Homenageado no Festival de Gramado, ator e diretor Matheus Nachtergaele vive expectativa da continuação de “O Auto da Compadecida” e define seu trabalho como uma forma de luta por liberdade.Um dos maiores nomes de sua geração, o ator, diretor e autor Matheus Nachtergaele será reconhecido com o Troféu Oscarito, a mais importante premiação do Festival de Cinema de Gramado, na noite deste sábado (10/08). As informações são do portal, DW.
“Receber esta homenagem é um reconhecimento alegre da persistência de um ator brasileiro em seu cinema”, avalia Nachtergaele. O troféu, que leva o nome do ator Oscarito, reconhece grandes nomes do cinema brasileiro por sua contribuição à sétima arte.
Aos 56 anos, o paulistano Nachtergaele acumula prêmios e tem uma coleção de intensos personagens em filmes e outras produções que não para de aumentar. Nesta semana, estreou nas telonas brasileiras o longa Mais Pesado é o Céu, de Petrus Cariry, em que ele vive Antônio. Na TV Globo, ele atualmente encarna o personagem Norberto em Renascer, a novela das nove.
Para o grande público brasileiro, Nachtergaele sempre é lembrado como João Grilo, o ardiloso e pitoresco personagem de O Auto da Compadecida, de Guel Arraes. Lançado em 2000 e baseado na obra homônima do escritor Ariano Suassuna (1927-2014), o filme rendeu a Nachtergaele o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro como Melhor Ator.
Em entrevista à DW, Nachtergaele falou sobre a importância da homenagem em Gramado, as expectativas para o lançamento de O Auto da Compadecida 2 e a sua carreira como um todo.
“Todo o meu cinema, desde o meu primeiro filme, O Que É Isso, Companheiro?, em vários aspectos foi um pedido de liberdade. Eu fui descobrindo a história do Brasil e o Brasil através dos filmes, me descobrindo através dos filmes. E todo o plantio que fiz como ator é uma atitude política”, afirma.
DW: Você é considerado um dos maiores nomes de sua geração e tem uma carreira consolidada por inúmeros prêmios. Como você situa o Troféu Oscarito em meio a tudo isso?
Matheus Nachtergaele: O Festival de Gramado é, dentro dos festivais do Brasil, talvez o mais conhecido do grande público. É o grande amigo do cinema brasileiro, o festival tradicional, o tapete vermelho por excelência aqui em terra brasilis.
O reconhecimento tem um significado especial?
Receber a homenagem em Gramado é um ponto bonito da trajetória. Quero receber com alegria, nesse palco tão tradicional há 52 anos do cinema brasileiro, como um reconhecimento alegre da persistência de um ator brasileiro em seu cinema. Estou muito feliz pela homenagem.
Tive momentos maravilhosos em Gramado, como ator, com filmes que mostrei no festival. E principalmente porque estreei meu longa-metragem, o único que dirigi e escrevi, em Gramado [A Festa da Menina Morta, de 2008]. Tínhamos estreado mundialmente em Cannes, mas a festa brasileira foi em Gramado, e saímos de lá com muitos prêmios bonitos [melhor ator, para Daniel de Oliveira; melhor fotografia, para Lula Carvalho; prêmio especial do júri, para o filme; melhor música, para Nachtergaele; prêmio da crítica, para o filme; e melhor filme segundo o júri popular]. Por esses motivos, Gramado traz memórias inesquecíveis para a minha vida.
Nos últimos dias, enquanto tentávamos combinar esta conversa, você mencionou mais de uma vez que está com a agenda complicada porque tem gravado muito. Como é sua rotina, atualmente?
A rotina de um ator que faz novela é só a novela. No pouco tempo livre, a gente estuda as cenas que vai gravar, decora as cenas. Renascer é uma novela que tem frente, gravamos com alguma calma, mas gravamos praticamente todos os dias. Textos longos. O [autor de telenovelas que escreveu originalmente a trama, exibida em 1993] Benedito Ruy Barbosa escreveu uma novela de grandes diálogos, e o [autor do remake exibido atualmente] Bruno Luperi, neto dele que adaptou a novela, manteve essa característica de grandes textos para bons atores fazerem. Então a gente tem de estudar muito.
Tudo o que foge ao cotidiano da novela, em geral, é muito complicado de se cumprir na vida de um ator. Porque a novela ocupa realmente um grande espaço do seu tempo, não só porque se grava muito, mas porque nas folgas se estuda o texto. E nas outras pequenas folgas é preciso dar conta dos outros compromissos. No meu caso, além dos pessoais, como ginástica, médico, estar um pouco com a família e os cachorros, etc., tenho lançamento de outros filmes, finalização de O Auto da Compadecida 2 [que deve ser lançado no fim deste ano], divulgação de trabalhos que vão estreando. É um cotidiano bem corrido. As pessoas não imaginam tanto como é a vida de um ator que está numa novela no Brasil.
Falando em O Auto da Compadecida, o filme do ano 2000 foi aquele que alçou você ao estrelato geral. E agora faz dez anos da morte do Ariano Suassuna… Como foi mergulhar na obra dele?
