“Você fica aqui, atás do presidente”, ouviu a primeira-dama Rosângela da Silva de duas senhoras do cerimonial do Parlamento português, durante um evento em Lisboa, em abril. “Não, amor, eu não fico atrás do presidente. Sempre fico ao lado dele”, corrigiu Janja, de 57 anos, segurando firme nas mãos de Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto acompanhava seus passos na cerimônia. Desde então, o gesto tem se repetido. Desembarcando do avião presidencial ou em solenidades, Janja quer estar ao lado do presidente, nunca atrás.
Nem sempre, porém, tem seu desejo atendido. Em entrevista a Jeniffer Gulart, do O Globo e ELA, concedida numa terça-feira no Palácio da Alvorada, em Brasília, a primeira-dama falou sobre a vontade de ter um gabinete formal no Palácio do Planalto, onde o presidente despacha. Esse plano foi descartado por conselheiros de Lula que viram risco de atrair a fúria da oposição. Janja contesta a decisão: “A primeira-dama dos Estados Unidos tem um gabinete oficial. Ela tem agenda, tem protagonismo e ninguém questiona isso. Por que o Brasil questiona? Por que aqui tudo parece mais difícil?”.
Em quase duas horas de conversa, a socióloga paranaense também falou sobre os desafios de ampliar a presença feminina na política e o incômodo ao ver reuniões em Brasília dominadas por homens. Em dez meses no poder, Lula demitiu três mulheres que ocupavam postos-chaves — Daniela Carneiro do Ministério do Turismo, Ana Moser do Ministério dos Esportes e Rita Serrano da presidência da Caixa Econômica Federal — para abrigar outros nomes indicados por caciques do Congresso. “Não é porque eu sou mulher do presidente que vou falar só de batom”, desabafa, antes de dizer que prefere ser chamada de “você” em vez de senhora.
Entusiasta do design nacional, Janja fez questão de escolher cada um dos looks que usaria neste ensaio e revelou, em primeira mão, que está organizando um evento de moda e empreendedorismo com a modelo britânica Naomi Campbell. Da posse de Lula à coroação do rei Charles III, as peças usadas pela primeira-dama são pensadas: “Na coroação, disseram que eu estava vestida de abóbora. Aquele vestido era da cor da campanha contra a exploração sexual infantil. É óbvio que eu quero passar uma mensagem”. A seguir, algumas delas.
Antes de o presidente Lula assumir, você dizia querer ressignificar o papel de primeira-dama. Conseguiu fazer isso?
O papel de primeira-dama sempre foi muito quadrado, colocado numa caixa em que a mulher do presidente recebe pessoas e faz caridade. Eu sou socióloga e nunca fui de gabinete. Ia para o campo. Achava que podia trazer essa experiência para cá. Querendo ou não, quase tudo que falo ganha amplitude. Por que não fazer isso por pautas que são relevantes? Mais mulheres na política, violência contra a mulher, exploração sexual de crianças e adolescentes… Isso é mais importante do que ficar só fazendo jantar ou chá das cinco. Por que a primeira-dama não pode também estar contribuindo com o desenvolvimento do Brasil? Continuo indo ao supermercado e à farmácia, e as mulheres me dizem que eu estou no caminho certo. O presidente sempre disse para mim: “Você vai fazer o que achar que tem que fazer”.
Você sai dirigindo em Brasília?
Eu dirijo. Vai um segurança junto comigo. Quero normalizar isso. Não quero me encastelar. Já falei para os meninos que eu quero sair. Vou ao salão, mercado, farmácia, shopping. Olho todas as gôndolas e adoro uma farmácia. Gosto de ir às lojas de cosméticos comprar meus cremes de cabelo.
Como tem aproveitado a posição de primeira-dama para ampliar a presença de mulheres na política?
Na campanha, falava com a Gleisi (Hoffmann, presidente do PT): “Está difícil, precisamos de mais mulheres”. Já nos recusamos a sair na foto como cota. Na transição, falamos de mais mulheres nos ministérios. Isso de alguma forma foi atendido. Passamos (ela e o presidente) os fins de semana a sós e conversamos muito. Às vezes, a gente tem umas discussões um pouco mais assim… fortes. Mas é isso. Tivemos duas perdas (de mulheres) no governo. Faz parte (a entrevista foi realizada na véspera da terceira perda, a demissão de Rita Serrano da presidência da Caixa). É necessário discutir a participação feminina no Congresso. O Brasil está em penúltimo lugar na América Latina e no Caribe em número de mulheres no Parlamento. Isso é vergonhoso. Precisamos ter 50% de cadeiras. A cota de 30% (de candidaturas) não está adiantando. As agressões que as mulheres sofrem, nas redes sociais e pessoalmente, têm feito muitas desistirem de seguir na política.
Você escreveu ao Le Monde que as mulheres estão mais expostas à violência da guerra. O que poderia ser feito por elas na guerra entre Israel e Hamas?
