Segundo artigo de José Casado, em sua coluna na Veja, o presidente Lula da Silva (PT) realizou uma proeza política: levou a crise da ditadura de Nicolás Maduro para dentro do seu gabinete no Palácio do Planalto. Fez isso no sábado (27) quando despachou para Caracas seu assessor de política externa, Celso Amorim, visto como chanceler de fato no Palácio Miraflores, centro de negócios da cleptocracia venezuelana.
Aos 82 anos, Amorim acumula quase seis décadas de experiência na diplomacia. Chefiou o Itamaraty por três vezes. E tem 45 anos de credenciais partidárias — foi do MDB na redemocratização ao PMDB até 2009, e, desde então, está filiado ao Partido dos Trabalhadores.
Lula e Amorim são sócios numa narrativa ideológica envelhecida, na qual a Venezuela do falecido coronel Hugo Chávez e de seu sucessor Maduro é um campo de batalha pós-Guerra Fria para conter o avanço do imperialismo dos Estados Unidos no continente.
Estão completando 21 anos de aliança com o chavismo e com o silêncio obsequioso da esquerda sul-americana sobre o colapso da democracia e a destruição econômica do país vizinho ao norte, onde o regime ditatorial de Maduro provoca a maior crise migratória da história recente — os números do êxodo variam, dependendo da fonte, entre 2,5 milhões e 6 milhões de venezuelanos.
Em 2003, Lula e Amorim apostaram na obediência de Chávez à “natural” liderança brasileira. Foram surpreendidos pelo verbo e pela verba do coronel venezuelano, golpista (1992) e sobrevivente de um golpe (2001). Ele usou petrodólares como arma política, vendeu a baixo preço para Cuba, Nicarágua e alguns outros países da América Central, financiou campanhas eleitorais da Patagônia ao Rio Grande, e se legitimou como líder regional.
Chávez uniu-se a Néstor Kirchner, então presidente da Argentina. Juntos, desmontaram o principal projeto continental dos EUA, a área de livre-comércio (Alca). Na sequência, tomaram de Lula o comando da União de Nações Sul-Americana (Unasul), principal iniciativa diplomática de Brasília na época, imaginada como contraponto à influência de Washington em organismos como a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Lula insistiu em ampliar laços com Caracas. Acreditou na parceria com Chávez, via a estatal de petróleo PDVSA, e induziu a Petrobras a investir na refinaria pernambucana de Abreu e Lima — homenagem ao brasileiro que esteve com Simon Bolívar nas guerras de independência. O projeto começou com orçamento de 2,5 bilhões de dólares, já engoliu 18 bilhões de dólares. A refinaria está inacabada e a estatal venezuelana nunca aportou um centavo no empreendimento.
Lula, Amorim e a cúpula do PT ajudaram Chávez e o sucessor Maduro em campanhas eleitorais. Lula chegou a interferir diretamente em eleições venezuelanas, participando de comícios de Chávez.
Quando ele morreu, em 2013, Lula estava fora do poder, mas mobilizou o governo Dilma Rousseff, o PT e empresários amigos para apoiar a eleição de Maduro como sucessor. Ele recebeu quase 35 milhões de dólares em “auxílios” da empreiteira Odebrecht que, na época, mantinha contratos com o governo para obras num valor superior a um bilhão de dólares.
Odebrecht distribuiu cerca de 115 milhões de dólares a políticos locais, do governo e da oposição. Pagou até os gastos com a equipe brasileira de marketing político, indicada por Lula e em parte integrada por assessores petistas. Em pelo menos um caso de brasileiros na campanha, relatado na Justiça brasileira, Maduro fez questão de pagar pessoalmente: 800 mil dólares, em dinheiro vivo. Outras empresas contrataram dirigentes petistas como consultores para o “clima de incertezas” da Venezuela.
Em abril de 2013, o Conselho Eleitoral chavista proclamou a eleição de Maduro com 50,6% dos votos, contra 49,1% atribuídos ao candidato da oposição Henrique Capriles. Na contabilidade oficial, a diferença foi de cerca de 220 mil votos entre 19 milhões de eleitores registrados, com 79,7% de comparecimento nas urnas. A oposição protestou, porque mais de um milhão de votos deixaram se ser contabilizados. O governo Dilma Rousseff rapidamente avalizou a legitimidade da vitória de Maduro.
