Pneumologista revela pressão de pacientes para serem incluídos em lista como portadores de comorbidades sem atender a pré-requisitos
“O Whatsapp de médico virou coisa pública”, brinca a hematologista Mercês Borja, num dos raros intervalos de 15 minutos que consegue entre uma consulta e outra. A agenda de trabalho está lotada e o celular dela, igualmente disputado. Sem intervalo, o aparelho bipa com dezenas de mensagens de pacientes que pedem para ser incluídos no sistema de vacinação para pessoas com comorbidades. Nem sempre todos se enquadram, mas, ainda assim, alguns pressionam. “Não me encaixo em nenhuma dos parâmetros?”.
Em entrevista ao jornal Correio da Bahia, Mercês Borja disse que a inclusão de parte da população com doenças crônicas na terceira fase do plano de vacinação, em Salvador, provoca uma corrida aos médicos, seja em consultas ou por mensagens. São eles que avaliam o paciente, checam o uso de medicamentos e pedem, eventualmente, exames que atestem a patologista. Só depois disso – pelo menos, na teoria – aqueles que não foram automaticamente incluídos podem ser inseridos no sistema online da Prefeitura e ter acesso à imunização contra a covid-19.
Os portadores das 23 doenças crônicas aptos a receber a vacina somam 400.625 pessoas, segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador. Esse número reflete apenas quem é acompanhado pelo Sistema Único de Saúde e crescerá conforme acontecerem cadastros pela rede privada. Pelo menos 107,6 mil pessoas com idade acima de 18 anos já foram vacinadas como portadoras de comorbidades.
“Não sei nem te dizer quantas mensagens, do Brasil inteiro, eu recebo. Se você me perguntar, aumentou a procura? Aumentou. Mas eu sou muito categórica”, conta Mercês, especializada no atendimento aos imunossuprimidos, com problemas relacionados ao sistema imunológico. Em Salvador, eles são 27.027.
“Ou o paciente vem munido de documentação ou o médico o conhece bem. Alguém me liga e pergunta: pode fazer o do meu primo? Não existe”, afirma.
Há duas semanas, dois pacientes requisitaram a hematologista, por mensagem, para serem incluídos na lista. Nenhum se enquadrava nas exigências para inclusão. “Sou extremamente criteriosa. Sofremos certo tipo de assédio, querem que usemos por ‘amizade’”, reclama a médica.
Antes de finalizar o cadastro de pacientes como prioritários para a vacinação, os médicos atestam que são os responsáveis legais pela veracidade das informações apresentadas. O Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) ainda não recebeu denúncias de médicos “coagidos para atestar comorbidades de pacientes que querem se vacinar”. Mas, está aberto a acolher eventuais queixas.
Por duas vezes, a pneumologista Márcia Marinho, que conseguiu atender a reportagem apenas por mensagem, foi ameaçada por pacientes que não cumpriam os requisitos, mas queriam ser cadastrados no sistema. Eles disseram que prestariam queixa no Cremeb contra a médica, a quem restou, para finalizar a discussão, mostrar o documento que determina quais devem ser os imunizados.
“Os pacientes têm pressionado mesmo e às vezes se aborrecem quando esclarecemos quem de fato deve ser vacinado. Entendemos que isso decorre do medo de adoecer e da ansiedade para receber logo a vacina”, defende Márcia, que recebe em seu consultório pessoas com problemas nos pulmões, um dos órgãos mais afetados pelo coronavírus.
Quem está incluído na vacinação, no entanto, são aqueles com “pneumopatias crônicas graves”, como asmas crônicas, tratada com uso contínuo de corticóides. Pelo menos 212.457 pessoas se enquadram como portadores dessa pneumopatias, ainda de acordo com a SMS.
Busca por relatório fez crescer em 50% atendimentos em consultório
Desde o início do mês, quando foi anunciada a vacinação de pessoas com comorbidade, o cardiologista Ricardo* não consegue mais ir embora do consultório às 15h, em Salvador, como estava acostumado. O médico só se despede da sua sala às 18h.