Quando eu vi que foi uma mulher representante do governo americano (Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas) que vetou a resolução do Brasil, fiquei muito triste. Ela veio ao Brasil em maio e conversamos muito. A gente ia fazer um evento em Nova York sobre mulheres, segurança e paz. Aquele voto me doeu.
Você deu alguma ajuda para acelerar a lideração dos pets em Irsael?
Comecei a receber mensagens e falei com o presidente: “Como a gente vai fazer com os bichinhos?” E ele: “Mas os bichinhos não estão vindo?” Eu falei: “Não”. Ele falou com o comandante da FAB (Força Aérea Brasileira), e no dia seguinte já estavam os pets no avião. Mas acho que já estavam olhando para isso.
O que diria a quem afirma que, por não ter sido eleita, não deveria se meter em política?
Não me incomoda. Quem faz essa crítica não enxerga o mundo em que a gente vive hoje. Vou continuar ao lado do presidente, porque acho que é esse o papel que tenho que desempenhar. Não é uma questão de ser eleita ou não. Existem ministros que concorreram e ganharam a eleição ao Senado ou à Câmara, mas a maioria não foi eleita e está lá. Falam muito de eu não ter um gabinete, mas precisamos recolocar essa questão. Nos EUA, a primeira-dama tem. Tem também agenda, protagonismo, e ninguém questiona. Por que se questiona no Brasil? Vou continuar fazendo o que acho correto. Sei os limites. Eu quero saber das discussões, me informar, não quero ouvir de terceiros. Falaram que fui a única primeira-dama que entrou com o presidente no dia da reunião do G-20. Entrei porque ele não soltou da minha mão e falou: “Você está comigo e vai entrar comigo”. Eu me sinto segura.
Como é ser a única voz feminina no entorno do presidente?
Há pouquíssimas mulheres mesmo, mas, veja bem, não participo das reuniões do presidente Lula. O povo acha que eu fico lá sentada. Não faço isso. Todo dia, ele tem uma reunião com os ministros do Palácio do Planalto, mas não estou nesses espaços de decisão. Minhas conversas com o presidente são dentro de casa, no nosso dia a dia, no fim de semana, quando a gente toma uma cerveja. Quando estou incomodada, eu vou lá e questiono. Não é porque eu sou mulher do presidente que vou falar só de marca de batom.
Como é sua relação com as ministras do governo?
Tem umas de quem sou mais próxima, como a Cida (Gonçalves, das Mulheres). Também converso bastante com a Anielle (Franco, da Igualdade Racial). Sempre falo para a Cida: “Se te botarem lá atrás (nas reuniões), cutuca o homem e o faz sair para você sentar”. E não é só no Brasil. Em um evento no Parlamento de Portugal, duas senhoras do cerimonial falaram: “Seu lugar é atrás do presidente”. Falei: “Não, amor. Eu não fico atrás do presidente, sempre fico ao lado dele”. A esposa do António Costa (primeiro-ministro do país) me falou que também sofre com isso. Basta uma que faz diferença para que todas façam.
Quais são as mulheres que te inspiram na política?
Michelle Obama. Não tem como não falar dela. Tem tantas mulheres que participaram da História do Brasil e estão ocultas, desde Maria Quitéria, Anita Garibaldi, Berta Luz, que assinou a declaração universal dos direitos humanos na ONU.
Já disse ser alvo de mentiras, ameaças e ataques, até mais que o presidente Lula. Como enfrenta isso?
A maioria dos ataques é pelas redes sociais. Contra a minha honra, exposição de deep fake(vídeos e imagens criados por meio de inteligência artificial), usando meu rosto em outro corpo. Sou o alvo preferido dos bolsonaristas. Isso é fato. Por algum motivo, incomodo. Tive uma conversa com uma diretora da Google sobre empreendedorismo feminino. E falei: “Sabia que digitando no Google ‘Janja prostituta’ aparecem trocentas fake news?”. Ficaram sem resposta, porque ganham dinheiro com isso. As big techs são responsáveis por muita violência digital. Já fiz denúncias. Tenho três processos na Justiça. Tem também a violência e o machismo do entorno. Entendo, mas não aceito.
Do entorno presidencial?
Do entorno próximo. Não está no meu controle. O que as pessoas pensam e falam não está na minha governabilidade. Eu tento não levar para o lado pessoal e responder com trabalho.
O presidente Lula é um homem de 78 anos. Como é a desconstrução do machismo no cotidiano?
É diário, e ele está aberto. Não posso exigir de um homem de 78 anos, com toda a bagagem, que vire algumas chaves de uma hora para outra. Não funciona assim com ninguém.
No cotidiano doméstico, há algum exemplo de reflexão sobre desconstrução do machismo?
Aqui é meio difícil. Às vezes, tenho saudade de passar um pano no chão. Antes de ele ser eleito, me ajudava a lavar louça, coisa que talvez ele não fizesse antes, mas nunca perguntei.
O presidente Lula não tem contato com redes sociais nem celular. Já disseram que você é o algoritmo do presidente. O que leva a ele?
