Conforme reportagem da Folha, os manuscritos do empreiteiro Marcelo Odebrecht feitos de dentro da cadeia, onde esteve até 2017, mostram uma suposta pressão da força-tarefa da Lava Jato durante a negociação de um acordo com a empresa e relatam o inconformismo dele com os rumos da delação da construtora.
Marcelo, ex-presidente do conglomerado e principal empresário detido na Lava Jato no Paraná, diz que os investigadores falaram na possibilidade de mais operações sobre o grupo, caso ele conseguisse habeas corpus para sair da prisão em 2016.
As cartas foram anexadas pela defesa do ex-presidente Lula ao último dos processos a que ele responde em Curitiba, que trata da compra pela empreiteira de um terreno para ao instituto do petista.
A defesa do ex-presidente, em documento escrito em maio, diz que as correspondências mostram “calibragem de relatos” e falta de espontaneidade na delação.
Os manuscritos também viraram prova na Justiça de São Paulo. Devido a eles, foi determinado em março o bloqueio de R$ 143,5 milhões que o conglomerado empresarial havia pago a Marcelo na época da assinatura do acordo de colaboração com a Lava Jato, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a Suíça.
A construtora considera que houve ameaças da parte dele em frases redigidas como: “A própria empresa e os demais colaboradores (e não colaboradores) estão levando a uma situação onde acabarei ‘detonando’ a todos”.
Marcelo diz à Justiça que é perseguido pela empresa por ter exposto em sua colaboração pessoas ligadas ao pai, Emílio Odebrecht, com quem está rompido. Afirma que nessas mensagens apenas cobrava dos demais executivos que não houvesse omissões nos relatos que pudessem pôr o acordo em risco.
As cartas fazem parte de anotações que o ex-presidente da Odebrecht entregava para seus advogados no período em que ficou preso. Ele também escrevia um diário no período em que ficou detido.
Hoje delator, Marcelo, 51, foi condenado quatro vezes na Justiça Federal no Paraná e, em 2019, passou para o regime semiaberto devido a seu acordo de colaboração.
A defesa dele critica o uso dessas cartas na Justiça e considera que a empresa violou o sigilo da comunicação com advogados. Também pediu providências à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Pressão do MP
Ao relembrar a negociação da delação, em carta de fevereiro de 2017, Marcelo menciona ocasião em que mudou o rumo de sua negociação, inclusive com o rompimento com um advogado e com uma irmã.
“Foi quando o Mouro [Sergio Moro] ia me soltar (por volta de maio/16) e o MPF nos ameaçou dizendo que se eu fosse solto, outras operações seriam deflagradas”, escreveu ele.
Disse que tinha “certeza de que era blefe”, mas aceitou abrir mão de um “período de liberdade” desde que fosse para o regime domiciliar com o assinatura do acordo, o que acabou não acontecendo.
Marcelo, detido em junho de 2015, só foi para a prisão domiciliar um ano após a assinatura do compromisso, em dezembro de 2017.
Procurada, a força-tarefa da Lava Jato rechaçou ter havido qualquer pressão indevida e disse que todo contato com o empreiteiro sempre ocorreu com o acompanhamento de seus advogados.
“A eventual apresentação de esclarecimento ou informação para o investigado ou réu sobre a existência de investigações de caráter público e sobre as consequências legais de seus possíveis crimes não caracterizaria qualquer ‘ameaça’ ou pressão indevida, mas sim a exposição legítima de dados que permitam a investigados e réus tomarem decisões.”
Contradições na delação
Uma das declarações nas cartas de Marcelo mais destacadas pela defesa de Lula trata do Setor de Operações Estruturadas, divisão da Odebrecht apelidada de “departamento de propina”, responsável por operações ilícitas dentro e fora do Brasil.
Sem dar muitos detalhes, o empreiteiro diz que a companhia precisa se manifestar sobre “absurdos que estão dizendo sobre o nosso passado”. “Onde estão nossos sócios nos projetos? E as estrangeiras? Não tínhamos um departamento de propina, nem muito menos este tipo de relação com o setor público era só nós que fazíamos…”
Em outra anotação, o empreiteiro critica “HS”, sigla de Hilberto Silva, executivo que atuava nesse departamento e também delator. “Não posso aceitar que a empresa esteja respaldando tudo que ele está dizendo.”
Outro trecho em contradição com os conclusões da Lava Jato é a respeito de seu conhecimento sobre a propina na Petrobras, foco dos procuradores de Curitiba e pilar, por exemplo, da condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia.
Marcelo disse que, em relação à Petrobras, foi “mentirosamente acusado de ter praticado atos ilícitos nos quais não se envolveu”.
Pai e filho
Rompido com Emílio Odebrecht desde a época da prisão, Marcelo faz uma série de queixas sobre o modo como o pai agiu na crise da empreiteira.
Faltou, disse o filho, uma defesa mais contundente nos meses após sua prisão, em 2015. Na visão de Marcelo, não havia como ligá-lo a ilícitos na Petrobras, o que poderia preservá-lo da Justiça e salvar o grupo.
Diz, em carta de 2017: “Dói muito que eu nunca tenha sido defendido por meu próprio pai. Eu nunca deixaria uma filha ou pai ser incriminado, e trucidado na mídia por algo que não fez, sem sair publicamente em sua defesa.”
Ele pediu atenção à sua família e diz que “EO” não teria uma outra chance. “Ou então [vai] carregar um remorso ainda mais pesado pelo resto da sua vida ao destruir um filho, sua família, e o legado de gerações.”
O “legado” do império familiar, aliás, aparece em outros momentos de seus manuscritos. No início de 2017, diz que uma de suas metas é: “Mitigar/minimizar os danos à minha imagem e da organização preservando um pouco do legado de meu avô”, uma referência ao fundador, Norberto Odebrecht.