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quinta-feira 10 de novembro de 2022 às 17:01h

‘Me senti na inquisição’: ‘listas de petistas’ se espalham pelo país e causam medo

DESTAQUE, NOTÍCIAS, POLÍTICA


Pouco após o primeiro turno das eleições, um questionamento chamou a atenção da cabeleireira Monika Ganem. “Uma cliente ligou para perguntar a um profissional do meu salão se eu estava trabalhando pro Lula. Ele respondeu: ‘claro que não'”, conta a empresária, que há 30 anos é dona de um salão de beleza em Maringá (PR).

Dias depois, de acordo com reportagem de Vinícius Lemos , na BBC News, ela descobriu que o seu estabelecimento estava em uma “lista de petistas” que eleitores de Jair Bolsonaro (PL) elaboravam para que pessoas deixassem de frequentar.

“Fiquei me sentindo na fogueira da inquisição ou nos porões da ditadura militar”, revela a cabeleireira.

Ela frisa que nunca declarou voto no petista ou em qualquer candidato. “Mesmo que eu tivesse me manifestado publicamente, estaria no meu direito. Eu enxergo esse tipo de perseguição como uma violência irremediável, já que a Constituição nos assegura o direito de pensar e expressar pensamento.”

Uma situação parecida foi vivida pelo cirurgião plástico Michel Patrick, de Cuiabá (MT). Ele teve o seu nome citado em uma lista semelhante em Mato Grosso.

“Isso tem, lógico, uma conotação de segregação e exclusão, com a mensagem: não façam negócio com esse tipo de gente. Situações desse tipo abalam as pessoas, fazendo com que se sintam ameaçadas”, diz.

O médico também afirma que nunca manifestou voto em Lula. “Não sou petista, isso se torna impossível pois não sou partidário, não tenho político de estimação e não falo sobre política nos meus canais de comunicação.”

Os dois casos ilustram uma situação que se tornou recorrente nas últimas semanas em diversas regiões do país: as inúmeras “listas de petistas” que são compartilhadas em grupos bolsonaristas em forma de repúdio, com incentivo para que as pessoas não frequentem esses lugares ou não contratem esses profissionais.

Entre os alvos desses tipos de listas há estabelecimentos ou profissionais de diferentes áreas. Até mesmo servidores públicos foram mencionados.

A BBC News Brasil ouviu algumas histórias de pessoas que foram citadas em algumas dessas listas. Além do receio de enfrentar prejuízo financeiro, elas também temem que se tornem alvos de diferentes tipos de ataques.

Monika optou por não denunciar a situação às autoridades, ao menos por ora. Já Michel registrou um boletim de ocorrência e avalia as medidas judiciais cabíveis.

Especialistas têm apontado que cada caso tem que ser analisado individualmente, mas frisam que pode se enquadrar como difamação, que prevê pena de um a três anos de detenção. Além disso, é possível pedir indenização por danos morais ou materiais e até tentar descobrir a origem da lista por meio da Justiça.

‘Um discurso de ódio pesado que te atinge’

Além dos profissionais liberais ou donos de estabelecimentos que dizem evitar se manifestar sobre política, essas listas também mencionam aqueles que são publicamente a favor do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

Para a comerciante Letícia (nome fictício), dona de um restaurante vegano em São Paulo, a manifestação de apoio ao PT e contra o atual presidente Jair Bolsonaro sempre fez parte da rotina de seu estabelecimento. “Talvez eu tenha sido ingênua em não imaginar o que isso poderia causar.”

Ela diz que já havia ouvido críticas pontuais sobre o seu posicionamento político, mas nunca acreditou que viveria algo semelhante ao que enfrentou dias atrás quando uma página bolsonarista mencionou o restaurante dela em uma lista de estabelecimentos petistas numa rede social.

“Pegaram as nossas fotos, com as bandeiras do Lula e do Haddad (candidato petista ao governo de São Paulo, que foi derrotado) e postaram com a mensagem: essa empresa chama a gente de genocida e de nazistas. Incitaram os ataques”, diz Letícia.

