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terça-feira 17 de outubro de 2023 às 10:44h

Motivos para queda na taxa de natalidade no Brasil

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Em “Manifesto Antimaternalista”, Vera Iaconelli diz que modelo que coloca mães no centro de cuidado das crianças se tornou insustentável. Qual a relação entre a queda na taxa de natalidade no Brasil e esta sobrecarga? O cuidado materno é único, instintivo, insubstituível – e essa ideia está fazendo as mulheres adoecerem. O ideal de maternidade que mantém a responsabilidade dos filhos sobre a mulher é anacrônico e está em colapso, diagnostica a psicanalista Vera Iaconelli.

Ela partiu da escuta clínica de mulheres com quadros de depressão, ansiedade e doenças psicossomáticas – sobrecarregadas pela maternidade e a sobreposição de atribuições domésticas, profissionais e de provedoras financeiras – para a escrita de Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e políticas de reprodução, seu terceiro livro, lançado pela Zahar em setembro.

O maternalismo é um discurso que se consolidou da virada dos séculos 19 para o 20, e “se ancora na ideia de que a mulher é naturalmente talhada para ser mãe e que o cuidado que ela oferece ao filho – mas também aos familiares em geral – é insubstituível, por ser de qualidade única”, escreve Iaconelli, diretora do Instituto Gerar de Psicanálise e colunista da Folha de S. Paulo.

Em entrevista à DW, a psicanalista considera que a perpetuação dessa mentalidade tem levado mulheres a acumular “incumbências gigantescas”, o que tem levado a adoecimentos ou mesmo ao colapso: “Na minha experiência clínica, isso se divide entre as mulheres que acham que devem melhorar para dar conta do impossível – e tem um lado narcisista investido nisso, de se sentir super-heroína – e as que se dão conta de que é uma tarefa impossível, e se ressentem por assumir um papel que não é só delas, mas não sabem sair desse jogo”.

No livro, a psicanalista explicita a construção histórico-cultural do discurso maternalista, que respondeu à necessidade de consolidar o capitalismo e viabilizar a reprodução social amparada no trabalho doméstico não-remunerado das mulheres em casa, como mães e cuidadoras.

Diante das transformações estruturais exigidas pelo século 21, escreve Iaconelli, é preciso desconstruir esta forma de pensar para corrigir as iniquidades de gênero, raça e classe que perpetua.

“Enquanto não implodirmos a categoria maternalista, que joga sobre a mulher a responsabilidade pelas próximas gerações, todas as soluções para promover a igualdade de gênero serão paliativas, e muitas vezes contraproducentes”, afirma.

Maior sobrecarga, menos filhos?

Com os índices de natalidade no Brasil em queda acentuada nas últimas décadas, a DW questiona – a sobrecarga materna pode estar dando ainda maior impulso à transformação demográfica?

Em apenas três gerações, a taxa de fecundidade das brasileiras passou de uma média de seis filhos por mulher nos anos 1960 para a média de 1,6 filhos em 2022 – a menor já registrada, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). O índice está abaixo da média global de 2,1 filhos por mulher e do nível de reposição da população.

Ao longo das décadas, a urbanização acelerada, o aumento do nível de escolaridade e o avanço das mulheres no mercado de trabalho foram determinantes para esta queda. Mas houve outra mudança crucial. “Algumas décadas atrás, uma mulher ter filhos era um valor confundido com o próprio fato de ser mulher. Hoje, não mais. Ela se sente mulher a partir de outras referências. Ter filho se tornou uma opção”, ressalta Iaconelli.

Porém, o desejo de ter filhos concorre com a vida pessoal de uma maneira que não ocorre com os homens. “Não se pede para o pai abrir mão de seu tempo, carreira, sexualidade, como se pede para as mães. E na luta por equanimidade, muitas mulheres decidem não pagar esse preço. Algumas gostariam de ter filhos, mas não querem comprar o pacote”, afirma.

Geração do filho único

Com a dificuldade de conciliar tantos papeis, mais e mais mulheres estão optando por não ter filhos, e advogando por essa escolha publicamente – como influenciadoras que celebram o estilo de vida sem crianças nas redes sociais.

Entre as que decidem ser mães, cada vez mais se consolida uma geração de filhos únicos, seja por convicção, seja por falta de tempo, apoio ou dinheiro.

A DW conversou com um grupo de mulheres na zona sul do Rio de Janeiro sobre o impacto de terem se tornado mães recentemente. As respostas trouxeram depoimentos exasperados com o acúmulo de cuidados com crianças, carreira e afazeres domésticos. Diversas mães contaram que o desejo de ter mais de uma criança caiu por terra quando a primeira chegou.

A neuropediatra Renata Joviano, 38 anos, já havia escrito sobre a sobrecarga enfrentada por mães em seu trabalho de mestrado, focado em crianças com autismo. Ainda assim, quando se tornou mãe de Pedro, agora com 3 anos, o impacto tirou seu chão.

“Eu nunca subestimei a maternidade. Nunca achei que fosse fácil. Mas não tinha noção que seria tão enlouquecedor e que teria um impacto tão grande na minha vida pessoal, profissional e financeira”, conta ela, que antes sonhava em ter três filhos, “uma família de comercial de margarina”.

