Entre as primeiras ações na Justiça Eleitoral que envolvem o uso de inteligência artificial (IA), uma novidade da campanha deste ano, parte dos processos se destaca por mirar publicações de tom humorístico, com menções a filmes e séries. Apesar do questionamento por suposto uso irregular da tecnologia, os pedidos têm sido rejeitados pelo entendimento de que críticas jocosas e postagens bem-humoradas não podem ser censuradas ou pela avaliação de que as novas regras do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não foram desrespeitadas. As informações são do jornal, O GLOBO.
O TSE proíbe, por exemplo, recorrer aos chamados deepfakes, quando imagens ou áudios são manipulados para inventar declarações ou situações. Outros usos, como para edições, são autorizados, desde que o emprego da nova tecnologia seja identificado. Em alguns dos casos em que há alegação de uso de IA, a suposta edição por meio da ferramenta não fica clara ou é feita de forma rudimentar, com montagens evidentes.
O caso de maior repercussão envolve uma postagem da deputada federal Tabata Amaral (PSB), pré-candidata a prefeita de São Paulo. Na terça-feira, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) rejeitou um recurso apresentado pelo MDB contra Tabata após a parlamentar usar uma cena do filme “Barbie” para ironizar o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que busca a reeleição.
Inicialmente, Tabata publicou um vídeo no qual o rosto de Nunes era inserido no lugar da imagem do ator Ryan Gosling, que interpretou Ken, o que poderia ser considerado deepfake. Depois, postou uma nova versão, com uma foto do prefeito em cima do corpo do personagem.
A ação foi rejeitada em primeira instância. “Claramente se vê que se trata de montagem desprimorosa, incapaz de levar qualquer visualizador a erro, dado o uso de recursos rudimentares para a realização da sobreposição de imagem”, avaliou o juiz eleitoral Paulo Eduardo de Almeida Sorci, em abril.
Críticas de magistrados
Na terça-feira, ao analisar o caso, a relatora no TRE, juíza Maria Cláudia Bedotti, afirmou que o vídeo não se enquadra na proibição do TSE porque não houve intenção de enganar os eleitores:
— Não há a mínima chance de se compreender que aquela pessoa que está dançando no vídeo seja de fato o prefeito Ricardo Nunes. Não há a mínima possibilidade de desinformação do eleitorado.
Na mesma sessão, o desembargador Cotrim Guimarães ironizou a discussão envolvendo “Barbie e Ken”:
— Há uma judicialização excessiva dos fatos eleitorais. Temos uma eleição municipal pela frente, são 645 municípios a se enfrentar, e nós ficamos quase uma hora discutindo a respeito de Barbie e Ken. Imagino que em outros municípios vamos discutir Batman, Coringa, Hulk e Capitão América. Não vejo que essa discussão tenha um interesse eleitoral tão profundo.
O advogado Ricardo Porto, que defendeu o MDB, alega que a modificação de uma imagem deve ser punida mesmo que não cause confusão:
— O uso de inteligência artificial é o grande fantasma desta eleição. A alteração de imagem de um candidato, ainda que ela não cause confusão ao eleitoral, pode caracterizar ridicularização, devendo então ser proibida sua exibição na propaganda eleitoral.
Em Arapongas (PR), o ex-secretário municipal e pré-candidato a prefeito Rafael Cita virou alvo do PL por uso de IA e propaganda antecipada após postar, no ano passado, uma imagem sua no estilo das animações da Pixar, seguindo uma onda das redes sociais da época, com a mensagem “Juntos podemos fazer mais”. Contas da prefeitura e de uma secretaria fizeram postagens no mesmo estilo. A ação foi rejeitada em duas instâncias pelo entendimento de que não houve pedido de voto.
“A utilização de software de inteligência artificial para converter elementos locais de Arapongas em desenhos que espelhem a linguagem visual dos estúdios Disney-Pixar não é capaz de roçar à caracterização de propaganda eleitoral, quando muito a provocar a imaginação da população e a incentivar gatilhos lúdicos em seus pensamentos”, concluiu o juiz Julio Jacob Junior, do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR).