Em um momento de muita turbulência, fico mais conectada e dou informações, por mais que cheguem os relatórios oficiais. Acho importante contar o que as pessoas estão comentando. Procuro balancear para não o bombardear. Ele me fala muito que, quando você começa a raciocinar só pelas redes, perde um pouco noção da realidade. Ele não pauta decisões de governo pelas redes sociais.
Você fez uma missa em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré e agradeceu pela recuperação do presidente. Quando precisou recorrer à fé?
Quando perdi minha mãe para a Covid-19, em 2020. Tinha me preparado para ela morrer de Alzheimer, já que havia o diagnóstico desde 2017. Foi um momento difícil, e me apaguei muito à fé. Ainda não superei a morte dela. É um processo. E em todo momento da campanha tive muito medo de que alguma coisa acontecesse com ele (Lula). Por isso, eu fui ao Círio de Nazaré. Teve um dia em que estávamos em um hotel em Fortaleza, e a luz apagou. Eu me joguei na frente dele e o abracei. Disse: “Se alguém tem que morrer aqui, serei eu, não você”.
Os ataques de 8 de janeiro te assustaram?
Se eu estivesse aqui (em Brasília), acho que tinha descido do hotel (onde estava hospedada enquanto o Alvorada estava em reforma). Não ia conseguir ficar vendo aquilo tudo. O meu desespero era porque as cachorras estavam no hotel. Liguei para lá e disse: “Saiam daí com as cachorras”. Tinha muito medo do que poderia acontecer com elas.
Como é viver no Palácio da Alvorada?
É um privilégio e um orgulho estar aqui. A gente lutou e sofreu muito. Óbvio que não tem uma coisa pessoal, íntima. As coisas não são minhas. Roupa minha e roupa dele, que vejo se precisa lavar, não deixo solto. Só não consigo cozinhar, que é uma coisa que eu gosto. Mas o cardápio da semana sou eu que decido.
De qual hábito vocês não abriram mão?
Ficar em casa, tomar nossa cervejinha, ouvir música na caixinha de som. Na minha playlist tem MPB, samba, Maria Rita e Zeca Pagodinho. Toda segunda-feira a gente assiste a um filme de faroeste. Não temos vida fora de casa.
Qual sua relação com espelho e com a autoestima?
Já foi ruim. Hoje, está bem melhor. A autoestima tem altos e baixos. Meu marido é muito bom, porque sempre fala que eu estou muito linda. Sou uma mulher de 57 anos. Obviamente vou ver coisas. Podia melhorar aqui, emagrecer, engordar… Tento fazer ginástica e comprei, no fim do ano passado, uns equipamentos de pilates, porque pratico há 15 anos e, desde a pandemia, estou muito relapsa. Aqui, tenho academia, mas quase não estou fazendo. Estou um pouco revoltada comigo.
Qual mensagem pretende passar com os looks?
Uso as roupas mais com intuito de as pessoas conhecerem a moda brasileira. As pessoas comentam meus looks, umas bem, outras mal. Na coroação do Rei Charles III, disseram que eu estava vestida de abóbora. Aquele vestido era da cor da campanha contra a exploração sexual infantil. É óbvio que eu quero passar uma mensagem.
Você tem preferência por peças da Helô Rocha, da Rafaella Caniello e do Airon Martin. Quem te ajuda a escolher os looks?
Quem escolhe sou eu. Mas, às vezes, os estilistas sugerem algo que não vi ainda da coleção. Comecei com a Helô, que já seguia nas redes sociais. Estava no restaurante da Bela Gil, e o ex-marido dela, o JP (o empresário e designer João Paulo Demasi), disse que a Helô poderia fazer o meu vestido de noiva. A gente criou o modelo juntas. Por meio dela, conheci a Rafaella (Caniello, estilista à frente da marca Neriage). Tem também a Heloisa Strobel (fundadora da Reptillia), que trabalha com transformação ecológica dos tecidos. De Brasília, estou usando mais Letícia Gonzaga, que desenvolve roupas mais formais. Faço questão de usar sempre uma roupa diferente quando vou aos eventos internacionais, porque a gente precisa falar mais sobre moda brasileira e divulgar nossos estilistas. Vou te contar em primeira mão: estamos construindo um projeto com a Naomi Campbell.
Qual?
Ela tem um projeto de empreendedorismo de moda e me procurou. Conversamos sobre a ideia de construir um evento no ano que vem sobre moda e empreendedorismo, para conectar diversas pontas e desenvolver potencialidades.
Você disse que ia instituir a democracia do tênis, mas muitas cerimônias exigem uma roupa formal. A moda aprisiona ou empodera?
Empodera. Mesmo com tênis, às vezes, eu me sinto muito empoderada e estou vendo que outras mulheres se espelham nisso. Como você vai subir num palanque de salto? Impossível. Minha vida toda eu trabalhei nas comunidades indígenas e rurais, diretamente com agricultores. Como é que eu vou de salto? Tênis e bota de campo sempre fizeram parte do meu figurino. O salto é muito mais novidade na minha vida.