A partir de então, o estabelecimento dela começou a receber inúmeras ofensas na rede. “Eu diria que vai dando uma noção do perigo que a gente corre e que geral está correndo. É uma coisa muito descontrolada, um discurso de ódio pesado que te atinge. Eles sabem falar as coisas que vão lá no fundo e assusta”, diz a comerciante.

“Eu me senti invadida e acuada. É uma invasão de privacidade, um desrespeito enorme ao pensamento de cada um e à democracia”, diz ela.

“Mesmo que seja só um assédio virtual, compartilharam também o nosso endereço e nossos rostos, então deu medo de haver algum assédio físico na hora também. É a proliferação de uma cultura antidemocrática e violenta”, acrescenta o sócio dela.

Em meio às ofensas, eles compartilharam a situação no perfil do estabelecimento no Instagram e também passaram a receber diversas mensagens de carinho.

“Quando comecei a ver o apoio das pessoas, me senti um pouco mais tranquila. Mas antes disso mexeu bastante comigo e me deu até tremedeira”, conta.

Os dois registraram um boletim de ocorrência sobre o caso. E apesar de tudo o que enfrentaram, não se arrependem de manifestar publicamente apoio a Lula. “Espero que isso caia no esquecimento e que a gente possa trabalhar e ter a nossa vida. Não vou deixar de postar e apoiar a democracia”, declara Letícia.

A mesma página que expôs o restaurante de Letícia também mencionou a cafeteria de Fernanda (nome fictício), em Goiânia (GO), na lista de “locais petistas”.

“Na nossa porta de entrada tem uma mensagem ‘Lula livre’, mas ainda assim recebemos mensagens de pessoas falando que não sabiam que a gente era de esquerda”, comenta Fernanda, ao explicar que nunca escondeu que era contra a gestão de Jair Bolsonaro.

“Pessoalmente, nunca passamos por nenhum constrangimento ou recebemos algum tipo de ataque, mas pelas redes sociais foi muito pesado nesse ano.”

A enxurrada de comentários negativos começou pouco após a página bolsonarista divulgar a cafeteria. “Fiquei muito mal com isso e chorei. Também fizeram xingamentos no meu perfil pessoal e até ofenderam a minha família. Diziam que queriam que a gente morresse ou falisse”, diz.

“Eu me senti muito triste e oprimida, a gente se esforça muito para fazer um trabalho legal, estou pagando empréstimo que fiz porque fiquei endividada na pandemia”, acrescenta.

Além disso, conta a comerciante, as pessoas foram a uma plataforma de avaliações e deram notas ruins para o estabelecimento.

“Derrubaram a nossa avaliação e fizeram comentários falsos. Isso prejudicou bastante, porque é uma avaliação muito importante”, comenta.

“Eu acho ‘de boa’ ter uma lista dessas e o meu posicionamento nunca foi segredo. O problema é atacar, ir atrás e fazer comentários de ódio sobre um lugar só por causa da visão política.”

Ela optou por não registrar boletim de ocorrência. “Sinto que a velocidade dos comentários negativos diminuiu, então acredito que essa onda está passando.”

“E ao menos recebi muito acolhimento e apoio depois disso. Não me arrependo do meu posicionamento, não vou deixar de ser quem eu sou por causa dessa violência”, declara.

Letícia e Fernanda afirmam que por sempre terem defendido abertamente a eleição de Lula, não acreditam que perderão clientes após serem expostas nas páginas.

‘Pessoas mais preconceituosas deixaram de frequentar o salão’

Um dos principais receios desses profissionais mencionados nessas listas é sofrer prejuízo financeiro.

O cirurgião plástico Michel Patrick diz que a situação afastou algumas pessoas que planejavam procurá-lo. “Perdi algumas (pacientes), gente falando que ia fazer comigo no futuro, mas que agora não faria mais”, afirma.

Mas ele acredita que também deve ganhar outros clientes, após compartilhar uma nota para lamentar a situação e afirmar que não apoiou nenhum candidato nas eleições.

No salão de Monika, o impacto da lista já começou a ser notado na agenda de atendimentos. “Percebi que as pessoas mais preconceituosas deixaram de frequentar o salão. Algumas eram muito frequentes e assíduas. Isso impacta de modo geral, mas não em números de visitantes do salão”, diz.