O advogado João Graça, um dos autores da ação, afirmou que o objetivo não foi discutir o uso de IA, mas o suposto pedido de voto. “O questionamento seria a propaganda eleitoral extemporânea pois algumas secretarias do município fizeram semelhante publicação”, argumentou em nota.
‘Muito possivelmente IA’
Em São Paulo, uma página de Itapevi foi questionada por usar trechos da série “Xena: A Princesa guerreira” e da franquia “Velozes e furiosos”, com nomes do atual prefeito, Igor Soares, e da pré-candidata Camila Godoi. A defesa de Godoi apontou que a montagem “muito possivelmente” teria sido feita com IA, e que foi utilizado um “tom escarnecedor” contra ela. A Justiça rejeitou um pedido de liminar por considerar que não houve propaganda antecipada negativa. A ação ainda será analisada.
O advogado Leonardo Festa, que atuou no caso, afirma que não era possível ter certeza sobre o emprego de IA, mas que citou a possibilidade porque poderia configurar irregularidade:
— Em muitos casos esse uso depende, inclusive, de perícia. Nós não teríamos como afirmar, tanto que coloquei “muito possivelmente”. Além do pedido de voto, também caracteriza propaganda antecipada irregular o uso de uma forma vedada em lei.
Sem regulação, Justiça traça o limite para novas tecnologias
A Justiça Eleitoral não tem lidado apenas com memes e casos de montagens rudimentares, quando o assunto é inteligência artificial. Recentemente, juízes de ao menos quatro tribunais regionais eleitorais aplicaram multas ou determinaram a remoção de conteúdos no âmbito das eleições municipais. Essas decisões começam a formar uma primeira jurisprudência sobre o tema, a partir da aplicação das resoluções aprovadas no início do ano pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), diante da difusão de ferramentas para gerar imagens, textos e áudios e da ausência de uma regulação aprovada pelo Congresso.
Como mostrou O GLOBO, boa parte desses casos envolveu o uso de deepfakes e gerou punições pelo objetivo de enganar o eleitorado, na avaliação dos magistrados. Em Costa Rica, no Mato Grosso do Sul, o empresário e pré-candidato Waldeli Rosa (MDB), por exemplo, foi multado em R$ 10 mil por um vídeo manipulado do atual prefeito, Cleverson Alves (PP). Um áudio comparando a população a cachorros foi colocado num vídeo do prefeito divulgado num grupo de WhatsApp. A publicação foi de um funcionário da empresa de Rosa, e ele faz parte do grupo.
Em Pernambuco, uma imagem adulterada do editor e apresentador do Jornal Nacional, da TV Globo, William Bonner, foi usada em uma mensagem falsa contra o prefeito de Agrestina, Josué Mendes (PSB). O caso levou à derrubada de um perfil no Instagram.
Em paralelo, investigações da Polícia Federal ainda em curso apuram áudios falsos atribuídos a pré-candidatos. Além das edições em vídeo, o formato, que costuma ter apelo principalmente em aplicativos de troca de mensagens, é uma tendência no contexto brasileiro.
Em fevereiro, a corporação fez uma operação para identificar os envolvidos na criação e divulgação de um áudio falso do prefeito de Manaus, David Almeida (Avante). Na gravação atribuída a ele, a voz do político, emulada por inteligência artificial, tratava os professores da rede municipal de ensino como “vagabundos” e dizia que os servidores “querem um dinheirinho de mão beijada”. A apuração está em andamento.
A PF também investiga a origem de um áudio falso de um pré-candidato do Paraná em que o político aparecia elogiando um adversário. A Justiça chegou a determinar, no âmbito desse caso, que o WhatsApp impedisse o compartilhamento da mensagem. A empresa, porém, alegou não ter encontrado o conteúdo — uma sinalização do desafio que o combate a esse tipo de desinformação nas plataformas representa.