Segundo reportagem do jornal Valor, a experiência pioneira de mandato coletivo em São Paulo, a Mandata Ativista enfrenta uma nova crise e deve perder mais uma integrante na próxima semana. A codeputada estadual Claudia Visoni (PV) deve renunciar na quarta-feira, depois do fim do recesso parlamentar, por divergências dentro do grupo. Com isso, o mandato na Assembleia Legislativa paulista, que era composto por nove codeputados, ficará com a metade do tamanho original. Em meio a brigas e atritos, o grupo não disputará a reeleição e vai se separar.
A crise na Mandata Ativista expõe os desafios para os mandatos coletivos, que se tornaram uma aposta de partidos de centro-esquerda para as próximas eleições. A experiência em São Paulo foi acompanhada de perto por movimentos sociais e coletivos de diferentes regiões do país e tornou-se uma espécie de laboratório, para reproduzir avanços conquistados e evitar os erros cometidos.
Em 2018, a Mandata Ativista foi eleita com o nome de Bancada Ativista e foi a décima candidatura mais bem votada para a Assembleia Legislativa de São Paulo, com quase 150 mil votos. Dentro do grupo, há filiados ao Psol, Rede, PV e PDT, e a defesa de diferentes bandeiras sociais. O mandato é representado por Mônica Seixas (Psol), porta-voz do grupo, e os demais integrantes, chamados de codeputados, foram contratados como assessores no gabinete.
A legislação brasileira ainda não reconhece os mandatos coletivos. Quando um grupo decide se candidatar para o Legislativo, é preciso escolher um nome para representá-lo nas urnas e o responsável juridicamente pelo mandato. É o “cabeça de chapa” ou porta-voz, que faz discursos em plenários, vota, apresenta projetos de lei e atua em comissões.
Não há regras definidas sobre o número mínimo ou máximo dos integrantes de um mandato coletivo nem quantos partidos podem participar. Em geral, os codeputados e covereadores são contratados como assessores e não têm os mesmos direitos dos parlamentares, como imunidade parlamentar e, se necessário, segurança particular.
A Mandata Ativista elegeu-se sem ter um estatuto pré-definido para o mandato. Os nove integrantes não tinham uma militância conjunta prévia e foram escolhidos em um processo seletivo. A convivência entre as ideias defendidas por quatro partidos diferentes e as bandeiras de cada codeputado nem sempre foi pacífica. E as divergências dentro do grupo se acentuaram ao longo dos últimos três anos. Houve até a exoneração de um codeputado.
Prestes a deixar o mandato, Claudia Visoni diz que a ideia do “coletivo” perdeu força, afirma que as decisões ficaram concentradas na porta-voz, Mônica Seixas, e reclama da falta de transparência nas decisões. “Fomos todos eleitos juntos, em igualdade de condições, e de repente a porta-voz acha que esse não é o mandato ideal e inviabiliza a atuação dos codeputados. Por isso estou saindo”, afirma. “A política é feita de conflitos e de diálogos, mas o que eu não topo é que esse mandato não seja coletivo”, diz. Claudia afirma desconhecer até quais são as emendas parlamentares apresentadas pelo mandato. “Nós éramos um projeto de inovação política, de exercermos coletivamente um mandato e me sinto impedida de poder exercer a minha função.”
Filiada ao PV, Claudia tem se dedicado no partido a criar um estatuto e normas para candidaturas coletivas, para evitar os problemas que tem enfrentados. “Acredito muito nesse modelo [de mandato coletivo]”, diz.
A porta-voz da Mandata Ativista também defende o modelo, mas diz ter “grandes divergências políticas” com alguns de seus colegas codeputados. “Nós não nos conhecíamos e não debatíamos política. Esse foi o nosso grande erro, que não se repete nem se reproduz em nenhum outro mandato coletivo”, diz Mônica Seixas. “Vejo que outros estão fazendo bem melhor do que a gente, colocando um projeto político a serviço da coletividade e não elegendo uma pluralidade vazia, que não conseguiu construir consensos entre si. Esse foi o grande problema”, afirma.
Entre os nove integrantes eleitos, estão uma militante do movimento indígena, uma ambientalista, uma mulher transgênero e uma mulher negra e feminista. “A diversidade por estética foi um erro. A gente tem que ser capaz de fazer síntese política”, diz Mônica. “Essa diversidade de desconhecidos na prática teve dificuldade de construir consensos para construir um único mandato.”
A primeira a sair foi Anne Rammi (Rede), que se mudou para a Inglaterra no início do mandato. A segunda foi Erika Hilton (Psol), que disputou as eleições em 2020 e foi eleita vereadora na capital. No ano passado, o clima azedou entre os integrantes e em fevereiro a codeputada Raquel Marques (Rede) foi criticada publicamente pela porta-voz e afastada por divergências ideológicas. Raquel continua no mandato, mas mal conversa com Mônica.
Em meio aos atritos, a porta-voz afastou-se em julho por quatro meses, para tratar de sua saúde mental, e diz que os problemas têm relação com as crises no mandato.
Quando o suplente Raul Marcelo (Psol) assumiu durante a licença, os problemas se intensificaram. Raul deu uma nova dinâmica ao mandato e trocou até as fechaduras do gabinete, tirando chaves de codeputados e da equipe deles. Raul diz que as mudanças seriam maiores se Mônica não tivesse voltado e indica que acabaria com o mandato coletivo. “Tenho minhas pautas. Não posso ludibriar meus eleitores”, diz. O suplente teve embates com o codeputado Jesus dos Santos (PDT), que foi exonerado nesse período, junto com sua equipe. Foi o terceiro a sair.
