O ex-presidente argentino Carlos Menem, mandatário do país por grande parte da década de 1990, morreu neste domingo (14) aos 90 anos. Ele estava internado em uma clínica em Buenos Aires depois de ter tido complicações em decorrência de uma infecção urinária. A notícia foi confirmada pelo jornal argentino Clarín.
O ex-presidente já havia sido internado no ano passado durante algumas semanas por causa de uma pneumonia.
Caráter extraordinário
Menem foi um presidente excêntrico, tendo governado a Argentina entre 1989 e 1999. Uma de suas características mais marcantes eram suas costeletas compridas, até nas bochechas, metade brancas, metade pretas, encaracoladas e espessas. Elas marcaram um país.
Menem as usava para imitar seu caudilho favorito, o herói Facundo Quiroga, e elas eram aparadas diariamente por um cabeleireiro que tinha lugar fixo no avião presidencial.
Frondoso, excêntrico, exagerado: as costeletas de Menem eram um reflexo de seu caráter extraordinário, um personagem que se materializou durante uma década, a de 1990. Representava o sonho argentino de viver no melhor dos mundos: o mais engraçado, o mais autêntico, o mais pomposo.
Nascido no extremo noroeste do país, em La Rioja, Menem se tornou, em 1995, o primeiro presidente a ser reeleito em 50 anos.
Em seu primeiro governo, ele forjou um boom econômico; no segundo, uma crise traumática.
Advogado, governador e senador, o ex-presidente argentino foi duas vezes preso durante os regimes militares das décadas de 70 e 80 e duas vezes condenado por corrupção e tráfico de armas. Ele evitou a prisão por causa da imunidade parlamentar e, nos últimos anos, foi absolvido.
Era chamado de “o turco” em referência às suas raízes sírio-libanesas, que definiam sua família, sua personalidade e até sua vida privada, tantas vezes o protagonista dos tabloides.
Peronista com todas as letras
Menem é uma das respostas a essa pergunta que fascina os cientistas políticos de todo o mundo sobre o que é o peronismo.
Uma resposta, claro, complexa, porque embora sintetize com precisão o movimento, também complica a definição da corrente política mais importante da história da Argentina.
Ele foi ao mesmo tempo um político populista e de direita, pró-Estados Unidos e chauvinista, católico e muçulmano, que foi perseguido pelo regime militar, mas depois perdoou os repressores e primeiro aliou-se, mas depois perseguiu os guerrilheiros Montoneros (da esquerda marxista e peronista).
Como Juan Domingo Perón, presidente que conheceu, admirou e criticou, Menem usou a contradição como instrumento político: prometeu não honrar a dívida, mas pagou, ofereceu reclamar as Malvinas/Falklands, mas negociou com o Reino Unido, privatizou empresas se gabando de ser um nacionalista.
Mas o que para muitos é uma contradição, para o peronismo é a adaptação aos altos e baixos da política e da vida. Menem escreveu em 1988 em uma “Carta Aberta à Esperança”: “Sempre afirmei que o gesto mais nobre do político consiste em colocar um ouvido no coração do povo e outro na voz de Deus para escutar com humildade o mandato do Tempo”.
Não está totalmente claro, porém, a quem ele estava ouvindo quando decidiu privatizar a estatal petrolífera e aérea, desmantelar as ferrovias ou endividar um país historicamente incapaz de pagar seus déficits.
O modelo econômico que ele promoveu era um paradoxo em si mesmo: o capitalismo selvagem nas mãos dos Estados Unidos em nome de um movimento político que lutou – ou luta – a favor dos pobres e contra a oligarquia.
Desregulamentou os mercados, reduziu as pensões e aumentou os impostos e serviços sem resistência, ou melhor, com apoio dos principais perdedores.
Menem, com o discurso anti-sistema peronista, foi talvez o abalo mais importante que ocorreu dentro do movimento.