“Ao meu redor, vejo mães cada vez mais esgotadas, e pais achando que trabalham, pagam contas e já fazem o seu papel. Os homens ainda têm a mentalidade de que vão ‘ajudar’. É preciso excluir essa palavra do vocabulário paterno”, irrita-se Joviano.

A médica viu seu casamento desmoronar após o nascimento do filho. Depois de reatar a relação por um período, acaba de se separar novamente. “Um dos motivos foi a minha sobrecarga. Ele queria ficar casado, mas com vida de solteiro, saindo com amigos, indo para o Maracanã. Senti que não podia contar com o pai. Então, fiquei só com o Pedro.”

Joviano trabalha em um hospital público na zona oeste do Rio e atende em um consultório particular. Ser mãe tem imposto sacrifícios sobre sua carreira. “Gostaria de fazer mais cursos, participar de congressos, de atualizações promovidas por laboratórios farmacêuticos, mas falta tempo”, lamenta.

Impacto financeiro

O impacto da maternidade sobre a carreira foi tematizado pela Nobel de Economia deste ano. A economista americana Claudia Goldon levou o prêmio neste mês por estudar os fatores por trás das disparidades salariais de gênero em 200 anos nos EUA.

Enquanto no passado as diferenças se deviam sobretudo a escolhas profissionais e na educação, ela constatou que, hoje, o impacto de ter filhos tornou-se fator determinante para o abismo salarial entre homens e mulheres.

Embora as mulheres ainda lutem por igualdade salarial e acesso a cargos mais altos no mercado de trabalho, a importância da mão de obra feminina no orçamento doméstico está mais do que estabelecida. Hoje, de acordo com dados do IBGE, as mulheres representam 44% da força de trabalho do país, e chefiam 51% dos domicílios.

Apesar de terem se tornado provedoras financeiras, diz Iaconelli, as mulheres continuam sendo as principais genitoras e cuidadoras, acumulando funções, em vez de remanejá-las. “A invisibilidade do trabalho reprodutivo vai se tornando insustentável.”

“Vai se mostrando mesmo impossível para mulheres assumirem mais filhos sem que seja uma experiência mais de sofrimento do que de prazer, mais de ressentimento do que de satisfação. E muitas mulheres vão sendo frustradas nesse desejo”, considera.

Para a auditora contábil Marta Cabral Gonçalves, de 39 anos, a ascensão profissional aumentou sua renda, mas não facilitou ter mais filhos, pelo contrário. Mãe de Vicente, que faz 2 anos em novembro, ela cresceu em uma família de três irmãos e sonhava em ter dois filhos. Agora que o primeiro chegou, a sensação é de que “não cabe na vida”.

“Queria muito ter mais um filho, mas não tenho rede de apoio nem recursos financeiros para isso”, diz a gaúcha. Gonçalves veio de Porto Alegre para o Rio com o marido nove anos atrás em busca de crescimento profissional. Batalhou, estudou para concursos públicos e hoje é servidora do Tribunal de Contas do Estado do Rio.

Conseguiu aumentar sua renda, mas ficou longe do apoio da família e se sente só, sem sentir um senso de comunidade ao seu redor. Poderia ter mais ajuda, mas teria que ser paga, e as contas não fecham. O marido está desempregado, e seu salário sustenta a casa.

“Eu me matei para trabalhar e ganhar mais, quando na verdade o que eu mais queria era ter dois filhos. Se eu tivesse ficado no Sul, com um salário menor, talvez já tivesse realizado esse sonho”, questiona-se. Ela diz pensar diariamente no assunto, e faz psicoterapia porque ainda “não consegue aceitar” a ideia der ter um filho único.

Questão da sociedade civil como um todo

Para Iaconelli, desconstruir o discurso maternalista não significa advogar para que mulheres tenham mais ou menos filhos. É preciso advogar, isso sim, para que a sociedade ofereça condições para que todos possam ter descendência, se assim o desejarem, considera.

Ao longo do livro, ela destaca que a maternidade se dá de maneiras muito distintas para mulheres brancas, negras ou indígenas, e a depender das condições sociais de pais e mães.

A experiência de postergar a maternidade em prol da carreira, ou para aproveitar a vida por mais tempo, por exemplo, “não parece fazer sentido” em grupos mais pobres, nos quais o direito à descendência é atravessado pela falta de recursos, criminalidade nas periferias ou por situações dramáticas como a perda da guarda de uma criança.

A despeito de tantas diferenças, a hiper-responsabilização da mãe parece ter consagrado um padrão que se repete em diferentes contextos: “No fim das contas, são as mulheres que ficam, haja o que houver”, diz Iaconelli.

Para ela, superar o maternalismo não passa apenas por uma divisão igualitária do trabalho, sem que a carga mental seja compartilhada. Mas muito além disso, cuidar das futuras gerações não deve ser uma atribuição meramente privada.

“As pessoas que não tiveram filhos, as empresas, a sociedade civil como um todo, o Estado – todos têm que entender que não se trata da responsabilidade de uma mulher, mas da condição de sobrevivência de uma sociedade. Ou seja, da responsabilidade e do interesse de todos nós, tenhamos filhos ou não.”

Como parte da transformação, as mulheres também devem abrir mão da primazia sobre os filhos, que alimenta uma satisfação narcísica. “A ideia de que só a mãe sabe o que a criança quer não deixa de ser um lugar de prestígio, de que devemos abrir mão para chegar a uma organização mais igualitária”, considera Iaconelli.

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