Em mais um discurso histórico durante seu giro pela Europa, o ex-presidente Lula (PT) se emocionou ao falar da situação de milhares de refugiados africanos que arriscam a vida na tentativa de entrar na Europa.
“Eu fico imaginando se esse quantidade de trilhões e trilhões de dinheiros que atravessam os oceanos, que não passa nas alfândegas dos aeroportos, que não passa nos pedágios das estradas… Eu fico imaginando se uma parcela desse dinheiro fosse destinada para acabar com a imigração. Porque o pobre africano, se tiver comida, se tiver um pouquinho de dinheiro para trabalhar na sua propriedade, tiver dinheiro para comprar leite para seu filho, se tiver dinheiro para comprar pão para seu filho, esse cara não vai atravessar o oceano nadando para vir para a Europa”, disse Lula, nesta quinta-feira (18) no seminário “Cooperação multilateral e recuperação regional pós-Covid-19” em Madrid, na Espanha.
Falando de improviso em meio ao discurso que realizou em Madri nesta quinta-feira (18), Lula se emocionou e foi aplaudido pela plateia presente ao seminário “Cooperação multilateral e recuperação regional pós-Covid-19”.
Leia o discurso de Lula em Madrid na íntegra (sem os improvisos)
Se a humanidade tivesse direito à realização de um único desejo – depois de 1 ano e 8 meses de confinamento, por conta de um vírus que causou a morte de mais de 5 milhões de pessoas – é bem provável que o desejo fosse este:
“Queremos que tudo volte ao normal”.
Um desejo mais do que legítimo. Afinal, estamos cansados de viver por tanto tempo isolados uns dos outros. Sendo obrigados, principalmente no início da pandemia, a manter distância até dos nossos entes mais queridos, com medo de que um simples abraço significasse a entrada desse vírus mortal no nosso organismo, ou no da pessoa amada.
E o fato é que nós, seres humanos, fomos feitos para o aperto de mão, o abraço, o beijo, o amor – embora haja tanto ódio no mundo.
Acima de tudo, estamos cansados de chorar nossos mortos – mães, pais, irmãos, filhos, amigos, amores. Gente que partiu, deixando um enorme vazio na vida dos que ficaram.
Por isso, queremos ver o dia em que a Organização Mundial da Saúde declare o mundo livre da pandemia. E que tudo, enfim, volte ao normal.
Mas a pergunta que precisa ser feita é a seguinte:
“Para qual normal a humanidade deseja voltar?”
A verdade é que muito antes do primeiro caso de Covid-19, o mundo já estava doente, vítima de um vírus igualmente mortal chamado desigualdade.
A desigualdade está na raiz de incontáveis mortes que acontecem ao redor do mundo. Inclusive quando o atestado de óbito informa como causa da morte a Covid-19.
A desigualdade mata todos os dias.
Levantamentos realizados antes do início da pandemia mostravam que o 1% mais rico do mundo detinha mais do que o dobro de riqueza de quase 7 bilhões de habitantes deste planeta.
E que os 22 homens mais ricos do mundo acumulavam mais dinheiro do que todas as mulheres da África.
De lá para cá, a desigualdade cresceu. Em plena pandemia, os bilionários ficaram bilhões de dólares mais ricos. Ao mesmo tempo, os pobres atingiram um nível tão devastador de pobreza, que precisarão de uma década e meia para recuperar o que perderam e voltar à pobreza inicial.
Este não pode ser o normal a que a humanidade deseja voltar.
Não podemos aceitar como normal que um seleto grupo de homens brancos e ricos façam turismo no espaço, enquanto aqui na Terra milhões de pessoas pobres, principalmente mulheres e negros, continuam a morrer de fome.
Que centenas de milhões de pessoas não tenham acesso a água potável, luz elétrica, moradia digna, saúde e educação.
Não podemos aceitar como normal que pessoas sejam obrigadas a trabalhar 12, 14, 16 horas por dia em troca de salários indignos. Sem descanso remunerado, sem tempo para ver os filhos crescerem, sem qualquer direito ou garantia, para enriquecer um patrão invisível – os donos do aplicativo de celular.
Não podemos normalizar a exploração do sofrimento humano.
Meus amigos e minhas amigas,
No início da pandemia, quando as mortes começaram a se acumular, tanto nos países pobres quanto nos países ricos, dizia-se que a humanidade estava toda no mesmo barco. O tempo tratou de mostrar que isso não era verdade.
Os bilionários compraram iates ainda maiores, com mais espaço para pousar seus helicópteros. Enquanto isso, os mais pobres continuaram obrigados a se aglomerar em transportes coletivos lotados, expostos ao vírus. Isso acontece porque a maioria dos patrões decidiram que era mais importante preservar os lucros do que salvar a vida desses trabalhadores.
A desigualdade não deu trégua sequer durante o enfrentamento da mais grave pandemia em 100 anos.
Em maio, a Organização Mundial da Saúde estabeleceu três metas para a vacinação no mundo: 10% da população de cada país deveria estar vacinada até o fim de setembro. 40% até dezembro. E 70% até o meio de 2022.