Ariano Suassuna foi um mergulho definitivo, eterno para mim. Eu fui João Grilo na montagem da versão mais conhecida de O Auto da Compadecida, que é a peça de teatro mais montada e conhecida do Brasil mesmo antes do filme e da série do Guel Arraes. Depois da série, então, em qualquer rincão do país há uma montagem acontecendo. Todos os brasileiros assistiram ao Auto. Portanto, estou imiscuído no universo do Ariano Suassuna de maneira radical. Isso mudou minha vida.
Até hoje ‘O Auto da Compadecida’ é seu maior sucesso? Foi um marco?
Isso me jogou, e ao Selton Mello [ator que viveu Chicó, o parceiro de João Grilo na trama], para dentro do coração do Brasil. E acredito que ajudamos a concretizar uma das estradas bonitas que levarão um dia ao desenho de uma brasilidade total, enquanto face e cultura.
O Auto da Compadecida, Ariano Suassuna e João Grilo são parte fundamental de quem eu sou como pessoa e como brasileiro. Mergulhei na obra de Ariano, conheço as peças e a literatura dele. E retrabalhamos de novo esse contato, essa imersão, agora para O Auto da Compadecida 2.
Como estão os preparativos para o lançamento dessa continuação?
Estamos numa expectativa bonita. O filme conta com 25 anos de amizade com o público brasileiro, é o meu personagem mais conhecido entre tantos e tantos que fiz. E, toda vez que alguém sorri para mim, eu sei que está sorrindo um pouco para o João Grilo. A expectativa está bonita, e a gente fez esse filme para lembrar de como é gostar de ser brasileiro.
Também é uma tentativa de reanimar aqui as bilheterias do cinema brasileiro, que depois da pandemia não voltaram ao que era, não só aqui como no mundo. Mas, principalmente, a gente quer que as pessoas sintam que o filme é uma homenagem à obra de Ariano. E a nós que um dia tivemos um desejo de construir um novo Brasil.
E O Auto da Compadecida fez parte disso, daquele momento. Eu acredito plenamente que O Auto é uma das principais alavancas da retomada do cinema brasileiro para que o público fizesse as pazes com o nosso cinema. Então a gente quer nos dar um presente, um presente de bodas de prata do casamento de O Auto da Compadecida com o Brasil. E as expectativas são de que esteja bonito, que seja gostoso e que as pessoas gostem do filme como a gente gostou de fazâ-lo.
De alguma forma essa continuação se baseia em escritos do Suassuna?
O Suassuna sabia dessa possibilidade, apoiava a possibilidade de uma continuação. Mas como já partiu há um tempo, o que o Guel Arraes cuidou de fazer junto com os roteiristas todos foi trabalhar na perspectiva do que tinha sido conversado com o Ariano. Principalmente usar a maneira de trabalhar do Ariano para fazer a construção do novo roteiro, usando alguns trechos de outras peças dele, misturando com grandes clássicos, fontes nas quais o Ariano também bebia. [O romano Tito] Plauto [(205 a.C – 184 a.C.)], [o francês Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673), mais conhecido como] Molière, fábulas da Idade Média, histórias picarescas, [o romance espanhol anônimo do século 16] ‘Lazarillo de Tormes’, e por aí vai.
A construção do Auto 2 obedece à maneira como Ariano construiu sua obra, se apoiando na grande cultura mundial para tentar dar um rosto de identidade ao Brasil.
Fazendo um retrospecto de sua carreira, em 1997 você atuou no filme O Que É Isso, Companheiro?, um retrato do Brasil dos tempos de ditadura militar. Você acredita que essa experiência forte como ator influenciou a maneira como você vivenciou as ameaças de golpe recentes e o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, repleto de militares em seus ministérios?
Todo o meu cinema, desde o meu primeiro filme, que O Que É Isso, Companheiro?, em vários aspectos foi um pedido de liberdade. Eu fui descobrindo a história do Brasil e o Brasil através dos filmes, me descobrindo através dos filmes. E todo o plantio que fiz como ator é uma atitude política. Foi no sentido de conhecer, abarcar, percorrer os subúrbios do Brasil, os sertões e seus subúrbios, os subúrbios das cidades grandes e os subúrbios do homem simples do Brasil.
Portanto, a perspectiva de um mundo de extrema direita, totalmente ligado às regras do capital, me espanta, me choca, e não há história de vida que possa aplacar a tristeza que essa perspectiva pode nos dar.
Mas [agora] estamos em um bom momento, com um governo [do petista Luiz Inácio Lula da Silva] que tem apreço pelas questões sociais, que tem, de verdade, preocupação com o bem-estar das pessoas mais simples do Brasil e que respeita bastante a cultura brasileira. Neste momento, eu ando mais tranquilo.
Mas ainda existe um cenário de muitos pedindo a volta da ditadura…
O tipo de vida, o estilo de vida que a extrema direita defende tende ao esgotamento. É uma pena ver o mundo ensaiando o desejo por esse esgotamento. Eu sempre espero que não seja tarde demais para um lugar de centro mais socialista, muito ecológico, um socialismo mesmo democrata e ecológico.
O perigo da exaustão total da humanidade pelo capitalismo, pela pressão moral da “tradição, família e propriedade”, da violência, das guerras, o perigo dessa pressão nos espanta, nos assusta. Todo o meu trabalho é, de certa maneira, lutar contra isso. Direta mas principalmente indiretamente por meio da minha arte.