foco de muita divergência. O autor do projeto define as cotas como uma forma de reparação histórica:
— Este país tem uma dívida com o povo negro. O povo negro é 56% da população e é um absurdo que não tenhamos espaço — reclamou Paim.
Na mesma linha, Humberto Costa (PT-PE) reforça que as cotas precisam ser renovadas para garantir o acesso de mais pretos e pardos ao funcionalismo federal:
— A representação desses segmentos no serviço público aumentou, só que não aumentou o suficiente para o serviço público ser um retrato, um espelho da proporção que existe na sociedade entre etnias, raças. Nós temos que buscar isso, e será no momento em que nós tivermos conseguido isso que as cotas deixarão de ser necessárias.
Contrário ao benefício, Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) argumenta que a reserva de vagas para grupos específicos anularia a validade das cotas para universidades, por exemplo:
— Eu não quero ser operado por um médico que foi admitido no hospital porque entrou por uma cota. Se nós dissermos que, mesmo depois de formado em uma universidade, ainda persiste a diferença, ainda persiste a necessidade de tratamento especial por causa da cor, nós forçosamente estamos dizendo que todas as cotas, que todos os benefícios que fizemos anteriormente não serviram para nada.
Flávio Bolsonaro (PL-RJ) defende a aprovação apenas de “cotas sociais”:
— O pobre tem um ensino público de má qualidade. E, na hora de competir com quem tem dinheiro, preto ou branco, fica em desvantagem. Que a gente acabe com essa distinção da sociedade em função da cor da pele.
Pesquisas
Se a política pública está longe de ser unanimidade na opinião de parlamentares e de brasileiros, pesquisadores apontam que ainda é indispensável um sistema de cotas para tornar o serviço público mais inclusivo e mais a cara do brasileiro. Há mais de 55% de pretos e pardos na população brasileira, mas apenas 35% dos vínculos do Executivo Federal, nível onde se concentram as maiores remunerações do funcionalismo, são ocupados por pessoas negras.
Levantamento do instituto República.org intitulado “Onde estão os negros no serviço público?“ busca lançar luz sobre o acesso de pessoas pretas e pardas às funções de liderança nesse campo de trabalho.
Divulgado em 2022, o estudo revela que o número de servidores negros que ingressaram no funcionalismo federal subiu de 17%, em 2000, para 43% em 2020. Um aumento de mais de 150% no número de pessoas pretas e pardas que ingressaram na burocracia estatal em duas décadas.
Mas o abismo entre negros e brancos ainda é grande. A pesquisa aponta que, mesmo sendo a maioria da população brasileira, as pessoas negras representam menos de 15% do total de cargos de direção no Executivo federal. E as mulheres negras são as que menos ocupam cargos de chefia. Em 2020, apenas 1,25% das funções mais elevadas e de melhor remuneração nos ministérios, as chamadas “Direção e Assessoramento Superior (DAS-6)” estavam nas mãos desse segmento.
— Os números mostram que a desigualdade racial no serviço público brasileiro é enorme e que há uma disparidade substancial na representação de pessoas negras, principalmente em cargos de tomada de decisão. A representatividade é desproporcional em relação à população geral. Isso é um problema grave, pois a falta de diversidade nos cargos de liderança pode afetar diretamente as políticas públicas e as decisões tomadas pelo governo. Sem uma representação adequada, as necessidades e as perspectivas das comunidades negras e vulnerabilizadas podem ser negligenciadas — alerta Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação do Instituto República.org.
Doutora em Ciência Política, Campagnac acrescenta que a Lei de Cotas é apenas um dos caminhos para assegurar o acesso de pessoas negras aos principais cargos da administração pública.
— Há muitas barreiras estruturais relacionadas ao próprio processo histórico do nosso país que dificultam o acesso de pessoas negras no serviço público. Isso inclui falta de oportunidades de estudo, capacitação, estereótipos arraigados e até discriminação em processos seletivos internos para cargos de liderança em governos. Por ser um fenômeno multifacetado, o acesso de pessoas negras a esses espaços por meio de cotas em concursos é apenas uma das maneiras de mitigar o problema, não de resolvê-lo totalmente, mas já pavimenta um caminho para que o serviço público seja mais diverso e represente de forma menos desigual a diversidade da população brasileira — disse.
