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domingo 24 de janeiro de 2021 às 11:25h

Mandatos coletivo sofrem resistência em todo País, diz jornal

JUSTIÇA, NOTÍCIAS, POLÍTICA


Quando a reportagem do jornal Folha contatou o Juntas –nome do mandato de cinco mulheres que dividem uma cadeira da Assembleia Legislativa de Pernambuco–, a ideia era falar com a advogada Robeyoncé Lima. O plano esbarrou no rodízio de falas entre as codeputadas, uma das medidas para garantir a igualdade de participação no mandato.

A vez de dar entrevista era de Jô Cavalcanti, militante do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e cabeça da chapa –única reconhecida pela Justiça como deputada estadual. Formalmente, suas companheiras de mandato são assessoras de gabinete.

Elas foram um dos 28 grupos que, em 2018, lançaram-se em um mandato coletivo. O formato vem ganhando força desde 2016, quando uma candidatura do gênero ganhou destaque na imprensa, e em 2020 chegou a 313 candidaturas no Legislativo, quatro vezes mais que a eleição municipal anterior. E, somando quase 390 mil votos pelo país, 22 delas foram eleitas.

Os dados são de levantamento coordenado pelos pesquisadores Leonardo Secchi, da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), e Leonardo Leal, da Ufal (Universidade Federal de Alagoas).

Eles levaram em conta apenas os que disputavam cargos nos Legislativos. A Coletiva do SOL, que saiu pelo PSOL para concorrer à Prefeitura de Natal no ano passado, por exemplo, foi desconsiderada.

Ainda sem regulamentação, esse tipo de mandato tem sido o berço de candidatos que, posteriormente, buscam um mandato convencional e até mesmo cargos majoritários.

Segundo Leal, professor de administração pública da Ufal e doutorando em ciência política pela Universidade de Brasilia e pelo Instituto Universitário de Lisboa, há “de tudo” entre esses mandatos.

“Desde aqueles que têm uma consciência da causa, do debate que justifica a candidatura, até aquele que não passa de uma estratégia mimética, já que o custo do voto em uma candidatura coletiva é muito menor.”

Ele afirma que a história do formato começou na década de 1980, quando políticos colocaram em prática a ideia de conselhos consultivos de eleitores para tomar decisões. Para a pesquisa, foram considerados mandatos compartilhados (como aqueles que lançam mão de conselhos não deliberativos) e coletivos (em que mais de um vereador assume simbolicamente o cargo).

Ele defende que o compartilhamento das decisões entre os covereadores ou entre o vereador e o conselho interfere positivamente nos resultados, que ganham em congruência entre eleitores e o mandato.

Vereador de Belo Horizonte e professor no RenovaBR, Gabriel Azevedo (Patriotra) conta que as mudanças provocadas pelo seu conselho foram benéficas. Ele lançou, junto com a sua candidatura, um aplicativo chamado Meu Vereador, em que é possível marcar uma reunião com o político, opinar em votações da Câmara e notificar problemas da cidade.

Ele atrela o seu voto em plenário ao de seus eleitores pelo aplicativo. De cinco matérias em que teve que mudar a sua posição, apenas em uma considerou que o eleitorado piorou o seu voto. O projeto era para implementar fiação subterrânea, o que os usuários viram com bons olhos.

Azevedo considera o seu mandato de 2017 a 2020 um modelo participativo. Reeleito, ele pretende radicalizar a participação: há nove vagas para covereadores em seu gabinete –formalmente, assessores–, que serão escolhidos por uma nova votação da população. Cada um será de uma região da cidade.

O avanço dos gabinetes compartilhados trouxe também mais resistência. Em 2020, a Nossa Cara, candidatura à vereança em Fortaleza, sofreu uma ação de impugnação de registro pelo Ministério Público Eleitoral.

O grupo do PSOL era formado por três mulheres negras. Alegou-se que a divulgação de uma candidatura tripla implicaria “em uma situação de fato sabidamente inverídico, induzindo o eleitorado a erro”.

As candidatas conseguiram seguir nas eleições e foram eleitas, mas com um nome na urna diferente do imaginado: “Adriana do Nosso Cara”, com destaque à vereadora reconhecida pela Justiça Eleitoral, e não apenas com o nome da chapa, como haviam registrado.

Para Cavalcanti, do Juntas, de Pernambuco, esse tipo de mandato é o “mais democrático que existe”. “É como se fosse um hackeamento do sistema”, diz ela, que divide a cadeira com uma professora da rede pública, uma advogada transexual, uma ativista da cultura e uma moradora do agreste pernambucano.

Tamanha diversidade gera conflitos. “A dificuldade é manter o nosso projeto, porque são várias cabeças. A gente tem que lembrar sempre do nosso norte. O mandato é da população que acreditou em uma coisa coletiva.”

Para nivelar o seu salário com o das outras covereadoras, Cavalcanti doa o excedente dos seus ganhos para o Edital Estamos Juntas, que beneficia projetos do estado.

O fortalecimento dessa nova forma de mandato se deve a pelo menos dois fatores, segundo Philippe Scerb, mestre em ciência política pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris: a mudança de perfil do eleitorado de esquerda e a crise de representatividade do sistema político.