Apesar disso, ela afirma que também recebeu manifestações de apoio após ser mencionada na lista.

Em seu perfil no Instagram, Monika compartilhou um vídeo sobre o tema e disse que ficou sem dormir por conta da situação.

“Fui acusada injustamente de comunista, injuriada, difamada, boicotada, hostilizada. E o que é pior: por pessoas com quem deixei de viver momentos preciosos com minhas filhas ou minha família”, diz em trecho do vídeo sobre clientes que deixaram de procurá-la após a lista.

“Eu e várias empresas da cidade fomos listadas e houve incitação a um boicote, a uma retaliação”, diz Monika em outro trecho do vídeo.

“Isso se torna um temor, hoje tenho medo pela minha integridade física e emocional da minha família. Não acho que seja mero boicote”, conta a cabeleireira à BBC News Brasil.

Segundo ela, alguns bolsonaristas da região chegaram a compartilhar mensagens para que os donos de estabelecimentos que votaram em Lula colocassem uma estrela vermelha em seus comércios. “Isso repete o comportamento da Alemanha nazista contra judeus”, diz Monika.

“Nada mais é do que a repetição da conduta nazifascista da Segunda Guerra Mundial. Os nazistas faziam isso para perseguir e quebrar os judeus”, acrescenta.

Ela e as outras comerciantes citadas nessa lista criaram um grupo para debater o que poderiam fazer em relação ao caso.

“Não por acaso, a maioria dessas empresas (citadas na lista) é comandada por mulheres”, diz Monika. Segundo a cabeleireira, elas ainda não sabem se irão tomar alguma medida judicial.

Lista com servidores públicos

Não são apenas estabelecimentos ou profissionais liberais que são mencionados nessas listas que circulam pelo país. Há também situações em que servidores públicos foram citados, como é o caso da professora Roberta*, que mora em uma cidade pequena no interior do Paraná.

“Na quinta-feira passada, recebi uma mensagem de WhatsApp de que eu estava na lista de pessoas que votaram no PT contra o atual governo. Nessa lista, diziam para as pessoas buscarem a gente se houvesse qualquer problema no município, porque nós que votamos no PT iríamos resolver Estavam rotulando mesmo, como na Alemanha nazista”, conta.

“Me senti como uma criminosa tendo o meu nome na lista. Sou uma cidadã de bem, trabalho e sou muito rigorosa. Cumpro todos os meus deveres e pago as minhas contas”, acrescenta ela, que é diretora de uma escola pública no município.

Na lista constavam cerca de 40 nomes, incluindo, além de alguns servidores públicos, donos de bares ou restaurantes na cidade, pedreiros e taxistas.

Por ser uma cidade pequena, ela diz que ficou com medo de sair de casa por alguns dias, por temer que fosse encarada de modo diferente pelas pessoas.

“Gostaria que as pessoas entendessem que essa lista é grave, simplesmente estão colocando rótulo na pessoa porque votou para outro candidato. É muito grave, porque estamos em uma democracia”, declara.

Ela diz que já retomou a rotina e não sentiu nenhum tipo de mudança na forma como é tratada no município. “Estamos em período de matrícula e fiquei com medo de alguém não se matricular na escola por causa disso ou que eu recebesse alguns olhares. Mas, graças a Deus, isso não aconteceu”, comenta.

A professora registrou um boletim de ocorrência e avalia, junto com uma advogada, a possibilidade de entrar na Justiça contra os responsáveis pela lista.

As consequências na Justiça

Em meio à propagação dessas listas pelo país, os responsáveis por elas ou por divulgá-las podem ser punidos pela Justiça.

No caso do cirurgião plástico Michel Patrick, ele aguarda a apuração do caso após registrar boletim de ocorrência.

“Estamos aguardando as investigações para descobrir o ID da rede que divulgou essa lista. E posteriormente será distribuída ação de danos morais e materiais em desfavor dessa pessoa que divulgou notícias falsas”, diz a advogada Nadeska Calmon, que acompanha o médico.

