Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador da Casa de Rui Barbosa, Christian Lynch defende, em entrevista a Marlen Couto, do jornal O Globo, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desenha, no atual mandato, um novo modelo de governabilidade que inclui o Supremo Tribunal Federal (STF) no presidencialismo de coalizão. Na visão do cientista político, esse é o caminho encontrado para compensar as dificuldades no Congresso. Na sua avaliação, o Supremo atua nesse arranjo como uma terceira câmara do Legislativo, e a recente indicação do ministro da Justiça Flávio Dino para a Corte reforça a tendência de um tribunal com perfil mais político nos próximos anos.
O presidente Lula encerra o primeiro ano ainda com desafios na relação com o Congresso. Quais são as dificuldades?
O Congresso percebeu que tinha que recuperar as rédeas que tinha perdido no governo Fernando Henrique. Era poderosíssimo na época do Sarney. Quando acabou a ditadura, Ulysses Guimarães tinha tanto ou mais poder que o Sarney. Fernando Henrique cooptou as maiorias. Você tinha um consenso grande, e tinha troca. Eu te dou isso e você me dá voto. Esse sistema funcionou por muito tempo. O que aconteceu é que, a partir de 2013 e com a Lava-Jato, o Congresso se viu não só subordinado ao Executivo, mas também ao Judiciário. Era o Judiciário toda hora dizendo que as leis são inconstitucionais, o Judiciário mandando prender senador. O Poder mais amesquinhado de todos era o Congresso e ele percebeu que tinha que recuperar seu poder para sobreviver.
E como isso afeta a governabilidade de Lula?
Lula chega em um cenário em que Congresso não quer se submeter nem ao Supremo nem ao Executivo. O Congresso apoiava o Bolsonaro, mas não fazia o que ele queria em termos de golpe. Estava no melhor dos mundos. O Supremo tinha de procurar o Congresso para segurar o Bolsonaro, e o Bolsonaro tinha de procurar o Congresso para confrontar o Supremo. Lula assume com um Congresso autônomo, em que o Centrão tem uma experiência durante ao menos dois ano no poder e não quer abrir mão disso. Tem orçamento secreto, as emendas de execução obrigatória. O presidencialismo de coalizão fica complicado. Lula tem de negociar com Lira, mas também assegurar aquilo do qual não pode abrir mão do ponto de vista do programa eleitoral, que é o que dá a possibilidade de reeleição. É difícil aprovar medida provisória, tem que mandar projeto de lei.
Qual tem sido a estratégia de Lula nesse cenário?
É o que eu chamo de Arca de Noé, botar todo mundo para dentro, exceto o inimigo escolhido, o Bolsonaro e a extrema-direita. Tentar desmontar a polarização. Mas isso tem limite porque a sociedade está fraturada. Até os que querem se deixar cooptar eventualmente não podem. A gente viu isso agora com o (Sergio) Moro (na sabatina do ministro da Justiça, Flávio Dino, para a nomeação como ministro do Supremo). Quem votou nele quer que ele lacre.
O senhor defende que a governabilidade de Lula também passa pelo Supremo.
Pela impossibilidade de um presidencialismo de coalizão como funcionava no passado e que permitiu em seus mandatos anteriores implementar em grande medida o seu programa de governo, Lula percebeu que tem que incluir o Supremo. Após a tentativa de golpe (no 8 de janeiro), ele faz uma aliança estratégica. É um presidencialismo de coalizão que agora vai ter que incorporar o Judiciário. Ele chama o Supremo para conversar, faz churrasco. Sinaliza ao Congresso que o que eles não dão, o Supremo pode dar depois. E facilita a governança, porque consegue boa vontade em julgamentos estratégicos. Lula está tratando o Supremo como a terceira câmara do Congresso. O que é o Gilmar Mendes senão um senador? Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e agora Dino têm um peso político. Agora será preciso nomear políticos para o Supremo como se nomeia para o TCU.
Teremos uma mudança no perfil dos ministros?
