O advogado Paulo Amador da Cunha Bueno, que representa o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), classifica como uma “narrativa contaminada pelo viés político” o relatório de 884 páginas da Polícia Federal no inquérito que apura uma tentativa de golpe de Estado. Para ele, “não há nada de ilegal em questionar-se ou investigar a higidez de um sistema de votação”. Em entrevista ao Estadão, Cunha Bueno afirma que “são fartos” os aspectos processuais que deveriam levar ao afastamento do ministro Alexandre de Moraes da relatoria do caso no Supremo Tribunal Federal (STF).
“O ministro Moraes não pode ser vítima, investigador e julgador”, sustenta o criminalista. “É pública e notória a inimizade capital entre o ministro e o presidente Bolsonaro que, inclusive, chegou a protocolizar no Senado um pedido de impeachment contra o ministro.”
Aos 50 anos, doutor e mestre em Direito Penal pela PUC/SP, aonde é professor concursado, Cunha Bueno considera que Bolsonaro não deve temer acabar na prisão. “Em havendo um processo que não se contamine pelo lamentável binômio da politização de justiça e da judicialização da política, não haveria porque o receio.”
Leia a íntegra da entrevista do advogado de Bolsonaro ao Estadão
ESTADÃO: O relatório de 884 páginas da Polícia Federal na Operação Contragolpe imputa ao ex-presidente Bolsonaro envolvimento direto na trama para permanecer no poder à força. Qual é a estratégia de defesa?
ADVOGADO PAULO AMADOR DA CUNHA BUENO: A defesa vê como absurda qualquer acusação de que o presidente Bolsonaro pretendia lançar mão de medidas visando sua permanência no poder ou, por outras palavras, perpetrar um golpe de Estado. Ao longo das 884 laudas do relatório da Polícia Federal, o que se tem é uma enorme narrativa, cujos pontos não se conectam por nenhum elemento de prova haurido ao longo de meses de investigação, o que só ratifica que se trata de uma narrativa, contaminada pelo viés político. A inexistência e insubsistência de elementos, aliás, é sintomática até pelo uso – por 96 vezes -, do advérbio “possivelmente”, revelando que esse relatório é totalmente pavimentado por presunções e não comprovações.
ESTADÃO: O ministro Alexandre de Moraes seria alvo de um plano de assassinato à bomba, o presidente Lula por envenenamento. Bolsonaro concordava?
CUNHA BUENO: O presidente Bolsonaro jamais soube de qualquer plano nesse sentido, tendo tomado conhecimento de sua suposta existência apenas a partir da apresentação e publicização do relatório da Polícia Federal.
ESTADÃO: O sr tem reclamado que o ministro Alexandre de Moraes não pode ser o relator do caso no STF. Por quê?
CUNHA BUENO: Por alguns aspectos processuais que, na espécie, são cumulativos: a uma porque estes autos deveriam tramitar no juízo de 1.ª instância e não na Suprema Corte; a duas porque não há a prevenção que o referido ministro sustenta existir, a partir de um argumento estéril de conexão probatória com o inquérito das fake news; a três porque o ministro Moraes é apontado, aliás aponta-se, nestes autos como suposta vítima de uma trama, não podendo, portanto, figurar ao mesmo tempo como investigador e posteriormente julgador; finalmente, a quatro, porque é pública e notória a inimizade capital entre o ministro e o presidente Bolsonaro que, inclusive chegou a protocolizar no Senado um pedido de impeachment contra o ministro, ainda no curso de seu mandato. As desavenças políticas entre ambos ficaram ainda mais evidentes a partir das notícias subscritas pelos jornalistas Glenn Greenwald e Fábio Serapião na Folha de São Paulo.
ESTADÃO: Os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica declararam em depoimento à Polícia Federal que o ex-presidente propôs um golpe. Bolsonaro nega esses fatos?
CUNHA BUENO: presidente Bolsonaro, rediga-se, jamais tentou, preparou ou mesmo cogitou em tomar qualquer ação golpista ou análoga a isso. Apesar do sentimento de que o processo eleitoral em 2022 foi disfuncional, a partir de decisões prolatadas pelo Tribunal Superior Eleitoral que favoreceram a campanha do candidato vencedor, a verdade é que foram analisadas só e somente medidas jurídicas com previsão legal na Constituição Federal, visando questionar alguns aspectos da eleição. Uma delas, inclusive, chegou a ser implementada com a representação apresentada pelo PL no TSE, questionando a eficiência das urnas eletrônicas fabricadas até 2020.
