Não é mais um exagero. A perspectiva de uma ruptura entre a Europa Ocidental e o governo de Donald Trump e o consequente fim, do ponto de vista europeu, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) se tornou um cenário real para militares brasileiros. Não se sabe ainda aonde o abandono da Ucrânia à sua própria sorte pelos americanos pode conduzir a aliança atlântica. Mas cartas estão sendo postas na mesa, diz Marcelo Godoy, do Estadão.

Para os militares brasileiros, a cena da briga de Trump com o líder ucraniano Volodmir Zelenski só reforça a necessidade de um desenvolvimento autônomo da defesa nacional. Em dez dias, parlamentares paulistas devem se reunir na Assembleia Legislativa paulista para criar uma frente para a “colaboração em segurança pública, defesa e desenvolvimento nacional”. A iniciativa é acompanhada pelo Comando Militar do Sudeste.
Há complicações gigantescas quando a política americana procura uma aproximação com Putin. No mesmo dia em que o americano se vingava de Zelenski e jogava no lixo a aliança atlântica, o Exército Brasileiro oficializou a compra de até 222 mísseis Javelin e 33 unidades de tiro ao custo de US$ 74 milhões. Ela demonstraria a dependência do Brasil, bem como de qualquer exército ocidental, da indústria americana.
A aquisição desse equipamento anticarro havia sido confirmada pelo comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, em dezembro de 2024, quase dois anos após o Departamento de Estado dos EUA ter aprovado a venda ao Brasil. Durante esse tempo, o país ainda recebeu uma centena de mísseis Spike LFR2 israelenses e acertou a compra de mais uma centena do míssil brasileiro MAX 1,2 AC, desenvolvido pela Siatt. Parte desse material foi enviado a Roraima para dissuadir qualquer aventura venezuelana na região. Mas tudo isso é quase nada quando se trata de fazer frente a potências extrarregionais.

Foi a necessidade de um desenvolvimento autônomo que levou a Marinha ao míssil Mansup, cujas versões com alcance estendido de até 200 quilômetros poderão equipar unidades do Corpo de Fuzileiros com o Sistema Astros para a defesa da costa brasileira. Solução idêntica deve ser adotada pela marinha de Angola. A mesma necessidade levou ao desenvolvimento do submarino nuclear brasileiro e ao projeto do míssil tático de cruzeiro do Exército, bem como vale para a a disposição da Força Terrestre de obter um sistema de artilharia antiaérea de média altura com a Índia.
A Europa vai também por esse caminho. O movimento do primeiro-ministro polonês, Donald Tusk, do futuro primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, e do presidente francês, Emmanuel Macron, de consolidar uma aliança militar entre os países além da União Europeia, com o consequente aumento dos gastos em defesa, indica à Europa que seu futuro não poderá mais depender tanto dos EUA. Outros países europeus devem se aliar ao movimento dos três. A Polônia pediu recentemente para fazer parte do consórcio Airbus. Já dois gigantes da indústria de defesa da Europa anunciaram uma parceria: a Rheinmetall alemã e a Leonardo italiana.
Em meio a tudo isso, um outro movimento importante aconteceu nesta sexta-feira enquanto Trump fazia pouco caso de seus aliados históricos. Em Pequim, o secretário do Conselho de segurança russo, Serguei Shoigu, era recebido pelo presidente chinês, Xi Jinping. “Hoje as relações sino-russas de parceria global estratégica estão em um alto nível sem precedentes na nossa história”, afirmou Shoigu, conforme relatado pelo jornal italiano Corriere della Sera. Shoigu encontrou ainda o ministro do exterior chinês, Wang Yi. Ou seja: o movimento de Trump em direção a Putin é uma dádiva a russos e a chineses.

Nesta sexta-feira, quase duas dezenas de líderes europeus se colocaram ao lado de Zelenski. Até Giorgia Meloni, a direitista que governa a Itália, fez um apelo contra a divisão do Ocidente e pediu ainda uma reunião entre UE e EUA. Teme os efeitos para seu futuro político em uma Europa sem os americanos. Diante desses cenários, Trump deveria ter ouvido a advertência de Zelenski antes de implodir seus aliados: “Haverá consequências também para os americanos”. Mas não só. Para os brasileiros também as consequências serão dramáticas e as escolhas, angustiantes.