“Hoje mesmo foi infernal. E muita gente, muita gente, está indo lá só para ser incluído na lista. Vamos dizer que teve um aumento de 50%”, estima.
Cardiologista há mais de três décadas, precisou adotar padrões ainda mais rígidos durante as consultas, antes de incluir um paciente com doença crônica na lista de prioridades. Afinal, não são todas as comorbidades que estão contempladas e, mesmo entre elas, há diferenciações.
Não é, por exemplo, qualquer hipertenso que pode ser vacinado. É preciso ter Hipertensão Arterial Resistente, quando a pressão permanece alta mesmo com o uso de três anti-hipertensivos; hipertensão arterial estágio 3, com pressão acima de 18/11; ou hipertensão arterial estágios 1 e 2 com lesões em órgão ou comorbidade associada.
Foi a Comissão de Intergestores Bipartite (CIB), que reúne as secretarias municipais e estadual de saúde, quem definiu a ordem de escalonamento dos grupos a serem vacinados na Bahia, com base no risco de exposição dos pacientes à covid-19. “Mas sabe o que está acontecendo?”, questiona Ricardo.
“Estou perdendo um bocado de pacientes que me dizem assim: Ah, meu colega está tomando tal remédio e vai para tal médico e conseguiu ser incluído”, ele próprio responde.
O cardiologista identifica, no dia a dia, dois tipos de pacientes que, mesmo sem necessariamente se enquadrarem na lista de prioridade, fazem pedidos em consultas ou por mensagens: aqueles que não se consultam com ele há anos, dos quais ele desconhece o atual quadro clínico, e outros que tentam forçar uma inclusão, na base do “meu amigo conseguiu com outro médico”.
Há pouco mais de uma semana, uma ex-paciente entrou em contato com ele para pedir que fosse colocada na lista de aptos a vacinar. “Eu não podia simplesmente fazer isso. Tinha 14 anos que eu sequer via a situação dela”. Ao fim da conversa, a mulher disse que faria uma denúncia contra Ricardo ao Ministério Público. O órgão confirma que recebeu reclamações de pessoas que possuem comorbidades e não foram colocadas no sistema, mas não informou quantas foram.
A SMS afirma que não existe identificação de qualquer sinal de irregularidade no cadastro de pacientes. Com o sistema utilizado, avalia Ivan Paiva, coordenador do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, isso “é praticamente impossível”. A pasta não informou se as consultas na rede pública municipal marcadas por pessoas em busca de inclusão no sistema aumentaram.
Salvador é a única das 417 cidades baianas que criou um site para cadastro dos pacientes. No interior, os pacientes apresentam relatórios médicos no ato da vacinação. “Houve aumento de 30% aqui no consultório”, estima o cardiologista Ebenezer Pereira, que atende em Feira de Santana, segunda maior cidade do estado.
Como não há um portal que centralize informações dos pacientes, o jeito é investigar. “Aí tem que investigar bem, pedir exames. Se um espertinho vier, já sabe como funciona”, conta Ebenezer. A Secretaria de Saúde da Bahia explica que a operacionalização da vacinação é feita pelos municípios e que não participa do processo de verificação da autenticidade de relatórios apresentados para que a pessoa seja vacinada.
‘Não é um paciente vir, me falar que é hipertenso e ser incluído na prioridade’, diz médico
O médico angiologista e presidente da Associação Baiana de Medicina (ABM), César Amorim, recorre a um exemplo próximo para mostrar o quão ansiosos todos estão para ser vacinados. A esposa dele, que tem asma leve, perguntou se ela se enquadraria nos requisitos, ao que o marido respondeu: “Não, não pode, tem que esperar a idade”.
“Não é um paciente vir, até por telemedicina, me falar que é hipertenso, diabético, e assim por diante, e ser incluído na prioridade. Esse não é o critério correto”, defende César.
