Darwin de Castro, 76, um aposentado de barba e cabelos brancos que faz bicos de Papai Noel, começou a usar roupa vermelha mais cedo neste ano. É como ele expressa o voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT), algo incomum em Eldorado (SP), onde Jair Bolsonaro (PL) cresceu e tem uma legião de admiradores.
Um deles mora a poucos passos do casal Darwin e Zuleide de Castro, 74. É o professor aposentado Claudinei Passos, 66, que adornou a fachada de casa com bandeiras do Brasil, estandartes de “mito 2022” e uma toalha com a foto dele em uma motociata. “Eu idolatro esse homem”, diz.
As brigas por política que apartam conhecidos e familiares são algo distante do cotidiano no município, onde a militância ostensiva de bolsonaristas faz contraste com o apoio contido da maioria dos lulistas.
Darwin é exceção —a pinta de bom velhinho, supõe ele, inibe eventuais afrontas. Rindo, o aposentado lembra que no dia da vitória de Bolsonaro, em 2018, circulou pela praça “de propósito” com uma camisa vermelha e que ninguém no meio da multidão de verde e amarelo o incomodou.
“Onde estiver falando de política, eu digo abertamente: sou Lula e fim de papo”, afirma ele, que encara a divergência com o vizinho com bom humor. Faz piadas “só para encher o saco”, por achar que não o fará mudar de voto. “Ele [Claudinei] é meu amigo desde criança, eu gosto muito dele”, comenta Zuleide.
Dinei, como é conhecido, devolve a cordialidade com o casal de lulistas da rua. “Não tem treta”, ressalta ele, para quem discutir por política é besteira. Em sua casa, contudo, pede que o nome de Lula nem seja pronunciado. Ele repete que “o Brasil vai virar um país comunista” se o ex-presidente voltar.
A Folha, que em uma série de reportagens acompanha a eleição presidencial em Eldorado e Garanhuns (PE), terra natal de Lula, teve ao menos 15 pedidos de entrevista negados por apoiadores do petista na cidade onde Bolsonaro passou a juventude e mantém ainda hoje parentes e amigos.
As razões para a recusa vão desde questões profissionais —a elite financeira eldoradense, que emprega parte da população, tende ao bolsonarismo— até o receio de constrangimentos. Para um morador, o empresariado, ligado sobretudo à bananicultura, perpetua uma espécie de coronelismo.
Nas ruas do núcleo urbano, até se ouve um ou outro cogitando voto em Ciro Gomes (PDT) ou Simone Tebet (MDB), mas são os dois protagonistas da corrida que concentram as atenções.
Grupos de WhatsApp da cidade criados originalmente para trocas de avisos hoje são palanque para a postagem frenética de propagandas do presidente e críticas a Lula, a maior parte baseada em mentiras.
Entre os membros há alguns anti-Bolsonaro que de vez em quando rebatem mensagens ou desmentem fake news, sem entrar em confronto. Um deles contou, sob condição de anonimato, que não ultrapassa a fronteira da ironia para evitar inimizades. Na cidade de 15 mil habitantes, muitos se conhecem.
O cenário é diferente na zona rural e em suas 13 comunidades quilombolas, com ampla adesão ao petista. Na localidade de Ivaporunduva, desde agosto se veem adesivos das campanhas de Lula a presidente e de Fernando Haddad (PT) a governador. A preferência nesses territórios é mais declarada.
Moradora do quilombo São Pedro, a universitária Letícia Esther de França, 24, diz que omite seu apoio ao ex-presidente ao andar pelas ruas. “Questão política é difícil, né?” Para ela, “lidar com a opinião diferente de cada um” é ainda mais complicado em uma terra tão ligada a Bolsonaro —ele teve 54% dos votos válidos no município no segundo turno de 2018, índice próximo ao nacional.
Na visão dos quilombolas, parte da zona urbana desmerece o apoio histórico deles ao PT por racismo.
“A gente sabe, vê, presencia atos racistas na cidade, mas a gente não bate de frente”, afirma França. “A gente tenta se calar, entre aspas, mas é uma situação que desagrada, né? Em alguns momentos, a gente dá as costas [para quem discrimina] porque não quer levar adiante.”
A jovem justifica o voto em Lula pelas políticas para a educação e para os pequenos agricultores, como os pais dela. A fala de Bolsonaro em 2018 que usou termos relacionados a animais e citou peso em arrobas para descrever quilombolas de Eldorado jamais foi esquecida por ela.
Já os entusiastas do atual chefe do Executivo relativizam problemas de seu governo e suas afirmações mais agressivas. Homossexual, Dinei diz que nunca se sentiu ofendido pelo político. “Todo mundo tem seu momento de fraqueza, né? Mas… tudo bem.”
Bolsonaristas enxergam no presidente o jeito falastrão e direto dos eldoradenses. “Nós somos estourados, a gente mete a boca mesmo. Esse jeitão dele não nos assusta”, afirma a professora Vania Brisola, 60.
“Falam que a gente idolatra o Bolsonaro. A gente não idolatra, a gente gosta da luta dele. Agora, o Lula, a forma de ele falar é medonha, é uma pessoa ultrapassada para a política, não serve como presidente.”
Raro caso de comerciante local que apoia abertamente o ex-presidente, o dono de postos de combustíveis Antônio Carlos Menezes, 59, diz que evita misturar política e negócios em razão das vendas e em nome da convivência. “Quando você toma um lado, às vezes as pessoas podem achar que você é inimigo, né?”, diz.
“Independentemente se é meu cliente ou não, se está numa classe social mais alta ou mais baixa”, afirma ele, que acrescenta ter “o maior respeito” por quem pensa de maneira diferente.
Um exemplo dessa separação, conta Menezes, é que ele não se furta a trocar moedas para um sobrinho de Bolsonaro que administra a única casa lotérica de Eldorado. “É respeitar para ser respeitado.”
Lógica parecida vigora em Garanhuns. A nítida maioria pró-Lula na cidade pernambucana contribui para o clima ameno nas relações, mas há relatos de discussões e de temor diante da violência política no país.
A cuidadora Gabrielly dos Santos, 19, que é eleitora do petista, considera a disseminação de notícias falsas um combustível para os atritos. “Na minha família mesmo, tem parentes que é melhor nem conversar. Continuam propagando fake news mesmo já tendo sido mostrado que é mentira. Colocam uma venda, não querem saber se alguém descobriu que aquilo é mentira.”
Com um filho que votou em Bolsonaro, o comerciante Geraldo Magela, 63, apoiador de Lula, afirma que os dois se desentenderam em 2018, mas hoje deixam o assunto de lado. “Nos últimos meses, a gente não discutiu, até porque a gente não comenta mais sobre esse cidadão chamado Bolsonaro.”