Na eleição presidencial seguinte, em maio de 2018, os partidos da oposição decidiram não participar. Maduro, na prática, disputou contra si. O Conselho Eleitoral chavista proclamou-o vencedor com 67,8% da votação. Pelos números oficiais, saiu das urnas com 1,4 milhão de votos a menos que havia obtido cinco anos antes.
A eleição foi aplaudida pelo PT e aliados no Brasil, mas repudiada, formalmente, por não ter sido “democrática, livre, justa e transparente”, pelos governos do Brasil, Argentina, México, Estados Unidos, Europa e dezenas de outros países — entre, eles Canadá, Austrália, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai e Peru.
Sábado passado, quando Lula mandou o embaixador Celso Amorim a Caracas, completava-se uma década de eleições protagonizadas por Maduro sob suspeita constante de fraudes. As evidências de veloz derretimento da ditadura venezuelana são múltiplas e surpreendem até antigos aliados da cleptocracia chavista.
Maduro atua como síndico de um condomínio de poder fragmentado no palácio e nos quartéis e desgastado nas ruas. Um dos mais antigos líderes chavistas, Diosdado Cabello, militar aposentado e vice-presidente do partido governista (PSUV), luta por fatias do governo com os irmãos Jorge e Delcy Rodríguez. Ele é presidente da Assembleia Nacional e chefiou a campanha de Maduro. Ela é vice-presidente do país, ex-chanceler e ex-ministra da Economia. Convergem na ambição de suceder Maduro.
Juntos, controlam o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público e o Conselho Eleitoral — dependente da empresa privada Ex-Cle Soluções Biométricas que opera um sistema de votação com máquinas e software chinês, importado via Irã e com faturas pagas no sistema financeiro russo.
Há quatro anos o Departamento do Tesouro dos EUA congelou ativos dessa empresa por “fraude” na reeleição de Maduro. Entre seus principais dirigentes está um empresário argentino, Guillermo Carlos San Agustín, associado a dois venezuelanos ligados ao regime, os consultores Marcos Javier Machado Requena e Carlos Enrique Quintero, militar e antigo chefe do Conselho Eleitoral chavista.
No domingo, Maduro autoproclamou-se vencedor da eleição com 51% dos votos. A oposição contesta, diz que venceu com 63%. O Conselho Eleitoral chavista anunciou que havia contado 80% das urnas — e nada mais disse, além de confirmar a reeleição. Uma coletânea de irregularidades contaminou, mais uma vez, o processo eleitoral venezuelano.
Com evidente erosão no apoio interno e externo, Maduro decidiu romper relações com Argentina, Chile, Costa Rica, Ecuador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e República Dominicana.
Tendo levado a crise para o seu gabinete, Lula viu-se à frente de um cenário de fragmentação continental sob ameaça de emergir como principal avalista da continuidade da cleptocracia e com um histórico de alergia à oposição venezuelana — levou um mês para manifestar em público discordância com o veto à candidatura de María Corina Machado e rejeitou todas as suas tentativas de contato.
O embaixador Amorim manteve-se limitado às conversas com uma fração de opositores, onde se destaca o ex-deputado Gerardo Blyde, que chegou a acompanhá-lo em encontros com Maduro. Blyde é sócio num escritório de advocacia do empresário José Simón Elarba, do segmento de coleta de lixo, que é reconhecido em Caracas pela proximidade com Cilia Flores, esposa de Maduro.
Seus principais negócios se orientam no apoio de consultoria a empresas chinesas de telecomunicações, como a China National Electronic Import & Export Corporation e a ZTE Corporation, contou o repórter Marcos David Valverde na revista eletrônica Armando.info. A China foi um dos poucos países, com a Rússia, Cuba e Nicarágua, a reconhecer a “vitória” de Maduro.
Há sinais de fadiga no governo Lula com a cleptocracia venezuelana. É possível entender como indício a exigência, em comunicado do Itamaraty, de divulgação detalhada dos boletins de urnas. Mas, entre Brasília e Caracas, ninguém aposta um bolívar que isso vá acontecer nem que vá mudar qualquer coisa.
O que está sendo feito desde a noite de domingo, como nas eleições anteriores, assemelha-se a um jogo de paciência, à espera de um desfecho imprevisível. O custo da crise que Lula levou para o Planalto, no entanto, já superou as expectativas do próprio governo.