Qualquer inclusão de pessoas saudáveis, ou de pessoas com comorbidades leves, erronaeamente, na lista de prioridade pode significar que uma pessoa que é do grupo de maior risco para a covid-19 permanecerá desprotegida por mais tempo.
Por isso, o representante da ABM acredita que os pacientes devem ser atendidos por especialistas que possam atestar da forma mais fidedigna ao estado clínico.
“A gente consegue agilizar o processo usando tecnologia, sem ficar usando papel. Podemos fazer isso de forma mais eficiente”, acredita César, ao contrapor a realidade nos interiores.
O médico reforça que, se você conhece quem foi incluído na lista de prioridade por comorbidade, sem ter um problema diagnosticado ou apto a receber vacinação, pode denunciar ao Cremeb, por exemplo. O Cremeb não disponibilizou contato de membros da diretoria para comentar o assunto, mas também não recebeu denúncia nesse sentido.
Enquanto alguns tentam uma inclusão na marra, na base dos contatos, outros sequer conseguem se consultar com um médico. A saga para conseguir atendimento e ser incluída na lista é ainda maior para quem não tem alternativa senão recorrer ao serviço público de saúde, realidade da maioria dos baianos.
Em Salvador, de março de 2020 a março de 2021, um ano depois do início da pandemia, 201.146 pessoas deixaram de ter planos de saúde. A Agência Nacional de Saúde Suplementar mostra que a capital baiana tem 790.821 pessoas com plano privado. Em todo o estado, 1,5 milhão.
Administrador cria rede de apoio para pessoas sem plano de saúde conseguirem a vacina
Na manhã do dia 5 de maio, Daniel Bonfim, 35, recebeu uma mensagem de uma senhora em desespero. Diagnosticada com obesidade mórbida, diabética e hipertensa, a mulher sobrevivia com R$ 150 por mês – valor do auxílio emergencial. Não tinha sido incluída automaticamente no sistema, tampouco apresentava condições físicas de tentar um atendimento num posto de saúde, e pedia que o rapaz a ajudasse.
“Ela conseguiu porque um amigo meu médico conversou com ela e viu que se encaixava”, conta Daniel.
O administrador criou uma rede de apoio chamada para pessoas com comorbidades impossibilitadas ou com dificuldade de marcar uma consulta. Filho de mãe cardiopata, ele a viu sofrer na pele a busca por atendimento médico. É esse médico, amigo de Daniel, quem se dispôs a fazer teleconsultas gratuitas para quem busca o grupo. No Instagram @unidos_pelavacina é possível ter mais informações sobre o funcionamento das marcações.
Se a procura por médicos cresceu, não necessariamente isso se reflete diretamente no número de doentes crônicos vacinados. Nas últimas duas sextas-feiras, a Secretaria Municipal de Saúde realizou mutirões nos 155 postos de saúde da cidade para acelerar o cadastro daqueles que mais precisam de imunização.
A secretaria falava em “baixa adesão” dessas pessoas, por desconhecimento em relação ao direito e a dificuldade de inclusão na lista. No multirão da última sexta, 5.914 pessoas foram cadastradas, segundo a SMS.
Na casa onde mora, no bairro de Itacaranha, Maria das Graças Costa, 58 anos, enfrentou dias de agonia justamente por não conseguir ser incluída. Ela tem asma grave há 15 anos. A cada três meses, precisa ser submetida a uma espirometria, exame que mede a função dos pulmões. A aposentada, desde o início do mês tentava atendimento com uma médica que pudesse incluí-la na vacinação. “Fiquei quase um mês”, lembra. Na vizinhança, Maria se amedronta a cada morte – já perdeu o vizinho de porta.
Há oito dias, ela conseguiu segundo o jornal Correio, agendar uma consulta no primeiro mutirão realizado pela Prefeitura, num posto no bairro de Fazenda Coutos. Incluída por um dos médicos, esperou uma fila de dez pessoas para ser vacinada. Pela primeira vez em mais de um ano, passou uma semana mais tranquila.