O Brasil observa com preocupação a eleição de Javier Milei na Argentina e teme que o ultraliberal frustre um acordo entre União Europeia e Mercosul, embora fontes do governo Lula confiem que o pragmatismo prevalecerá entre os dois parceiros comerciais.
O candidato libertário, que derrotou o peronista Sergio Massa no domingo (19), ameaçou retirar seu país do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) em um momento em que o bloco intensifica negociações com a União Europeia para fechar um acordo de livre comércio “o quanto antes”.
No plano bilateral, Milei garantiu que caso se tornasse presidente, não se reuniria com Luiz Inácio Lula da Silva, a quem chamou de “corrupto” e “comunista”.
O presidente brasileiro desejou “sorte” ao novo governo argentino no domingo, sem citar o nome do vencedor das eleições, e não estará presente na posse, segundo uma fonte do Palácio do Planalto. Enquanto isso, Milei convidou pessoalmente, na segunda-feira (20), seu antecessor de extrema direita, Jair Bolsonaro, para a cerimônia.
Entretanto, de acordo com duas fontes do governo brasileiro, a estreita relação entre os dois grandes países sul-americanos superará as diferenças entre Milei e Lula.
O governo brasileiro intensificou os contatos com a equipe do ultraliberal uma semana antes da decisão do segundo turno, apurou a AFP.
“O que temos visto é um distanciamento entre as coisas que tem dito e o que tem dito pessoas próximas a ele (…) a centralidade da relação com o Brasil vai continuar, é importante” e será cuidada no governo Milei, disse uma das fontes, que acompanha de perto a relação entre os países.
“Parte disso é retórica e parte é uma incógnita para saber o que vai se transformar em política e o que vai ficar perdido no discurso”, acrescentou.
Hostilidades continuam?
Especialistas lembram as hostilidades entre Bolsonaro (2019-2022) e o atual presidente argentino, Alberto Fernández. E destacam que mesmo assim as relações comerciais não foram afetadas.
“Bolsonaro não colocou nenhum obstáculo na relação entre as empresas brasileiras e argentinas”, e nas poucas vezes em que estiveram juntos, não houve atritos visíveis entre os dois, disse Roberto Goulart, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina, país imerso em uma grave crise econômica com uma inflação anual acima dos 140% e escassez de reservas.
Entre janeiro e outubro deste ano, o Brasil exportou US$ 14,9 bilhões (cerca de R$ 72,6 bilhões na cotação atual) para a Argentina, mais de 5% do total vendido pela maior nação sul-americana ao exterior e 40% do total da região. Entre os principais produtos estão a soja, automóveis e peças veiculares.
No mesmo período, o Brasil importou US$ 10,15 bilhões (R$ 49,4 bilhões) da Argentina, sendo os automóveis a maior parte.
Pressão do agronegócio
Goulart acrescentou que Milei terá que se compor entre setores internos com viés ideológico mais aflorado que o apoiaram na corrida presidencial e o agronegócio, que apoia o acordo de livre comércio entre UE e Mercosul.
Para o presidente eleito, o bloco regional é uma “união aduaneira falha”.
O argentino “vai ter pressão interna de setores exportadores que apoiam o acordo” e a ala antiglobalista, ultraliberal, que o considera “protecionista”, explicou.
Após anos de estagnação, as negociações ganharam novo impulso com o retorno de Lula ao poder, em janeiro, cujo governo mantém o objetivo de fechá-las até o final do ano.
O ministro da Agricultura alemão, Cem Oezdemir, fez um apelo à aceleração das negociações, alertando para um panorama político “cada vez mais difícil” devido à “ascensão do populismo tanto lá como aqui”, enquanto o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell pediu ao próximo governo argentino que veja uma eventual conclusão do acordo como um “resultado positivo” para ambos os blocos.
Atual presidente do Mercosul, o Brasil convocou a próxima cúpula regional do bloco para o dia 7 de dezembro, no Rio de Janeiro, três dias antes de Milei assumir o cargo na Casa Rosada, no que fontes próximas às negociações garantem ter sido uma estratégia para evitar a presença do direitista caso ele ganhasse as eleições.
O governo de Milei poderia “recusar-se a cooperar” e não “assinar o acordo UE-Mercosul”, escreveu o pesquisador do Eurasia Group, Luciano Sigalov, em um texto publicado pelo Wilson Center.
Entretanto, “as circunstâncias provavelmente o forçarão a moderar, dada a importância do Brasil para a balança comercial e a indústria local da Argentina”, acrescentou.
Mas “as relações continuarão de qualquer maneira, a questão é saber a qualidade” delas, acrescentou outra fonte do Palácio do Planalto.