Um dos principais auxiliares de Sergio Moro no Ministério da Justiça, o juiz aposentado Vladimir Passos de Freitas, 75, diz que o ex-magistrado da Lava Jato “não tinha a menor ideia” de como seria trabalhar junto com o presidente Jair Bolsonaro no governo.
“A carreira política do presidente era no Rio de Janeiro, e ele [Moro] era um juiz do Sul do país, totalmente distante. Não creio que ele tivesse ideia de como seria a vida comum ali.”
Freitas, que ocupou os cargos de secretário de Justiça e assessor para assuntos legislativos na pasta, diz que Moro tentou “até o último minuto” reverter a decisão de Bolsonaro que precipitou a demissão do ministro, a troca de comando na Polícia Federal.
Segundo a coluna Poder do jornal Folha de SP, o ex-secretário foi convidado por Moro para integrar a equipe da pasta ainda no início do governo. Os dois se conhecem desde a época em que o agora ex-ministro entrou na magistratura, nos anos 1990. Freitas foi presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e da Ajufe (Associação de Juízes Federais).
Qual o saldo da gestão de Sergio Moro no ministério?
Vejo um saldo positivo. Evidentemente não se atingiu tudo que se pretendia, mas se fez muito. Algumas coisas passaram despercebidas, mas foram da máxima importância. Por exemplo: a remoção de 22 presos do PCC para presídio federal quebrou elos. Muitas medidas na área de segurança, como a criação de um centro integrado em Foz do Iguaçu, o fortalecimento da secretaria especial de coordenação das polícias.
E algumas [medidas] não saíram como pretendido, como o pacote anticrime, que ficou aquém do que se esperava no ministério. São algumas frustrações, faz parte.
Entre elas, o sr. incluiria a retirada do Coaf [órgão que detecta movimentações financeiras suspeitas] da pasta e a sanção da Lei de Abuso de Autoridade?
Evidentemente, o Coaf estando ali junto [no Ministério da Justiça], as relações eram muito mais fáceis, mais diretas. Quando vai para outro ministério, tem que se fazer tudo de uma maneira formal, por ofício etc. Foi uma frustração. A Lei de Abuso de Autoridade também, porque ela cerceia muito a atividade da polícia, da Justiça, do Ministério Público.
Como era a relação com o presidente Bolsonaro?
Quem faz a relação é o ministro. A relação do ministro [Moro] com o presidente evidentemente tinha divergências, como no pacote de liberação de armas. Mas eram levadas assim, de uma maneira respeitosa, sem grandes atritos. Com o tempo, as divergências se agravaram. Mas o ministro não se queixava, nem para mim nem para outros secretários.
A liberação de armas, que é quase uma obsessão do presidente, causou atritos?
Talvez tenha sido o primeiro momento de posições mais divergentes. Mas era considerado como uma promessa de campanha [de Bolsonaro]. Tinha que ser respeitada, e o desejo do presidente tinha que ser satisfeito. E se tentava, mais do que tudo, evitar inconstitucionalidades. Mas não houve nada mais grave.
O sr. tratou da relação com o Congresso. O ministro não foi otimista demais em relação a como o Congresso reagiria [a suas propostas], já que ele teve uma carreira como magistrado que foi muito dura ao meio político?
Ele [Moro] não tinha experiência na vida política. Apesar de não ser político de carreira, ele foi muito gentil com congressistas, recebia pessoas o dia inteiro.
Depois, nos votos, muitas pessoas que tinham simpatia por ele votavam contra porque tinha o voto do partido, fidelidade partidária. Houve realmente uma reação maior do que a esperada. Mescla-se um caldeirão de interesses completamente diversos. Desde o político que teme uma lei mais dura porque pode ser alcançado por ela até partidos de esquerda que votavam contra porque simplesmente era Moro, quiçá um candidato a presidente fortíssimo. Outros por crenças teóricas, são do viés garantista. Tudo isso resultou que muitas iniciativas do pacote anticrime fossem afastadas.
