Faleceu nesta terça-feira (30), aos 92 anos, Mikhail Sergeievich Gorbachev revelou ao planeta no dia 25 de dezembro de 1991 uma das notícias mais impactantes do século XX. A internet engatinhava e as mídias sociais ainda não sonhavam existir. Em cadeia nacional de televisão, em um salão do Kremlin — preferiu que não fosse o próprio gabinete — anunciou a sua renúncia e o fim da União Soviética.
Entre as paredes da fortaleza do poder político russo, acompanhado apenas de um punhado de assessores mais próximos, o oitavo e último líder soviético destacava o fim da Guerra Fria e da corrida armamentista, a abertura para o resto do mundo e o abandono de práticas de interferência em questões internas dos outros países. Lá fora, o pavilhão da URSS dava lugar à bandeira da Federação da Rússia. O país estaria vivendo dali em diante, segundo dizia às câmeras russas e americanas que o filmavam, um mundo novo, marcado por eleições livres, um sistema multipartidário, liberdade de imprensa e de credo, e prioridade para os direitos humanos.
— Fomos recompensados com confiança, solidariedade e respeito. Pagamos com a nossa história e as nossas experiências trágicas por essas conquistas democráticas, e elas não devem ser abandonadas, em nenhuma circunstância, sob qualquer pretexto — afirmou, em discurso histórico, o ex-líder russo. De acordo com a agência RIA, citando o Hospital Clínico Central, ele morreu “após uma doença grave e prolongada”.
Naquele mesmo dia, como dezenas de milhões de soviéticos, a bibliotecária Galina Sergeevna, mãe de duas meninas, assistia perplexa ao pronunciamento do presidente. Hoje, aposentada, admite ter sido tomada por medo e preocupação. Era o fim do imenso país em que havia crescido, uma decisão equivocada, em sua avaliação, com um custo enorme para a população. Ela não se refere a Gorbachev como “traidor”, como fazem tantos de seus compatriotas, mas diz que “foi fraco, não soube governar, muitos menos alimentar os cidadãos, ou garantir que as prateleiras dos mercados estivessem abastecidas”.
— Era o presidente. Foi responsável por tudo de bom e de ruim. De bom, havia apenas as expectativas. A criminalidade cresceu, as prateleiras esvaziaram-se, e nós fomos parar em longas filas. As relações entre as etnias soviéticas se deterioraram, e as ex-repúblicas deixaram a URSS. Não me lembro de nada bom. Ele falou muito, prometeu muito. A vida só piorou — disse ela, refletindo o que ainda pensam 46% dos russos que, segundo pesquisas, lamentam a dissolução da União Soviética nos dias de hoje.
Um homem à frente do seu tempo, Gorbachev brigou por reformas, mas não conseguiu controlar as forças, até então reprimidas, que libertou com o novo, depois de 74 anos de regime soviético. Desagradou as fileiras linha-dura do partido. Enfrentou uma tentativa de golpe três meses antes de renunciar, quando militares armados com tanques cercaram o prédio do Parlamento. Possivelmente, enquanto descia do avião que o trouxe de volta a Moscou após ter sido mantido isolado por três dias em sua casa à beira do Mar Negro, na Crimeia (o tempo de duração da tentativa de “putsch”), terá se dado conta de que aquele era o início do fim da sua carreira política. Desde aquele momento, Gorbachev dedicaria a vida a defender o seu legado.
Os rumos da nação que conduziu por seis anos eram outros. De lá para cá, nem a aparentemente imutável Crimeia foi a mesma. O balneário dos sonhos de todo russo, um presente da Rússia soviética de Nikita Kruschev aos irmãos ucranianos em 1954, passou para a Ucrânia após o fim da URSS e foi retomado à força de bala pela Rússia de Putin em 2014.
Em novembro de 2018, amparado por dois auxiliares, Gorbachev não escondia o peso da idade. Mas a fragilidade evidente não o impediu de participar da première, na Rússia, de mais um documentário sobre a sua vida: “Meeting Gorbachev”, dos alemães Werner Herzog e Andre Singer. Além das reformas que conduzira na década de 1980, em ordem cronológica, o filme trata do acordo de desarmamento que firmou em 1987 com os americanos para pôr fim à guerra não declarada entre o seu país e os Estados Unidos por quase meio século.
