O levantamento publicado pelo jornal O Globo neste domingo (26) comparou dados do Mais Médicos de novembro, quando houve a saída dos cubanos, e do fim de abril deste ano, considerando o total de 18.240 vagas do programa, com base em pedidos de acesso à informação respondidos pelo Ministério da Saúde .
Os municípios que abrigaram os profissionais estrangeiros concentram hoje 80% do déficit registrado no programa. A maior parte está nas regiões Nordeste (38%) e Sudeste (24%). Entre os estados, a Bahia lidera o ranking com maior número de vagas desocupadas (eram 132 em abril), seguida por São Paulo (131) e Minas Gerais (103).
O Ministério da Saúde argumenta que todas as 8.517 vagas do edital do Mais Médicos, lançado após o fim da cooperação com Cuba, chegaram a ser preenchidas por brasileiros, mas ressalta que 1.325 profissionais com registro no Brasil se desligaram do programa nos últimos meses. A desistência fez com que o déficit fosse ampliado.
A falta de estrutura do programa foi agravada após o governo de Cuba anunciar, unilateralmente, o fim do acordo para ceder profissionais ao Brasil. A decisão aconteceu logo após a vitória do presidente Jair Bolsonaro, crítico da parceria. Os médicos cubanos ganhavam cerca de 30% do valor integral dos salários pagos pelo Brasil. O restante ficava com o governo cubano.
Sem emergência
Em 139 cidades, a situação é mais delicada: não conseguem ocupar nenhuma das vagas ofertadas pelo último edital. Um terço desses municípios é classificado pelo governo como vulnerável ou de extrema pobreza. Mais de 60% estão no Nordeste.
É o caso de Candeal, cidade no interior da Bahia com pouco mais de 9 mil habitantes, classificada como vulnerável. Até outubro, dois médicos cubanos atendiam nos dois pontos de saúde da cidade. A reposição foi feita em poucos dias, mas há três meses os profissionais deixaram o município para fazer residência médica em outros centros. Sem médicos, moradores têm que andar cerca de 20 quilômetros para ter atendimento na emergência.
— Programas de saúde básica que existem, como saúde da criança e mental, não estão acontecendo. Estamos encaminhando todos para o hospital. Os médicos que atendiam na emergência estão fazendo ambulatório, mas a repercussão é muito negativa para a população. Tenho que gastar com transporte dessas pessoas para que tenham atendimento — afirma Kamila Santiago, secretária de saúde da cidade.
Candeal ainda tem uma médica cubana remanescente do programa, mas impossibilitada de trabalhar. Yanay Indira Quezada, de 35 anos, deixou o Brasil após o fim do contrato com seu país, mas retornou em janeiro na tentativa de reingressar no Mais Médicos com o Revalida. Com ajuda do prefeito, trabalha em uma farmácia até que consiga revalidar o diploma.
— Somos muitos sem trabalho. H á uma população esperando para ser atendida e a gente trabalhando com outra coisa. É difícil depois de três anos trabalhando como médico não poder ajudar por não ter Revalida. Quero trabalhar como médica — lamenta.
Dois mil remanescentes
Segundo Mauro Junqueira, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, cerca de dois mil cubanos continuam no país após o término do Mais Médicos. Para ele, é necessário criar mais vantagens ao programa a fim de que profissionais sejam realmente atraídos pelos novos editais. Segundo ele, nas atuais condições, as cidades são dependentes da presença de médicos estrangeiros:
— Os municípios pequenos são os que mais estão sofrendo, principalmente no Norte e no Nordeste. O médico brasileiro não quer ir para área indígena, não quer ir para o Nordeste, não quer ficar isolado. Nós dependemos de médicos estrangeiros, não há outra opção.
O Ministério da Saúde lançou este mês um novo edital do Mais Médicos com 2.037 vagas voltadas para os municípios com maior vulnerabilidade. A pasta também declarou que vai criar um novo programa para ampliar os serviços de Atenção Primária à Saúde, que contemple as demais cidades.
Para Ligia Bahia, pesquisadora da UFRJ e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, as medidas anunciadas pela pasta, porém, não devem solucionar o problema.
— É impossível manter pessoas por muito tempo em locais inóspitos. Precisamos ter um programa permanente de vinculação das universidades com os interiores.
Para Carlos Eduardo Aguilera Campos, pesquisador da UFRJ na área de atenção primária e autor de estudos sobre o Mais Médicos no Rio de Janeiro, mesmo com um novo edital previsto para as cidades mais vulneráveis, o Ministério da Saúde deveria concentrar esforços em como realizar a reposição dos médicos mais antigos, com o contrato próximo do encerramento. Até o final do ano, cerca de 1.300 contratos devem ser finalizados.
Ele aponta, ainda, para necessidade de contratação novos médicos para capitais, municípios de região metropolitana e cidades de médio porte, uma vez que já apresentam déficit de profissionais, principalmente em unidades de saúde nos bolsões de extrema pobreza desses municípios, fora do edital a ser aberto nesta semana. Das 152 vagas programas no município do Rio de Janeiro, por exemplo, 116 estavam ocupadas no fim de abril.
— Muitos ciclos estão vencendo e não há sinais de renovação desses contratos. Estados como Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo quase não possuem municípios contemplados por esse edital desta semana. O Mais Médicos tem uma bomba relógio para explodir. Se não fizermos essa reposição, de alguma forma, teremos um retrocesso e voltaremos a cair num modelo de pronto-atendimento, das pessoas procurarem o programa somente quando possuem problemas de saúde — alerta.