O melhor e pior governo
Muitos consideram que, por si só, seu primeiro governo, entre 1989 e 1995, foi o melhor dos últimos 40 anos na Argentina: eliminou a hiperinflação, estabilizou a política, promoveu o consumo e a abertura, recebeu apoio internacional e gerou consenso nacional para modificar a Constituição.
Mas seu segundo mandato foi, na época, visto como um dos piores da história nacional: a corrupção política e judicial se espalhou, os escândalos do presidente foram uma vergonha internacional e o modelo econômico, baseado na paridade entre o dólar e o peso a chamada “conversibilidade”, provou ser uma ficção que acabaria por desencadear a pior crise econômica em décadas, em 2001.
Embora a Justiça ainda esteja investigando o que aconteceu, há quem na Argentina acredite que uma das contradições de Menem – ser árabe, mas manter uma forte relação com Israel – tem a ver com os dois ataques fatais a organizações judaicas em Buenos Aires na década de 1990: a explosão da Embaixada de Israel e da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA). Há quem pense que os ataques foram por “vingança”.
Menem deixou a presidência desgastado politicamente – e por mandato constitucional – em 1999, mas nunca deixou de ser muito estimado por alguns argentinos.
Em 2003 estava perto de ser reeleito pela segunda vez, mas desistiu no segundo turno quando teve certeza de que Néstor Kirchner o venceria.
Sua figura após a presidência foi marcada por acusações judiciais, seu casamento com a Miss Universo chilena Cecilia Bolocco e dois votos históricos no Senado: rejeitou as retenções de impostos de campo propostas por Cristina Kirchner em 2015 e a descriminalização do aborto em 2018. Ambos os projetos falharam.
Menem foi senador até a morte graças aos devotos eleitores de La Rioja, uma província pobre, despovoada e conservadora na qual sua família, vinda da Síria na primeira metade do século 20, construiu um pequeno império comercial e vinícola.
Naquela terra árida e montanhosa, teve dezenas de propriedades extravagantes, incluindo “La Rosadita”, um casarão com a mesma estética da Casa Rosada presidencial.
Excentricidade como ideologia
Egocêntrico, solidário, showbiz, engenhoso e vindo “de baixo”, Menem nunca deixou de estar onde mais gostava: no centro das atenções.
Sua vida privada não era apenas uma questão de Estado, mas uma ferramenta na sua ascensão política para obter reconhecimento.
Em sua lista de excentricidades estão carros colecionáveis, helicópteros, animais exóticos, o “Menemóvel” com que fez campanha e a promessa – não cumprida – de um sistema de voo espacial com o qual você poderia viajar da Argentina ao Japão em duas horas.
O suposto gosto por festas e drogas e as suas dívidas com jogos de casino, onde alegadamente trocava fichas por cheques sem fundos, foram reiteradas preocupação da imprensa nacional.
Quando criança, foi visto como travesso e esotérico, segundo seus biógrafos, em mundos onde o machismo era celebrado: a comunidade árabe, La Rioja e a política argentina.
Seu relacionamento com seus pais, seus filhos e sua primeira esposa, Zulema Yoma, com quem se casou por iniciativa de seus pais árabes, sempre foram motivo de especulação entre muitos argentinos. E de processos judiciais.
Seu filho mais velho, Carlitos Nair, também conhecido como “o primeiro herdeiro”, morreu aos 26 anos em um acidente de helicóptero que dividiu a família e permanece sem solução – há teorias que vão desde um imprevisto a um ataque de narcotraficantes ou militares ou árabes em vingança por negócios obscuros.
“Um brinde a mim, o vice-presidente da Argentina”, disse Carlos Saúl Menem, em pé à mesa de uma festa em 1975. Ele não era vice nem estava perto de ser presidente, mas revelou uma sonho. Então ele jogou a bebida sobre sua cabeça. E foi assim que, com suas costeletas encharcadas de champanhe, um sonho começou a se tornar realidade.
Fontes:
Cerruti, Gabriela. El jefe. Planeta, 1993.
Pucciarelli, Alfredo. Los años de Menem. Siglo XXI, 2011.
Wornat, Olga. La vida privada. Planeta, 2000.