Derradeiro protagonista de um período que assombrou a geopolítica internacional, reunia ali as poucas forças que lhe restavam para lutar a batalha final pelo seu reconhecimento como personagem essencial no panteão da História mundial. O posto estaria ameaçado desde o dia 20 de outubro de 2018, quando a Casa Branca anunciou a retirada dos Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, que levou à retirada de mísseis das duas potências estacionados na Europa. O documento assinado entre ele, então secretário-geral do partido comunista da URSS, e o presidente americano republicano Ronald Reagan, era a garantia de que as duas forças antagônicas viravam uma página importante da História.
Não que Gorbachev tenha conduzido o processo sozinho, mas há consenso entre especialistas de que o entendimento jamais teria saído sem ele. O acordo previa a eliminação de mísseis balísticos e de cruzeiro, nucleares ou convencionais, com alcance de 500 a 5.500 km. Até junho de 1991, antes mesmo do fim da URSS, 2.692 haviam sido destruídos (846 pelos americanos e 1.846 pelos russos). Era exatamente por isso que estava naquela plateia, a despeito da saúde já bastante debilitada.
O que tirou Gorbachev do retiro de muitos meses foi o fato de que a memória desse feito da sua biografia pudesse ser sepultada pelos Estados Unidos de Trump em um estalar de dedos. Putin acabou anunciando também a retirada da Rússia do acordo. Gorbachev perdeu o sossego. Nos últimos anos de vida, publicou dezenas de artigos. Em fevereiro de 2019, em texto no jornal russo Vedomosti, disse que “hoje, tudo o que foi alcançado nos anos depois que pusemos fim à Guerra Fria corre grande perigo”. “A hegemonia de um país é impossível no mundo de hoje”, prosseguiu.
Reverenciado no Ocidente como o homem que conduziu o maior país do mundo ao diálogo com a outra superpotência de então, é ignorado e desprezado por boa parte dos seus por ter estado à frente do desmanche da URSS. Uma pesquisa do Centro Iuri Levada, de março de 2019, mostra que 26% dos russos têm vergonha das reformas de Gorbachev. Apenas 21%, reprovam a mão de ferro de Josef Stalin. A Rússia continua sendo a maior nação nos atlas escolares, mas, desde então, ficou 20% menor. Passou a ter 17 dos 22 milhões de quilômetros quadrados do império soviético, a maior perda territorial de que se tem notícia.
O nome de Gorbachev quase nunca é mencionado pelas autoridades russas. Quando é, geralmente está associado a um período que todos querem esquecer: uma das maiores crises vividas pelo país na história moderna, de caos, nas palavras de Putin, para quem o fim da URSS “foi a maior catástrofe geopolítica do século”. O nome de Gorbachev tampouco aparece entre os personagens mais marcantes da história russa nos tradicionais rankings que a mídia local gosta de publicar todos os anos. Stalin está em todos os da última década. Putin, também.
Historiadores admitem que é cedo para julgar Gorbachev. É verdade que foi o homem que acenou com a “perestroika” e a “glasnost”, duas palavras rapidamente incorporadas ao léxicos russo — e absorvidas pelo resto do mundo, em russo mesmo —, com as promessas de liberdade e uma vida com a qual tantos soviéticos haviam sonhado por tanto tempo. Mas o fim da utopia socialista não foi o que imaginou o cidadão comum. O que ficou na memória de milhões de russos foi a derrocada do império soviético com um grau de humilhação inaceitável para o país que ainda vive as muitas glórias que o tornaram a primeira nação a mandar o homem ao cosmo.
Gorbachev viveu muito mais do que a média de idade dos seus compatriotas da antiga União Soviética ou dos da Rússia do presidente Vladimir Putin. Mais ainda, quando comparado à expectativa de vida africana dos russos do campo, como ele próprio. Nascido em Privolnoye, no Cáucaso do Norte, o ex-presidente ficou conhecido pela origem humilde. Era filho de camponeses em um sovkhoz. Seus erros de gramática russa são lembrados até hoje. O mais conhecido virou música sabida por quem o acompanhava à época e até pelas novas gerações. A melodia faz piada com a forma como conjugava o verbo “dar” na primeira pessoa do singular, no presente. Algo como dizer “eu fazo”, no lugar de “eu faço”.
