Teve que esperar, até as últimas horas antes do prazo de vencimento, os deputados decidirem aprovar a medida provisória que reestruturou a Esplanada, aumentando de 23 para 37 o número de ministérios.
A votação na Câmara foi expressiva, com 337 votos a favor, 125 contrários e uma abstenção. Mas ocorreu no limite do prazo — o texto precisa ser aprovado pelo Senado nesta quinta-feira (1º) conforme Leandro Prazeres, da BBC News, para não perder validade. A demora para aprovar a medida importante para o governo foi lida como um recado da Câmara de insatisfação com a articulação política do Planalto.
Isso ocorre dias após o governo ter visto a Câmara dos Deputados aprovar o projeto de lei que estabelece um marco temporal para as demarcações de terras indígenas, pauta rejeitada por integrantes do governo.
Lula foi eleito por uma pequena margem sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a primeira vez em que um presidente no poder perde uma reeleição. Mas o consenso entre analistas é de que a composição política do Congresso Nacional, marcadamente mais conservadora, criaria dificuldades para a governabilidade de Lula.
Nos últimos meses, derrotas seguidas (veja as principais abaixo) lançaram um “sinal amarelo” no Palácio do Planalto e fizeram com que o presidente Lula convocasse uma reunião de emergência com os responsáveis por sua articulação política no Congresso Nacional. Em meio a tudo isso, uma pergunta passou a circular entre os analistas políticos: Lula está emparedado pelo Congresso?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o presidente enfrenta, hoje, muito mais dificuldade para obter governabilidade do que em seus dois primeiros mandatos. Segundo eles, isso acontece por uma combinação de fatores que envolve mudanças estruturais no funcionamento do Parlamento e falhas na equipe de articulação política do governo.
Derrotas em série
O governo Lula conseguiu fazer avançar algumas de suas principais propostas como, o novo arcabouço fiscal, que estabelece as novas regras fiscais que o governo terá que seguir nos próximos anos. Ele foi aprovado na Câmara na semana passada.
Apesar disso, nos últimos meses, Lula também amargou uma série de derrotas, o que levantou dúvidas sobre a capacidade de articulação política do atual governo.
As principais derrotas foram:
- Derrubada pelo Congresso Nacional de decretos presidenciais que mudavam trechos do Marco do Saneamento Básico, aprovado em 2020
- Retirada de pauta do projeto de lei que criava normas para o funcionamento de redes sociais, conhecido como “PL das Fake News”
- Retirada da demarcação de terras indígenas da alçada do Ministério dos Povos Indígenas
- Retirada do cadastro ambiental rural da alçada do Ministério do Meio Ambiente
- Aprovação pela Câmara de um projeto de lei que cria o marco temporal para demarcações indígenas
A aprovação da mudança na estrutura dos ministérios pela Câmara muito perto do fim do prazo é emblemática ao mostrar como a atual gestão vem tentando se equilibrar na articulação com os deputados.
Por lei, as medidas provisórias têm validade de 180 dias e precisam ser aprovadas pelo Congresso Nacional nesse prazo. Do contrário, elas perdem a validade. A MP que reestruturou o governo precisa ser votada pelo Senado até esta quinta-feira (1/6) para não “caducar” e deixar de ter efeito.
O impacto prático disso é que, se não a MP não for aprovada, o governo Lula terá, em tese, que adotar a mesma estrutura deixada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Isso implicaria na extinção de algumas pastas, como o Ministério dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial, o que representaria uma grande derrota para o governo.
O relatório da MP aprovado pelo relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), tirou atribuições consideradas estratégicas dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.
Apesar da reação pública de Marina Silva e Sônia Guajajara, o relatório foi endossado pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha.
O temor no governo era de que reagir às mudanças nas duas pastas poderia resultar em algo pior: a não aprovação da MP.