ESTADÃO: Bolsonaro sabia e concordava com a “Carta ao comandante do Exército de oficiais superiores da ativa do Exército brasileiro”, como disse o tenente-coronel Mauro Cid em mensagem?
CUNHA BUENO: O presidente Bolsonaro jamais participou ou soube da confecção de tal carta.
ESTADÃO: Mensagens obtidas pelos investigadores apontam que aliados do ex-presidente sabiam que não houve fraude e que as urnas eram seguras. Por que Bolsonaro insistiu no discurso contra o sistema eleitoral?
CUNHA BUENO: A questão não envolvia apenas a suspeita de fraude, mas também de eficiência das urnas fabricadas até certo ano. Foram feitas diversas análises e pareceres sobre a questão das urnas que chegaram, inclusive, a identificar falhas de programação que, a despeito de não se confundirem com fraude, revelavam possíveis riscos ao sistema eletrônico. Não há nada de ilegal em questionar-se ou investigar a higidez de um sistema de votação, aliás esse exercício traz, em última instância, transparência e aperfeiçoamento ao processo eleitoral. Lembro, inclusive, que a segurança dos sistemas do TSE é justamente o objeto do inquérito 1361/2018, que tramita na Polícia Federal do Distrito Federal. É importante também considerar que o direito de questionar ou de ter dúvidas é uma espécie do gênero do próprio direito de pensar e que não pode ser criminalizado.
ESTADÃO: É o terceiro indiciamento do ex-presidente. Bolsonaro teme ser preso? Ele acredita que ainda pode ter um futuro político e voltar a disputar eleições?
CUNHA BUENO: Em havendo um processo que não se contamine pelo lamentável binômio da politização de justiça e da judicialização da política, não haveria porque o receio. A defesa tem muita tranquilidade em seus fundamentos jurídicos em relação a todos os casos. Sobre eleições, em um modelo de república efetivamente democrático não haveria porque não permitir-se que o presidente Bolsonaro disputasse eleições, especialmente sob os argumentos de que reuniu-se com embaixadores e teceu comentários sobre o nosso processo eleitoral (abuso de poder político). O contrário, me parece que somente contribuiria a uma perspectiva de que no Brasil a democracia pode ser relativizada.
ESTADÃO: A PF não fala em atos preparatórios de golpe, mas sim em atos executórios. Como a defesa pretende rebater essa imputação?
CUNHA BUENO: Embora o presidente Bolsonaro não tenha tido qualquer conhecimento, participação ou aquiescência à ideia de uma ruptura institucional, é fato que da forma como a narrativa foi construída no relatório, não há como falar-se em início de execução e, portanto, em responsabilização penal, que não alcança atos de cogitação e eventuais atos preparatório. Os crimes contra o Estado Democrático de Direito, que foram a base do indiciamento de 37 pessoas, se executam somente mediante atos violentos, os quais não ocorreram ou mesmo tiveram início. Por outras palavras, se toda a narrativa construída no relatório fosse verdadeira, ainda assim não haveria como falar-se em tentativa, mesmo em relação aos demais investigados.
ESTADÃO: Segundo a Polícia Federal, havia um contato constante entre a Presidência e o acampamento montado no QG do Exército, que por sua vez foi central no 8 de Janeiro. Qual a relação do presidente com esse acampamento?
CUNHA BUENO: O presidente nunca teve qualquer contato com os acampamentos, aliás foi muito criticado por seu eleitorado mais fiel, justamente por não haver estimulado essas manifestações, após a eleição de 2022. Essa postura circunspecta do presidente trouxe-lhe, sem dúvida, desgaste político junto ao seu eleitorado.
ESTADÃO: O presidente editou a minuta do golpe como dizem a PF e Mauro Cid?
CUNHA BUENO: Como já dito, o presidente nunca articulou, preparou ou mesmo cogitou qualquer ação golpista de quebra da ordem democrática. As únicas discussões que houve após as eleições foram estritamente jurídicas.