Enquanto a população mundial crescia, chegando à marca de 8 bilhões de habitantes que a ONU projeta para a próxima terça-feira (15), subiu também a proporção daqueles de acordo com reportagem de Mayara Paixão, da Folha de S. Paulo, que vivem sob regimes políticos considerados não plenamente democráticos.
Hoje, 7 em cada 10 pessoas (5,7 bilhões) estão em países com essas formas de governo. Em 2011, quando a cifra alcançada foi a de 7 bilhões -a projeção revisada da ONU indica que, na verdade, o número foi atingido em 2010-, metade da população vivia sob autocracias e metade sob democracias.
Neste 2022, para cerca de 3,6 bilhões de habitantes é possível votar em eleições multipartidárias e escolher um líder, mas outros direitos, como a liberdade de expressão, e a independência de instituições como Legislativo e Judiciário foram suprimidos -são as chamadas autocracias eleitorais. Para outros 2,1 bilhões que vivem em ditaduras, pleitos não são mais uma realidade ou se tornaram algo de fachada, sem competição política real e com perseguição a opositores do regime em vigor.
O cálculo leva em conta análise do instituto sueco V-Dem, um dos mais renomados globalmente na tarefa de classificar regimes políticos. A proporção em relação aos 8 bilhões de habitantes foi feita pela Folha de S.Paulo, com base nas projeções mais recentes da ONU, publicadas em julho.
O mundo mais autoritário, parte do que vem sendo chamado por institutos de pesquisa de terceira onda do autoritarismo, resulta de novas e recicladas formas de corrosão dos sistemas democráticos, mas de certo modo também está relacionado com a superpopulação.
Em números absolutos, países com regimes democráticos e os com regimes autoritários quase se equivalem: 89 ante 90. Ocorre que as atuais autocracias são, em grande parte, nações com grande contingente de habitantes. As duas mais populosas do mundo –China e Índia, cada uma com 1,4 bilhão de pessoas-, por exemplo, são, respectivamente, uma ditadura de partido único e uma autocracia eleitoral por essa classificação.
Segundo Staffan Lindberg, diretor do V-Dem e professor da Universidade de Gotemburgo, um número expressivo de moradores não cria, necessariamente, cenários propícios para sistemas autoritários, mas grandes países, usualmente de vasta influência geopolítica, tendem a arrastar nações menores com eles.
“Alguns fazem isso de maneira intencional. Vladimir Putin tornou a Rússia uma autocracia quando assumiu o poder e começou a minar reformas democráticas nas ex-repúblicas soviéticas. E agora vemos um grande exemplo disso na Ucrânia”, diz ele à Folha. “Há também a influência da China no Sudeste Asiático e na África.”
Essa tendência foi um dos fatores que despertaram preocupação na comunidade internacional em relação a movimentos autoritários de Jair Bolsonaro (PL) no Brasil. No mais recente relatório do V-Dem, o país aparece como um território ainda democrático, mas em um processo da chamada autocratização, “guiada por partidos antipluralistas que elevam a polarização a níveis tóxicos”.
Maior país da América Latina em extensão territorial e em população, o Brasil tem influência regional importante e peso em blocos como o Brics e a CPLP, comunidade que reúne países de língua oficial portuguesa.
O banco de dados do V-Dem considera classificações referentes ao ano de 2021. De lá para cá, cenários domésticos mudaram, e um ou outro país deve pular de categoria -Burkina Fasso era considerada uma democracia, mas assistiu a dois golpes militares neste ano.
Ainda assim, alguns fenômenos se mantêm constantes. A África, por exemplo, é a região com maior fatia da população (mais de 85%) vivendo sob autocracias eleitorais e ditaduras. A cifra está relacionada com o que Nic Cheeseman, professor da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e ex-diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Oxford, chama de fatores clássicos.
A saber: instituições fracas e pouco independentes do Executivo e politização das forças de segurança. “O maior desafio é consolidar a retomada de governos civis. Militares, uma vez que assumem o poder, querem tirar vantagens econômicas e ali se perpetuam.”
Cheeseman diz que a nova corrida para a África, em parte motivada pela procura de fornecedores de gás natural em meio à Guerra da Ucrânia, poderia ajudar a impulsionar a democracia -ou a rifá-la. “O interesse econômico poderia ser usado para pressionar por democracias, mas essa corrida tende a ser mais uma competição.”
Golpes militares seguem uma realidade, mas a guinada autoritária mudou de perfil. Em muitos dos regimes não democráticos há o que a pesquisadora Marina Slhessarenko Barreto, do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo), descreve como uma corrosão das democracias por dentro, com ferramentas legais como a alteração de leis.
“E as estratégias de autocratização podem ser exportadas, atuar como uma espécie de caso de sucesso”, afirma. “A Rússia foi desde o começo deste século uma grande exportadora de técnicas de autocratização, por exemplo com as leis que restringiam o financiamento de ONGs.”
Staffan Lindberg diz que a desigualdade e a crise econômica são dois dos fatores que parecem favorecer o rompimento com a democracia. “A percepção de que você terá um futuro pior que o de seus pais, de privação, cria ansiedade, medo pelo futuro. E esse tipo de medo, que conhecemos dos anos 1930, é perigoso. Ajuda forças políticas antidemocráticas a emergirem e falarem: ‘Eu vou corrigir isso’.”
O mundo já regrediu a níveis democráticos semelhantes aos de 1989, levando à perda de avanços das últimas três décadas. E, ao menos para o futuro próximo: o prognóstico não é bom: hoje, ao menos 33 países vivem processos de guinada autoritária, o maior volume em 50 anos.
As designações de regimes políticos Ditaduras Não há eleições para Executivo e Legislativo ou elas se dão sem competição efetiva, como em regimes de partido único; Autocracias eleitorais Possuem eleições multipartidárias, mas estão aquém de outros pilares democráticos devido a irregularidades em garantias institucionais, como a liberdade de expressão; Democracias eleitorais Possuem eleições multipartidárias para a chefia do Executivo e garantias institucionais -é o caso do Brasil; DEMOCRACIAS LIBERAIS
Além de eleições multipartidárias e garantias institucionais, são caracterizadas pela supervisão efetiva do Executivo por parte do Legislativo e do Judiciário e por haver vigilância e proteção real das liberdades civis e do Estado de Direito.