“Vamos defender o relatório do jeito que está, vamos fazer a defesa da aprovação desse relatório. Não digo que é o relatório ideal para o governo, porque esse seria o do texto original, mas não existe isso, existe uma construção feita com as Casas”, disse Padilha na terça-feira (30/05), após uma reunião com parlamentares.
Além disso, durante a votação na quarta-feira, o governo cedeu e deputados aprovaram a recriação da Fundação Nacional da Saúde (Funasa).
Lula emparedado?
O cientista político Sérgio Abranches, que formulou o conceito de presidencialismo de coalizão, nos anos 1980, disse à BBC News Brasil que Lula não é “refém” do Congresso Nacional como um todo, mas, neste momento, estaria na condição de “refém” de Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Câmara dos Deputados.
“Ele é refém do Arthur Lira porque Lira ficou com muito poder nesse desarranjo que existe hoje nas relações entre o Executivo e o Legislativo. Arthur Lira tem problemas sérios com o governo porque não se sente prestigiado, não se sente atendido em suas demandas”, afirmou o cientista político.
Lira vem sendo apontado por analistas como o principal obstáculo de Lula para obter governabilidade no Congresso Nacional.
O presidente da Câmara apoiou Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, prometeu que não iria dificultar as ações de Lula, mas fez críticas abertas à capacidade de negociação política da equipe do petista.
Ele já afirmou, por exemplo, que distribuir ministérios a partidos para tentar montar uma base parlamentar não seria suficiente. A saída, segundo ele, seria maior agilidade na liberação de emendas parlamentares.
Abranches afirma que Lula não poderia ser considerado um refém do Congresso Nacional porque, no Senado, o presidente ainda aparenta ter condição de negociações melhores por conta, entre outros motivos, da sua proximidade com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
“Com o (Rodrigo) Pacheco, com o Senado, Lula consegue alinhavar acordos. A situação lá é diferente. Mas, com a Câmara, o cenário é totalmente diferente”, afirmou.
A cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, diz que as dificuldades enfrentadas pelo atual governo na sua relação com o Congresso são o resultado dos seguintes fatores:
- Mudanças estruturais que diminuíram a capacidade do governo de exercer influência sobre os parlamentares, como as emendas parlamentares impositivas, cujo pagamento é obrigatório, diminuindo a margem de negociação do governo
- Atual composição da Câmara dos Deputados, marcadamente mais conservadora e de direita ideologicamente do que o governo de Lula
- Falhas na ação da equipe de articulação política do presidente
“Estamos diante de uma virada institucionalizada, de um fortalecimento do Parlamento e uma dificuldade do governo de lidar com um novo cenário da relação entre o Executivo e o Legislativo. Além disso, vemos alguns erros sendo cometidos desde o começo do ano”, afirmou.
A professora de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Graziella Testa diz que, historicamente, todos os presidentes brasileiros eleitos desde a redemocratização tiveram que enfrentar problemas na sua relação com o Poder Legislativo.
Testa pontua, no entanto, que Lula enfrenta, agora, um cenário diferente do que ele encontrou no passado.
“Até 2018, essa mediação entre o Executivo e o Legislativo era feita entre o governo e as lideranças partidárias. Agora, essa mediação é feita pelos presidentes da Câmara. Esse cenário mudou e a resposta sobre como as coisas vão se desenrolar ainda é incerta”, afirmou.
Segundo ela, outro motivo que tornou a margem de manobra com o Parlamento ainda menor é que os ministérios, tradicionalmente usados para atrair partidos aliados, passaram a não ser mais considerados tão interessantes assim.
“Hoje, as pastas não são tão atrativas porque, com o orçamento tão apertado, os recursos disponíveis estão muito comprometidos. Ocupar o cargo de ministro não dá a liberdade de ação que podem se transformar em votos como acontecia antes”, afirmou a professora.
Reação de Lula é possível?
Sérgio Abranches aponta que apesar de o cenário ser desfavorável para Lula na sua relação com o Parlamento, há medidas que ele pode tomar para tentar contornar a situação. Segundo ele, três ações seriam necessárias: redistribuição de ministérios; mudar sua equipe de articuladores políticos; e estabelecer prioridades claras para o seu governo.
