Relatora de uma ação que contesta a produção de um dossiê contra 579 servidores públicos opositores ao governo Bolsonaro, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) votou nesta nesta quarta-feira (19) para suspender todo e qualquer ato do Ministério da Justiça de produção ou compartilhamento de informações sobre cidadãos que se intitulam antifascistas. Pelo entendimento de Cármen, a pasta comandada pelo ministro André Mendonça fica proibida de levantar dados sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo. O procurador-geral da República, Augusto Aras, por outro lado, defendeu o direito do Executivo de colher informações e disse que “relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal”. O julgamento será retomado nesta quinta-feira.
Em um voto com duros recados ao Palácio do Planalto, Cármen Lúcia disse que o Estado “não pode ser infrator”, ressaltou que “não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer seja” e elogiou a atuação da imprensa, que revelou a existência do dossiê. “O proceder de dossiês, pastas, relatórios, informes sobre a vida pessoal dos cidadãos brasileiros sobre suas escolhas não é nova neste País, e não é menos triste termos que voltar a este assunto quando se acreditava que era apenas uma fase mais negra de nossa história”, disse a ministra. “Não compete nem a órgão estatal nem sequer a particulares fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O uso ou abuso da máquina estatal mais ainda para a colheita de informações de servidores com postura política contrária a qualquer governo caracteriza, sim, desvio de finalidade, pelo menos em tese.”
Conhecida pela posição a favor dos direitos humanos, da liberdade de expressão e da democracia, Cármen é a relatora da ação do partido Rede Sustentabilidade que contesta a produção do dossiê, revelado pelo site de notícias UOL. A Rede pedia ao Supremo a abertura de inquérito para verificar eventual crime cometido por Mendonça e seus subordinados ao monitorar opositores ao governo de Jair Bolsonaro. O partido também quer que a pasta informe o conteúdo de inteligência produzido em 2019 e 2020, e se abstenha de produzir relatórios sobre integrantes do movimento antifascismo. No seu voto, Cármen suspendeu, por ora, a produção de qualquer tipo de monitoramento.
A ministra também frisou ao longo do voto que “todos nós, governantes, governados, agentes e servidores públicos, nos submetemos à Constituição e às leis da República”. “E ameaçados, ou lesados, os cidadãos podem promover questionamento judicial daquilo que pareça adequado. E é dever do Poder Judiciário decidir sobre os pleitos apresentados na forma da lei. Sem acesso à Justiça qualquer direito é escasso de validade, oco de vigor e carente de eficácia porque será cumprido segundo o voluntarismo de cada pessoa. Sem acesso à Justiça, não há Estado de Direito, porque os atos estatais deixam de ser controlados e o poder estatal torna-se absoluto e voluntarioso. E o cidadão volta a ser vassalo do senhor Estado e não cidadão no Estado”, afirmou a ministra.
Depois da leitura do voto de Cármen, a sessão foi encerrada. Segundo o Estadão apurou, ao menos quatro ministros do STF já leram o dossiê. Um deles disse reservadamente à reportagem que o Ministério da Justiça tem o domínio dos acontecimentos no País.
Rejeição. No início do julgamento, Aras pediu a rejeição da ação da Rede, adotando uma posição diametralmente oposta à de Cármen Lúcia. Assim como os 11 ministros do STF, o procurador-geral da República também teve acesso a uma cópia do dossiê.
“O Ministério Público Federal não admite que o governo espione seus opositores nem seus acólitos. No entanto, tivemos acesso ao relatório em posse da ministra, em seu gabinete. Nos termos da lei que institui o sistema brasileiro de inteligência, relatórios de inteligência são comuns para que se avalie cenários de riscos”, disse Aras. “O relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal.”
Na avaliação do procurador-geral da República, os dados reunidos no dossiê foram extraídos de fontes abertas a todos os indivíduos, como informações publicadas no Instagram, YouTube e manifestos publicados nas redes. “Portanto, a atividade que poderia ser realizada por qualquer cidadão, com acesso à rede mundial de computadores, é trazida aqui em sede de ADPF (um tipo de ação) para apreciação da Suprema Corte brasileira”, observou Aras.
Durante a sua manifestação no julgamento, Aras apresentou uma informação imprecisa ao Supremo. “Os fatos desta ADPF foram cuidadosamente apurados pela Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), cujo presidente senador (Nelsinho Trad, do PSD-MS) concluiu que: ‘nenhum cidadão brasileiro teria sido prejudicado’ pelos relatórios elaborados pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça’”, disse Aras em sustentação oral no STF.
Apesar da afirmação, a CCAI ainda não deliberou sobre a regularidade dos procedimentos na Seopi. Apenas o presidente da comissão, Nelsinho Trad, externou sua opinião, em entrevista à Rádio Eldorado, citada pelo PGR. Até ontem, nenhum parlamentar havia recebido os materiais além do senador Trad. “Não analisamos até por que não tivemos acesso ao dossiê”, disse ao Estadão o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), integrante da comissão, rebatendo Aras.
Líder da Rede no Senado e integrante da CCAI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) negou que a comissão tenha analisado o tema, pois sequer houve acesso aos relatórios para a maioria de seus integrantes. “É mentira do procurador-geral. Se o presidente Nelsinho Trad assim se manifestou, ele dá o cabimento para qualquer membro da comissão acessar os documentos e torná-los públicos. Isso é a desmoralização da comissão”, disse Randolfe. O senador também criticou Aras por pedir a rejeição da ação movida pela Rede: “Tristes tempos estes em que o PGR, chefe maior do MPF, instituição indispensável à defesa da democracia, se torna uma vivandeira do arbítrio e da ditadura”.
Conversas. Cármen se reuniu na última terça-feira por videoconferência com Mendonça e o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), José Levi. Antes, conversou com o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), com o ex-secretário nacional de direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, com o cientista político Luiz Eduardo Soares e com o delegado Orlando Zaccone,. Os três últimos foram mencionados no dossiê, revelado pelo site UOL em julho.
Mendonça passou os últimos dias em contato com os integrantes da Corte para dar sua versão dos fatos. Segundo relatos, nas conversas reservadas, por telefone, o ministro da Justiça se colocou à disposição para esclarecer os fatos à Corte e se comprometeu a apurar internamente se houve irregularidades na atuação da pasta. Além de abrir uma sindicância, Mendonça demitiu o diretor de inteligência da Seopi, coronel Gilson Libório de Oliveira Mendes. A iniciativa de Mendonça – apontado como um dos favoritos para a vaga de Celso de Mello, que se aposenta em novembro – foi bem recebida por integrantes da Corte, apurou o Estadão.
Em outra sinalização ao Supremo, Mendonça também criou um grupo de trabalho para elaborar uma política nacional e estratégia de inteligência de segurança pública.
O grupo terá um prazo de 60 dias para concluir as atividades. De acordo com o Ministério da Justiça, com a portaria, Mendonça “reitera seu compromisso com o aperfeiçoamento contínuo da atividade de inteligência como instrumento de proteção e defesa da sociedade e do Estado”.
A medida mostra uma mudança de tom de Mendonça em relação à primeira resposta enviada ao STF, que alvo de críticas de integrantes da Corte. No início do mês, o Ministério da Justiça chegou a pedir “parcimônia” e “sensibilidade” do STF, para que deixasse o Congresso analisar o tema, evitando “invadir esfera de competência do Poder Legislativo”.