Antes nas periferias, os simpatizantes de correntes de esquerda passaram a ser mais comuns nas classes médias, o que muito beneficia um mandato focado em causas –como o antirracismo, o feminismo, ou o meio ambiente–, e não em uma pessoa. “Antes, esse eleitorado estava mais concentrado nas periferias, que tendem a eleger algum tipo de figura que tem um trabalho muito territorial”, diz.

A maioria das candidaturas são de partidos de esquerda. O PSOL sozinho foi responsável por um terço delas em 2020 (117), e 8 em cada 10 dessas candidaturas são de esquerda ou centro-esquerda.

A desconfiança do sistema político, especialmente das instituições de representação, também ajuda a explicar a ascensão dos mandatos coletivos. “Os partidos deixaram de ser uma força política e social capaz de aglutinar um grande número de pessoas, mobilizar, engajar”, afirma Scerb.

Apesar de ser uma consequência dessa crise, o pesquisador diz que esse tipo de mandato pode ter potencial para enfraquecer as siglas a que pertencem.

“Na medida em que o mandato coletivo assume uma identidade à parte, acaba reforçando a ideia de que o partido não é um espaço legítimo o suficiente para a representação dessas bandeiras nem de ser um espaço de deliberação.”

Esses mandatos são apenas mais uma das organizações concorrentes com partidos no Brasil atual. Movimentos sociais e de renovação política são outros exemplos de instituições que, embora incorporadas pelos partidos, funcionam de forma específica.

Para João Yuji, que foi candidato à Prefeitura de Alto Paraíso de Goiás (GO) e inaugurou a prática em 2016, a concorrência não é um problema.

“A gente criou o mandato coletivo justamente para permitir a participação de pessoas que não são filiadas a partidos. Eu só me filiei porque é obrigatório”, afirma o advogado, que escolheu a Rede.

“No bom uso do mandato coletivo, nós tiramos a interferência partidária. É o voto naquele grupo, naquelas pessoas, independentemente se está no 12, no 13, no 14”, afirma.

Em contraste com os políticos que deram sequência à sua prática, ele queria tirar o holofote da esquerda ou da direita e focar nas questões locais, como saúde do município, orçamento, corrupção.

Yuji luta para a não obrigatoriedade da nacionalização dos partidos, por considerá-los uma “entidade alienígena”.

“Precisa de 500 mil assinaturas, e essa entidade nacional interfere no Estado, ela prejudica a dinâmica do Estado e o Estado prejudica a dinâmica do município.” Uma saída, afirma, seria a criação de agremiações locais.

Gabriel Azevedo, vereador de Belo Horizonte e criador do aplicativo para participação da população em seu mandato, precaveu-se em relação à sua sigla, o Patriota. Em 2016, ele assinou um documento que garantia a sujeição de seu voto em plenário à escolha feita pelo seu eleitorado no aplicativo.

“Eu sou um exímio defensor de candidaturas independentes. (…) Eu digo a plenos pulmões que eu estou no partido por obrigação constitucional. Não gostaria de estar filiado.”

O esforço de Yuji não evitou que a política nacional interferisse no gabinete de Alto Paraíso de Goiás. Em 2018, um dos covereadores decidiu sair do grupo porque seu colega havia votado no hoje presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Com 1.401 votos, Yuji conquistou quase 30% do eleitorado da cidade em sua tentativa de se eleger prefeito –perdeu para Marcus Rinco (DEM).

Erika Hilton (PSOL) também alçou voo solo. Em 2020, ela se tornou a primeira mulher transexual eleita para a Câmara Municipal paulistana, com 50 mil votos. Ela já havia sido eleita em 2018 para a Assembleia Legislativa de São Paulo como parte da Bancada Ativista, que elegeu nove pessoas para uma cadeira.

O mandato também é favorável a candidaturas independentes de partidos e conta com pessoas da Rede e do PSOL. O PDT estava representado na chapa por Jesus da Periferia, que também tentou, sem sucesso, vaga na Câmara de São Paulo em 2020.

“O equívoco da Bancada Ativista foi sair pegando muita gente, e pessoas que partem de vivências e realidades muito distintas, colocando-as no mesmo lugar para pensar políticas públicas”, diz Hilton.

Apesar disso, ela reconhece o papel da bancada para a sua trajetória. “Os mandatos coletivos possibilitam que pessoas que talvez não conseguissem se eleger sozinhas se elejam e, a partir desse lugar, se destaquem e acabem alçando o seu voo sozinho.”

Neste começo de ano, Hilton já assiste a um conflito entre seus colegas na Câmara sobre o assunto. O vereador Rubinho Nunes (Patriota) protocolou requerimento questionando a legalidade dos mandatos coletivos, que chamou de “aberração jurídica”.

Nunes é do MBL –movimento igualmente formado no contexto de questionamento da representativade e que tem elegido parlamentares em diferentes casas.

Em nota, a Bancada Feminista do PSOL, também eleita em 2020 para a Câmara, afirmou que “o que incomoda o MBL é exatamente sua forma renovada de encarar a política institucional”.

A possível solução para o conflito está em uma PEC (proposta de emenda à Constituição) e dois projetos de lei (4475/2020 e 4724/2020) que tentam regulamentar os mandatos coletivos e que estão parados no Congresso.

A PEC, da deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP), presidente nacional da legenda, tenta acrescentar ao artigo 14 da Constituição, que regulamenta o exercício do poder da população, um parágrafo que possibilite o mandato coletivo no Legislativo.

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