Mudança lenta
Outro levantamento, este da pesquisadora Tatiana Dias Silva, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), confirma a baixa representatividade das pessoas negras nos principais cargos do funcionalismo. De acordo com o estudo, publicado em 2023, são negros 35,1% dos servidores públicos civis no Executivo federal enquanto pretos e pardos compõe 55,4% da força de trabalho nacional.
No artigo, “Ingressantes no Executivo Civil Federal: uma análise no contexto da Lei de Cotas no serviço público”, a pesquisadora sistematiza dados sobre o ingresso de servidores públicos negros no Executivo federal ao longo de vinte anos. Ela observa que negros são quase metade do serviço público (incluindo estados e municípios), mas são minoria nos cargos de alta gestão.
“Ainda que mulheres e negros sejam maioria no serviço público, sua presença é majoritária no nível municipal, enquanto são menos presentes no nível federal, que conta com remunerações médias mais elevadas. Enquanto 57,8% dos servidores municipais têm remuneração de até R$ 2,5 mil, apenas 9,5% dos servidores federais estão nessa faixa remuneratória”, apontou a pesquisadora.
Ao analisar os dados sobre servidores ativos que ingressaram a partir das últimas duas décadas no serviço público civil do Executivo federal, o que corresponde a pouco mais de 325 mil funcionários permanentes, a pesquisadora constatou que os servidores que entraram no ano de 2000 eram majoritariamente brancos (76,5%), tendência que foi se alterando ao longo do tempo.
Em 2000, no início da série analisada, pardos e pretos somados eram apenas 16,8% dos servidores civis federais que tomaram posse. Quase vinte anos depois, 38,1% dos novos servidores se identificavam como negros, um aumento de 127%.
Além da lei que estabeleceu cotas para pretos e pardos em concursos públicos federais por dez anos, a redução da subnotificação racial também ajuda a explicar o incremento de negros nos quadros da União, de acordo com a pesquisa.
Em 2019, os novos servidores dividiram-se entre homens brancos (30,6%), mulheres brancas (26,2%), homens negros (22,3%) e mulheres negras (15,9%) – além de indígenas e amarelos (1,4%) e aqueles cuja cor ou raça não foi informada (3,7%).
Poucos negros no topo
Se analisadas as carreiras mais bem remuneradas e de maior prestígio no Executivo federal, a situação é ainda mais desigual segundo o levantamento.
Embora brancos ainda sejam maioria, houve crescimento entre 12% e 17% na participação de negros nas carreiras estudadas, superior ao crescimento de 9% observado para o conjunto do funcionalismo nesse período.
Após 2014, houve aumento da participação de negros em todas as carreiras examinadas pelo estudo. Destaque para o cargo de diplomata, em que a participação de negros se elevou em 5,8 pontos percentuais na última década e 8,4 pontos percentuais nos últimos vinte anos.
“O ponto positivo é que, na última década, além de ter havido redução da subnotificação racial em quase todas as carreiras selecionadas houve aumento dos servidores negros, ainda que em nível insuficiente para promover mudanças mais significativas no perfil racial das carreiras”, aponta a pesquisadora.
Gargalos
Entre os principais gargalos apontados para um avanço maior da representatividade negra está a escassez de concursos. O levantamento indica que parte significativa das carreiras não foram impactadas pela Lei de Cotas no serviço público justamente porque não foram realizados concursos de 2014 até a conclusão da pesquisa.
Outro problema recorrente foi o fracionamento de vagas, prática comum em concursos para docentes no ensino superior segundo a pesquisa “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, desenvolvida por um grupo de pesquisadores em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU).
Segundo o levantamento, das 46.300 vagas abertas em concursos públicos e processos seletivos simplificados na última década, ao menos 9.129 vagas deixaram de ser reservadas para candidatos negros.