“Lula precisa ter mais ministros de outros partidos. O PT está desproporcionalmente representado na Esplanada dos Ministérios. Tem que haver maior representação de partidos que não fazem parte do núcleo duro do governo”, afirmou.
Atualmente, o PT tem, na Câmara, 68 deputados federais, o equivalente a 13% do total. Apesar disso, pontua Abranches, o partido tem 10 ministérios de um total de 37 pastas, equivalente a 27%.
“Acho que, para haver uma reação, o governo tem que mudar sua estrutura de articulação. Hoje, Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (ministro da Casa Civil) não têm sido bons consultores políticos. Todo diálogo com o Congresso é por meio de ministros do PT. Não é um governo de coalizão falando com o Congresso. Isso faz diferença”, disse Abranches.
Abranches também afirma que é preciso que o governo se envolva mais diretamente nas negociações com o parlamento e estabeleça pautas claras.
“Ele (Lula) precisa ter prioridades e negociá-las. Ele tem que fazer isso numa conversa com Lira e Pacheco e dizer: ‘Olha, essas pautas aqui eu preciso que seja aprovada. O resto, a gente conversa. Ninguém está interessado no impasse'”, disse Abranches.
Beatriz Rey também defende que o governo faça mudanças na sua forma de interagir com o Congresso.
“O governo tem que dar menos peso ao PT e repensar quem serão seus principais articuladores. Acho que um caminho seria colocar alguém que tivesse mais trânsito com o Centrão”, disse a cientista política em alusão ao bloco de partidos de centro-direita conhecido como Centrão composto por legendas como o MDB, PSD, PP, PR, entre outros.
Outro ponto defendido por Beatriz Rey é que o governo “pare de errar” em sua articulação política. Ela pontua, por exemplo, que o governo errou ao tentar derrubar pontos do Marco do Saneamento Básico via decreto. Segundo ela, isso fez com que o governo “queimasse” parte de seu capital político.
“Este não é um governo que chega com muito capital político de origem. Ele encontra que joga contra, e, ainda por cima, ainda vem queimando parte do seu capital político”, avalia.
Beatriz Rey também defende que o governo defina de forma objetiva quais são as suas prioridades na pauta parlamentar.
“Escrevi um artigo, recentemente, em que eu dizia que o governo tinha que ter entre 10 e 15 pautas prioritárias. Hoje, acho que talvez nem seja possível falar nesse número. Mas é preciso, sim, sentar com os interlocutores e estabelecer uma pauta de prioridades. Acho que é uma boa solução. Mesmo assim, o cenário é incerto”, afirmou.
A cientista política ressalta, porém, que o governo precisa mudar suas expectativas em relação ao que ele poderá aprovar no Congresso.
“Não dá para ter a expectativa de passar muitas pautas à esquerda. Esse é um Congresso mais à direita do ponto de vista ideológico. Eu acho que isso é uma coisa que o governo tem que incorporar no seu modus operandi”, disse.
Graziella Testa diz que o futuro da governabilidade no atual mandato de Lula ainda é incerto por conta de mudanças na forma como ela se dava, por exemplo, durante o governo do ex-presidente Bolsonaro.
Segundo ela, a governabilidade durante a gestão do ex-mandatário foi obtida a partir do chamado “orçamento secreto”, um mecanismo de distribuição de emendas parlamentares em que os responsáveis diretos pelas indicações das emendas não tinham seus nomes divulgados.
Um dos principais apoiadores do mecanismo, conhecido oficialmente como “emendas de relator”, era, justamente, Arthur Lira.
O mecanismo, no entanto, foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2022.
“Sou cética à ideia de que não vai haver mais coalizão ou base parlamentar. Pode ser que mudem os instrumentos que serão usados na construção dessa governabilidade, mas o cenário ainda está incerto por conta da proibição das emendas de relator. É preciso pensar em novos caminhos”, disse a professora.