Todo mundo se deu conta da centralidade do Supremo. O PT não tinha essa noção antes. Não escolhia pessoas que fossem políticos. Havia um discurso republicano. Isso acabou e não foi o PT que fez isso. Foi Bolsonaro quando nomeou (Augusto) Aras (para a Procuradoria-Geral da República) e escolheu André Mendonça e Kassio Nunes para o STF. Lula faz o mesmo, com sinal invertido. A era de ministros liberais-republicanos, de professores, acabou. Agora você precisa restabelecer a rotina na República. Nenhum modelo poderá deixar o Supremo de fora.
Isso tende a empoderar mais o Supremo?
Os ministros sempre foram um poder político, mas Lula está botando o Supremo na engrenagem da governabilidade, até para compensar as dificuldades no Congresso. Ele trata o Supremo como trata o Senado, a Câmara dos Deputados.
Isso não pode gerar mais desgaste para o Supremo?
Há diferença. Bolsonaro queria destruir o Supremo, Lula quer cooptar. O que ele está fazendo agora, provavelmente os próximos governos vão ter que fazer também.
E quais são as necessidades do Legislativo?
Os políticos querem conversar, não acordar com a Polícia Federal na mansão deles. O Supremo está preocupado em resguardar as próprias prerrogativas e eventualmente disposto a respeitar também as do Legislativo. Isso mostra um clima mais conservador. A gente sempre teve uma ideologia hegemônica no Brasil, na esquerda e na direita, que chamo de herança do absolutismo do Estado, a mentalidade de que tem que ter um Executivo forte para fazer a modernização, desenvolvimento, mudança, e que o Congresso é um problema, que o Congresso é atrasado. Agora o sistema tende a ficar mais equilibrado do ponto de vista dos três Poderes. Tudo vai andar mais devagar, você não vai ter mais um presidente que vai fazer grandes coisas.
Há expectativa de reforma ministerial. Isso pode ajudar na relação com o Legislativo?
O efeito não é muito grande. O governo tem uma coalizão muito complicada. Agora, certamente o esforço vai ser nesse sentido. É o segundo ano do governo, é um ano que tem eleição municipal. Ao mesmo tempo, ele tem que deixar a casa arrumada para que no máximo no terceiro ano consiga faturar com crescimento econômico. As eleições municipais são preparatórias das presidenciais e de governo.
A aprovação do presidente se manteve estável ao longo do ano, segundo o Datafolha. Quais são os desafios para chegar a segmentos mais refratários ao governo?
Quando a gente olha os índices de popularidade mundo afora, de vários líderes, costumam cair muito no primeiro ano. O de Lula não caiu, o que é uma boa notícia para ele. Você tem uma divisão que não existia 20 anos atrás. Qual é a aposta do Lula? Não é na ideologia, é melhorar o quadro socioeconômico. Se você tiver comida na mesa, se o teu filho estiver entrando na faculdade, a ideologia vai ceder. A ideia é essa. Agora, não sei se ele tem noção de que vai ter que mudar muito a maneira de se comunicar também, porque com os novos meios de comunicação criados pela internet, nas redes sociais, você pode criar uma realidade artificial muito resistente à realidade socioeconômica.
Essa Arca de Noé também inclui os militares?
Lula, tradicionalmente, foi generoso com as Forças Armadas. É importante trazer o Exército no momento em que o mundo está complicado. Você pode ter problema na Guiana. A gente está entrando num mundo perigoso e, sempre que o mundo entra num ciclo perigoso, é bom para as Forças Armadas. Elas querem participar do poder, têm que estar prestigiadas. Quem se deu bem com a tentativa de golpe foram as Forças Armadas.
Por quê?
Porque mostrou, na verdade, o seguinte: nós apoiamos Bolsonaro, mas nós não embarcamos no golpe. Você começa a fazer uma política de aproximação. O que a cúpula das Forças Armadas queria era voltar ao poder, ao jogo. Eles estavam fora do jogo desde o governo Collor. O que é estar dentro do jogo? É ter mais possibilidades de cargos, de influenciar a política. É ter algum peso político para criar orçamento, salários mais altos, manter e ampliar os privilégios corporativos.