Ao todo, foram analisados aproximadamente 10 mil editais de processos de seleção, publicados no período de 10 de junho de 2014 a 31 de dezembro de 2022.
Atualmente, a Lei de Cotas obriga a reserva de vagas quando a oferta é igual ou superior a três candidatos. De acordo com os autores, é disseminada a prática de fracionar o número de vagas em editais diferentes ou em especialidades dentro de um mesmo edital.
Em alguns casos os cargos eram fracionados por diferentes campus da instituição. Em outros, a vaga para o mesmo cargo foi aberta em diferentes editais, publicados com poucos dias de diferença.
Outros Poderes
O descompasso entre o percentual de negros na população e a ocupação de vagas também se repete em outros Poderes. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas 12,8% dos magistrados eram negros conforme levantamento de 2021. Estima-se que, somente em 2055, no melhor cenário, seria possível contar com 22% de juízes e juízas negros no Judiciário.
Estudo do Comitê pela promoção da igualdade de gênero e raça do Senado mostrou que, em 2021, pretos e pardos eram apenas 27% dos servidores efetivos da Casa. A expectativa é que o índice aumente no próximo levantamento já que em 2022 foi realizado o primeiro concurso do Senado sob a vigência da Lei de Cotas no serviço público.
Uma das aprovadas foi Gracielle Azeredo, analista legislativa – Assistente Social. Ela ficou em primeiro lugar na lista de cotas e em terceiro na concorrência geral. Tomou posse em janeiro de 2023. Filha de pai metalúrgico e mãe faxineira, Gracielle disse que sua aprovação é uma vitória das políticas públicas e coletiva.
— Chegar ao Senado, vindo de onde eu vim, não é apenas uma conquista pessoal, mas uma vitória coletiva. É uma vitória da minha família, mas também uma vitória das políticas públicas, dentre elas a política de cotas nas universidades e no serviço público. Uma conquista como essa com certeza gera um impacto muito positivo, permitindo que minha família e eu tenhamos melhores perspectivas para o futuro, permitindo que eu retribua todo o cuidado que me foi oferecido pelos meus pais e irmãs e também que eu possa oferecer melhores oportunidades para os que vieram depois de mim — avalia.
Gracielle tem a percepção de que o serviço público tem ficado mais com “a cara” da população brasileira nesses últimos dez anos:
— O serviço público ficou mais parecido com a população brasileira, mais representativo, mais negro, mas ainda não é o momento de parar. Essa política afirmativa precisa avançar e ser aperfeiçoada. Precisamos enegrecer ainda mais o serviço público.
O que diz o projeto ?
O texto reserva para pessoas negras, indígenas e quilombolas 30% das vagas disponíveis em concursos públicos e processos seletivos simplificados de órgãos públicos, sempre que forem ofertadas duas ou mais vagas. Quando esse cálculo resultar em números fracionários, haverá o arredondamento para cima se o valor fracionário for igual ou superior a 0,5, e, para baixo, nos demais casos.
A reserva também deve ser aplicada às vagas que, eventualmente, surgirem depois, durante a validade do concurso
Autodeclaração
Será considerada pessoa preta ou parda aquela que se autodeclarar dessa maneira, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Serão consideradas indígenas as pessoas que se identificarem como parte de uma coletividade indígena e forem reconhecidas por ela, mesmo que não vivam em território indígena. Como quilombolas serão considerados aqueles que se identificarem como pertencentes a grupo étnico-racial com trajetória histórica própria e relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra.
Comissões
O relator incluiu parâmetros mínimos para o processo de confirmação complementar à autodeclaração. Entre eles, a padronização de regras em todo o país, o uso de critérios que considerem as características regionais, a garantia de recurso e a exigência de decisão unânime para que o colegiado responsável pela confirmação conclua por atribuição identitária diferente da declaração do candidato.
Reportagem: Rodrigo Baptista
Edição de texto: Nelson Oliveira
Edição de imagens e multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Fernando Ribeiro
Imagem de capa: Arrowsmith2/Adobe Stock