“Houve autoritarismo, punitivismo e perseguição política”, diz Jesus dos Santos. “Não é que eu saí. Me tiraram.” Santos afirma que mantém a luta por suas bandeiras sociais fora do mandato e diz que estuda recorrer à Justiça para voltar ao gabinete.
Desde que voltou à Assembleia, em dezembro, Mônica tem sido criticada por “tomar para si” as decisões e omitir informações. Mônica rebate as críticas. “Não dá para ter expectativa de que dentro do mandato vamos ter vários parlamentares”.
Apesar dos problemas, o primeiro mandato coletivo de São Paulo serviu como exemplo e o modelo foi replicado. Em 2020, a Câmara Municipal paulistana elegeu a Bancada Feminista e o Quilombo Periférico.
Na capital paulista, a experiência foi tão boa que a Bancada Feminista, do Psol, vai lançar um novo mandato coletivo de mulheres para disputar neste ano uma vaga na Assembleia ou na Câmara. Em 2020, o grupo teve a sétima maior votação.
Covereadora da Bancada Feminista, Paula Nunes diz que o exemplo da Mandata Ativista “foi fundamental” e afirma que seu grupo optou por fazer uma composição com integrantes do mesmo partido, o Psol, que já se conheciam. A porta-voz, Silvia Ferraro, disputou o Senado em 2018. “Ela aproveitou a projeção que teve na eleição passada e trouxe pessoas que não participavam da política”, diz.
Paula avalia que o mandato coletivo aumenta a diversidade no Legislativo. “Amplia a representação da população que geralmente não participa da política”, diz a covereadora, militante do movimento negro. “E nós multiplicamos a atuação do mandato por cinco. Estamos em vários lugares ao mesmo tempo, discutindo diferentes agendas”, afirma Paula, sobre a atuação das cinco covereadoras da Bancada Feminista.
O mandato coletivo é visto como forma de democratizar o Parlamento, com a eleição de mais mulheres, pessoas negras, indígenas, população LGTBQIA+ e moradores da periferia que teriam mais dificuldades para se eleger em candidaturas individuais. É um modelo pensado para driblar as dificuldades para eleger quem não tem tradição na política, quem não tem muitos recursos financeiros ou não é um nome muito conhecido, como uma celebridade.
Integrante do Quilombo Periférico, o covereador Alex Borges Barcellos (Psol) diz que a candidatura coletiva foi importante para abrir espaço para grupos como o seu, que milita no movimento negro e periférico. “É preciso ter novos formatos de atuação política para trazer outras pessoas”, diz. Barcellos participou do processo seletivo da Mandata Ativista, em 2018. Ao compor o mandato coletivo para disputar em 2020, aliou-se a pessoas com as quais já militava. “Nós estamos muito mais próximos dos movimentos sociais do que dos partidos políticos”, diz.
Mônica afirma que a experiência da Mandata Ativista “abriu caminho para outras candidaturas coletivas”. “Muitas outras mulheres periféricas, mães solos e negras como eu se elegeram e tiveram coragem de se aventurar nesse mundo tão tortuoso e torturante que é a política, que é uma máquina de moer gente com boas intenções”, diz. A parlamentar deve disputar neste ano e não descarta outra candidatura coletiva.
A primeira experiência de mandato coletivo foi em 2016, na cidade goiana de Alto Paraíso, com cinco covereadores. Em 2018, foram eleitas a Mandata Ativista, em São Paulo, e a Juntas, na Assembleia Legislativa de Pernambuco. O mandato da Juntas é visto como uma referência de sucesso por movimentos sociais, partidos e outros mandatos, e deve tentar a reeleição neste ano.
Em 2020, o país teve mais de 250 candidaturas de mandatos coletivos e 26 se elegeram. Esses mandatos estão espalhados em dez Estados, em capitais e em cidades do interior. Um deles é o “As Gurias”, na cidade de Ijuí (RS), que tem conseguido fazer com que as covereadoras participem de debates dentro do plenário.
Neste ano, os partidos de centro-esquerda se preparam para lançar um número ainda maior de candidaturas coletivas, especialmente o Psol, PCdoB, PT, Rede e PV.
Integrante da Frente Nacional de Mandatas e Mandatos Coletivos, Luciana Lindenmeyer reforça a ideia de que a atuação em conjunto ajuda não só a ampliar a diversidade, mas também traz diferentes pautas para a discussão, como o combate ao racismo e à violência contra a mulher. “É mais trabalhoso despersonalizar um mandato e coletivizar as discussões e decisões. Mas precisamos buscar novas formas de atuação política”, diz Luciana, doutoranda em sociologia pela UFC.
Os mandatos coletivos buscam mais garantia jurídica, com a definição de regras pelo Congresso e pela Justiça Eleitoral. A frente nacional apoia uma proposta de emenda à Constituição (PEC) do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para avançar no tema. Há pontos que precisam ser regulamentados, como o que acontece com o mandato coletivo quando o representante legal renunciar. Foi o problema enfrentado pelo mandato Coletiva, em Belo Horizonte, quando a porta-voz, Sônia Lansky (PT), renunciou três meses depois de assumir, em 2020, inviabilizando a atuação dos outros nove covereadores. Outros pontos que devem ser debatidos são como dividir os recursos do gabinete, os salários e a definição do responsável jurídico para responder por eventuais casos de improbidade administrativa de coparlamentares. “É preciso que os mandatos tenham mais segurança jurídica”, diz Luciana, da frente nacional.
Para estas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou uma resolução que autoriza as candidaturas coletivas a usarem o nome do grupo junto com o nome do candidato. Dessa forma, o nome do coletivo aparece na urna. O registro da candidatura, no entanto, continua sendo individual, de um único CPF.