O sr. não considera que Moro demorou tempo demais para se insurgir contra as intervenções de Bolsonaro?
Como renunciou a uma carreira totalmente estável, de segurança absoluta, ele [Moro] teve a resiliência de suportar situações difíceis, diferentes, junto ao Congresso, posições diferentes em relação ao presidente, tudo em nome de uma causa maior na qual ele acreditava. Posso dizer porque eu o conheço desde que ele entrou na Justiça há 23 anos.
A crença absoluta em criar um país melhor. A ideia era ir até onde for possível. Mesmo que cedendo aqui ou ali, alcançar um bem maior. Até chegar a um momento em que se entendeu que não daria mais.
Mas Moro não foi otimista demais também em relação à própria personalidade do presidente, que sempre teve uma carreira muito de posições extremadas, discurso radicalizado? Ele [Moro] não achou que seria fácil modular essa postura do presidente?
Falo por mim, não por ele, porque não sei o que ele pensava. Mas te asseguro que um juiz não conhece deputados. A vida de um juiz é completamente distante do pessoal do Legislativo. E o então deputado Bolsonaro, eu mesmo não tinha o menor ideia…
Eu sabia que era um deputado conservador, da direita, que tinha sido militar. Ninguém conhecia direito, exceto quem estava lá no Congresso.
Então, eu acredito que o ex-ministro não tinha nem ideia de como seria na verdade essa vida trabalhando juntos. Ele acreditava que seria uma pessoa [atuante] no combate à corrupção, à criminalidade. Porque a proposta do candidato era a mais forte de todas. Tinha candidatos moderados, de respeito, de propostas mais tímidas, modestas, nessa área. A carreira política do presidente era no Rio de Janeiro, ele [Moro] era um juiz do Sul do país, totalmente distante. Não creio que ele tivesse ideia de como seria a vida comum ali.
Moro não tinha informação de como seria a personalidade, como o presidente seria no dia a dia?
É uma opinião minha. Eram vidas totalmente distantes. E eu acredito que ele não tinha a menor ideia.
Como foram os dias decisivos para a saída de Moro do ministério? O sr. soube do embate entre ministro e presidente?
Eu acompanhei e senti nele [Moro] o desejo de encontrar uma solução conciliatória, que mantivesse o respeito e a dignidade do cargo dele. Ele tentou até o último minuto, mas não houve possibilidade e o resultado foi a ruptura.
Detalhes eu realmente não sei, se ele falou com general ou não.
O inquérito aberto para apurar a suposta interferência política do presidente na Polícia Federal tem tecnicamente também uma apuração sobre a possibilidade de prevaricação do ministro. O sr. entende que ele, por exemplo, pode não ter comunicado uma iniciativa irregular de Bolsonaro?
Não. Eu ouço falar de prevaricação e não entendo nem o que querem dizer. É uma conversa etérea, totalmente fora de propósito. Prevaricou em que momento, com o quê?
Moro sofreu um abalo em sua credibilidade em 2019 com a divulgação de conversas suas com o Ministério Público no aplicativo Telegram, nas quais dá orientações. Como o sr. viu esse episódio?
Criou uma celeuma grande. Para quem tem prática no Judiciário sabe que o Ministério Público e o juiz, ou a polícia e o juiz, conversam mesmo, discutem casos, isso é normal.
Naquele caso, ele [Moro] sempre negou as conversas. Não sei se houve ou não houve. Isso acontece e acontecerá sempre, porque o juiz não vive autônomo, encastelado. O juiz tem que conversar, também com a defesa, o que não quer dizer que vá comprometer.
Mas ele não pode orientar uma das partes, sob pena de ser enquadrado em uma situação de parcialidade.
Não lembro de um juiz orientar. Há limites não escritos que as pessoas conhecem.
O sr. acha que o ex-ministro vai seguir carreira na política, se candidatar?
Não sei porque nem ele mesmo tem certeza absoluta. Ele já tem convites, não só na política quanto na atividade privada. Ele está dando um tempo para ele mesmo, acredito que não tem certeza sobre o caminho a seguir.