Na manhã do dia 7 de janeiro de 2015, dois atiradores adentraram a sede da revista satírica Charlie Hebdo, em Paris. Insatisfeitos com as frequentes charges envolvendo Maomé, jihadistas extremistas configuraram um dos ataques mais lembrados da França, somando 12 mortos e 11 feridos.
Entre as vítimas, aparecem nomes de peso para a cultura da França e do mundo, com destaque para o lendário cartunista Georges Wolinski. Além dele, o editor e cartunista Stéphane Charbonnier, conhecido como Charb, o vice-editor Bernard Maris e os cartunistas Jean Cabu e Bernard Verlhac – conhecido como Tignous.
O desenhista Phillippe Honoré, a psicanalista Elsa Cayat – que assinava uma coluna no jornal – dois agentes de polícia, um funcionário da Sodexo e um convidado que visitava a redação também morreram na ocasião.
Dez anos depois e com o endereço do novo escritório em sigilo, a publicação segue viva e continua levantando debates sobre o limite entre humor e ofensa. Como parte de uma edição comemorativa, que marca uma década desde o ataque, Charlie Hebdo lançou um compilado de charges sobre Deus, enfatizando a soberania da risada.
Como tudo aconteceu
No fatídico dia do massacre, os irmãos Saïd e Chérif Kouachi se armaram de munições pesadas, incluindo fuzis, lança-granadas e uma espingarda. Os homens colocaram roupas e capuzes pretos e se dirigiram até a redação da Charlie Hebdo.
Ao chegar, os criminosos encontraram a cartunista Corinne Rey e ordenaram, em francês fluente, que ela abrisse a porta do edifício. Eles foram até o segundo andar, onde começaram a atirar e gritar “Allahu Akbar” – que significa “Alá (Deus) é o maior”.
Os terroristas se identificaram como membros do grupo extremista Al-Qaeda e tinham vítimas pré-escolhidas. Eles agiam em nome da religião islâmica, considerando ofensivas as caricaturas e publicações de humor veiculadas pela revista ao longo dos anos.
Os irmãos Kouachi fugiram de carro e, mais tarde, a polícia parisiense colocou mais sete pessoas sob custódia, julgando que eles não agiram sozinhos. A dupla morreu após entrar em confronto com as autoridades. Em 2020, entretanto, o julgamento do caso aconteceu e condenou o principal cúmplice dos ataques a 30 anos de prisão.
Ainda em 2011, a Charlie Hebdo havia sido alvo de um ataque com bombas. A motivação teria sido a mesma do massacre posterior: charges satirizando muçulmanos, para os quais qualquer representação de Maomé é considerada proibida.
O ataque vitimou o cartunista Georges Wolinski, considerado uma das maiores referências do cartum mundial. Wolinski foi um símbolo do movimento francês de maio de 68, conhecido por suas ilustrações políticas e eróticas. Divulgada sua morte, diversos cartunistas brasileiros expressaram seus sentimentos pelas redes sociais.
“Wolinski influenciou todo mundo que vocês conhecem: Ziraldo, Jaguar, Nani, Henfil, Fortuna… O cara era uma ESCOLA. Que dia tenebroso!”, escreveu o cartunista André Dahmer na ocasião.
A revista Charlie Hebdo
Charlie Hebdo é uma revista francesa de humor e sátira, reconhecida por suas ilustrações e comentários sócio-políticos. Fundada em 1970, a publicação costuma abordar temas controversos e tecer críticas incisivas sobre figuras políticas, instituições e religiões. O editorial se declara libertário anarquista, buscando manter-se como símbolo da liberdade de expressão na Europa.
Na época do ataque, uma forte campanha de apoio tomou conta da Europa e do mundo, sob o slogan “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie). O cartunista brasileiro Carlos Latuff – que, na época, fez ilustrações em solidariedade à revista – ressalta, porém, o perigo da defesa deliberada de sátiras que, no fim, acabam como ofensas.
“O papel do chargista, seja numa democracia, seja numa ditadura, é de combate. O chargista é um artista de combate, da trincheira. Mas é preciso ter muita responsabilidade. Caso contrário, uma charge mal feita pode ajudar a criminalizar um segmento, como charges com ataques racistas, xenófobos e islamofóbicos, como tem feito o Charlie Hebdo na França” afirmou Latuff ao portal RFI.
O artista enfatiza que o massacre foi uma tragédia e deve ser condenado.
“Isso evidentemente não significa que a resposta a essas charges e ofensas tenha sido justa, obviamente que não. Qualquer pessoa de bom senso não pode aprovar que chargistas, ou quem quer que seja, tenha que ser fuzilado por conta de opiniões. É de se lamentar e de se condenar”, acrescentou.