Gorbachev chegou ao poder em um momento em que nenhum dos líderes soviéticos parecia durar muito. Antes que fosse apontado secretário-geral, a URSS perdera três, em apenas dois anos e meio. Depois de assinar a renúncia, aproveitou a grande popularidade internacional para ganhar a vida, levantar recursos para causas variadas como a fundação que criou em homenagem à mulher Raissa, que morreu de câncer em 1999, ou da fundação que leva o seu próprio nome. Fez palestras mundo afora. Causou polêmica ao aceitar posar em um anúncio da marca de luxo francesa Louis Vuitton, não muito depois do ator escocês Sean Connery. O caso foi para as páginas dos principais jornais russos e estrangeiros. Tentou voltar ao Kremlin, mas sua candidatura à Presidência em 2007 não teve mais de 0,5% dos votos. Foi sócio do jornal Novaya Gazeta, onde trabalhava a jornalista Anna Politkovskaya, morta em 2006, um crime jamais solucionado pelas autoridades.
Para Ruth Deyermond, professora do Departamento de Estudos de Guerra de King’s College, em Londres, se Gorbachev não tivesse existido, talvez a história da URSS fosse outra. Mas o país precisava de reformas econômicas que certamente implicariam reformas políticas de combate à corrupção. E o período em que esteve no poder, segundo ela, mostrou que, uma vez que o fio dessas reformas fosse puxado, o tecido soviético rapidamente começaria a se desfazer de qualquer maneira.
— Não acho que o que aconteceu sob Gorbachev, ou a maneira como se deu, era inevitável, mas algum tipo de mudança radical muito provavelmente teria acontecido.
A favor dele conta o fato de que o esfacelamento da URSS se deu sem tiros. Para o professor de Oxford, Archie Brown, um dos maiores especialistas em Gorbachev do mundo, longe de ter sido um fracasso, a perestroika foram os seis anos que mudaram o mundo para melhor. Gorbachev, segundo Brown, sacrificou a sua autoridade infinita, obediência incondicional e a adulação pública orquestrada de que continuaria usufruindo enquanto jogasse sob as tradicionais regras do jogo soviético.
— Ele quebrou as regras para tentar criar um sistema e uma sociedade melhores do que os que havia herdado. Embora as falhas da democracia pós-soviética sejam evidentes, elas ocorreram, é bom lembrar, nos anos em que Gorbachev já não tinha poder. O que me parece incontroverso é que o país que Gorbachev legou para seus sucessores foi o mais livre de toda a História russa — salienta o especialista, que se tornou próximo do ex-líder soviético, completando:
— O uso que foi feito das oportunidades que esses anos ofereceram ficaram muito aquém da visão de mundo pacífico e mais igual daqueles que tentaram reconstruir o sistemas soviético e internacional em novas bases.
Não faltam interpretações sobre o papel de Gorbachev dentro e fora da Rússia, nem especulações sobre como se sentiu durante todos esses anos diante dos fatos que protagonizou. No final da sua vida, um episódio curioso terá ilustrado parte das contradições em torno de um nome incontornável da História mundial. Um quadro com a sua assinatura foi vendido por 12 milhões de rublos (quase R$ 700 mil) para um colecionador anônimo em apenas 10 minutos em um leilão da 12Stuly. A obra é resultado de um encontro que teve com o estudante V. Ivanov em um evento na Universidade de Moscou em 2009. O artista se aproximou do líder soviético, pediu um autógrafo e que fizesse um desenho na mesma folha de papel. Gorbachev assinou e se recusou a desenhar: “Faça você mesmo, você tem criatividade suficiente”. E a assinatura preencheu o espaço vazio com a palavra “Prostite” (desculpe). Dizem que essa é a palavra que muitos gostariam de ter escutado de Gorbachev.