Especialista em Direito Digital e coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), o advogado Marcelo Crespo explica que essas listas podem gerar, além do temor de prejuízo financeiro, o medo de violência física ou moral.

“Essas condutas estão inseridas num contexto de violência política em razão da polarização e desses posicionamentos extremos.”

Ele frisa que cada caso deve ser analisado individualmente para avaliar a forma como a lista foi divulgada e a repercussão dela. “Mas, em tese, pode configurar difamação, cuja pena normalmente é convertida em prestação de serviços à comunidade. Essa pena pode ser aumentada em até um terço, se for cometida em grupo de WhatsApp ou em redes sociais, porque isso facilita a divulgação da difamação.”

“A (caracterização da) difamação quer proteger a honra dessa pessoa, a imagem projetada dessa pessoa na sociedade. No momento de manifestação de ódio político, a divulgação não autorizada de quem votou em um candidato pode afetar a sua honra, inclusive no contexto da sua atividade econômica”, acrescenta.

“Não importa se fulano realmente votou no Lula, falar a verdade nesse cenário também pode ser crime contra a honra”, declara o especialista. “Além disso, nesses casos também pode haver ação por reparação de danos morais e/ou materiais”, completa.

Ele comenta que é possível exigir na Justiça que as redes sociais ou aplicativos de mensagem informem a origem dessas listas.

“A rede social ou o aplicativo de mensagem é o veículo de transmissão da mensagem. Em regra, não responde por nada. Ela só responde se houver determinação judicial para que apague um post e caso essa rede deixe de tomar essa providência.”

“Se a publicação acontece nas redes, há um procedimento padrão que a gente chama de investigação com quebra de sigilo telemático, por meio do qual é possível saber quem fez aquela publicação na plataforma. E, eventualmente, é possível descobrir o IP, o e-mail e dados cadastrais da pessoa.”

Em nota à BBC News Brasil, o WhatsApp informa que não tem acesso ao conteúdo das mensagens trocadas entre usuários nem realiza moderação de conteúdo “por utilizar criptografia de ponta a ponta como padrão”.

No entanto, a plataforma ressalta que “encoraja que as pessoas reportem condutas inapropriadas diretamente nas conversas, por meio da opção ‘denunciar’ disponível no menu do aplicativo (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar.”

“Os usuários também podem enviar denúncias para o email support@whatsapp.com, detalhando o ocorrido com o máximo de informações possível e até anexando uma captura de tela.”

A plataforma de mensagens argumenta na nota que informa em seus termos de serviço e na política de privacidade do aplicativo que “não permite o uso do seu serviço de forma difamatória, ameaçadora, intimidadora ou ofensiva”.

“Nos casos de violação destes termos, o WhatsApp toma medidas em relação às contas como desativá-las ou suspendê-las. Para cooperar com investigações criminais, o aplicativo pode também fornecer dados disponíveis em resposta às solicitações de autoridades públicas e em conformidade com a legislação aplicável”, frisa o comunicado do WhatsApp à reportagem.

O Instagram, rede em que havia uma página que divulgava e incitava ataques a estabelecimentos “petistas”, diz em nota que suas políticas têm o objetivo de evitar possíveis danos offline. Em suas normas, a plataforma afirma que remove linguagem que incite ou facilite a violência.

“Também encorajamos as pessoas a denunciarem esse tipo de comportamento e/ou qualquer conteúdo que acreditem violar as nossas Diretrizes da Comunidade do Instagram. Lembrando que todo conteúdo pode ser denunciado na plataforma. Nossa equipe analisa as denúncias 24 horas por dia, 7 dias por semana, em mais de 50 idiomas, e removeremos tudo que viole as nossas políticas. As denúncias são sempre anônimas”, diz nota do Instagram à BBC News Brasil.

O perfil que divulgava estabelecimentos que classificava como petistas foi excluído. O Instagram não confirmou à reportagem se ele foi deletado em razão das diversas denúncias que recebeu ou se o próprio dono do perfil decidiu excluí-lo.

A BBC News Brasil também procurou o Twitter, onde também foi encontrado um perfil que divulga comércios com donos que manifestaram voto em Lula. No entanto, a rede social não respondeu até a conclusão desta reportagem.

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