No entanto, quando setembro chegou, mais de 50 países ainda não haviam atingido a meta inicial, que era bastante tímida. E apenas 2% da população das nações de baixa renda haviam recebido ao menos uma dose da vacina.
Vivemos um verdadeiro “apartheid de vacinas”, como definiu o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom.
Enquanto em países ricos há uma extrema direita e negacionistas que se recusam a tomar a vacina, os países mais pobres lutam para ter acesso a imunização. Na África não tem 10% de sua população vacinada. Em países como Benin, República Democrática do Congo, Chade, Guiné-Bissau e Etiópia, a taxa de vacinação não chegava a 1%.
Às vésperas da Cúpula Global da Saúde do G20, realizada em maio deste ano, a Aliança Vacina para Todos revelou que a imunização contra a Covid-19 criou 9 novos bilionários. São os executivos e grandes acionistas de laboratórios farmacêuticos, que enriqueceram graças aos excessivos lucros obtidos com o monopólio das vacinas.
A riqueza combinada desses novos bilionários soma 19,3 bilhões de dólares, que poderiam ser investidos na imunização da população de países mais pobres.
Importante lembrar que as vacinas que salvaram e continuam salvando milhões de vidas foram desenvolvidas com investimento de recursos públicos – e deveriam, portanto, ser consideradas um bem da humanidade. Mas a quebra das patentes – para democratizar o acesso- continua sendo um tabu mesmo em tempos de emergência global.
Reconstruir o mundo pós-covid significa, portanto, dizer que a vida é o bem mais precioso que existe, e que a propriedade intelectual, que enriquece uma minoria, não pode estar acima da sobrevivência de toda a humanidade.
É preciso dizer ao mundo que não aceitamos mais essa normalidade perversa.
O normal é que todas os seres humanos tenham direito a no mínimo três refeições por dia. Que tenham empregos de qualidade, com salários dignos e garantia de direitos trabalhistas. Que tenham acesso à saúde e à educação. Que tenham o direito de serem felizes.
Meus amigos e minhas amigas.
Além dos efeitos devastadores no organismo das pessoas infectadas, o novo coronavírus escancarou ao mundo outros graves efeitos colaterais: a recusa de alguns governos neoliberais em adotar o lockdown, colocando mais uma vez o lucro acima da vida; a negação da ciência e a propagação das fake news contra a vacina. E o crescimento obsceno da desigualdade.
A verdade é que a reconstrução do mundo passa necessariamente pela cura da Covid-19, mas precisa ir muito além. A humanidade precisa se curar também do vírus da desigualdade.
É necessária e urgente uma reconstrução profunda do mundo, sobre os alicerces da igualdade, da fraternidade, do humanismo, dos valores democráticos e da justiça social.
Porque mesmo que sobrevivam à Covid-19, 800 milhões de homens, mulheres e crianças não conseguirão escapar de outro terrível flagelo – a fome.
E a fome tem cura. Sou capaz de dizer isso porque em apenas 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores no Brasil, fomos capazes de retirar o país do Mapa da Fome da ONU pela primeira vez na história.
Não existe vacina contra a fome, e não foi preciso inventá-la para livrar o Brasil desse flagelo. Bastou vontade política para implementar medidas tão simples quanto revolucionárias, a exemplo do Bolsa Família, considerado o maior programa de inclusão social do mundo.
Bastou termos a ousadia de incluir os pobres no orçamento. Bastou deixarmos de olhar os excluídos como gasto, e passarmos a tratá-los como investimento. Porque cada dólar na mão do pobre, além de alívio para sua pobreza, significa um dólar a mais fazendo girar a roda da economia, o que beneficia a todos.
O Bolsa Família não fez sozinho a revolução pacífica que mudou o Brasil. Transformamos o Estado num poderoso e eficiente indutor da economia, e fomos capazes de gerar mais de 20 milhões de empregos, com todos os direitos trabalhistas garantidos.
Valorizamos como nunca o salário mínimo, que cresceu 74% acima da inflação. Deixamos de investir exclusivamente no agronegócio, e investimos fortemente também na agricultura familiar, responsável pela produção de até 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
Fizemos mais: criamos o PAA, um ousado programa de compra pelo governo dos alimentos produzidos pelos pequenos agricultores para a merenda escolar das escolas públicas e setores mais vulneráveis da sociedade.
Em pleno século 21 – como ainda acontece em vários países – nós tínhamos no Brasil um enorme contingente de pessoas sem energia elétrica, que viviam à luz de velas, e água potável.
Fomos capazes de resolver esses problemas com dois programas inovadores: o Luz para Todos, que levou energia elétrica para quase 16 milhões de brasileiros, e o Água para Todos, que construiu mais de 1 milhão e 500 mil cisternas para armazenamento da água da chuva na região do Semiárido nordestino.
Meus amigos e minhas amigas.
Por mais de 500 anos, a fome foi encarada no Brasil como um problema sem solução – da mesma forma que continua a ser encarada no mundo. Um desastre natural e inevitável, como as secas e as inundações.
Hoje sabemos que as secas e as inundações estão associadas à ação do homem, e que podem, sim, ser evitadas.
Mas a fome permanece no imaginário da humanidade como uma tragédia humanitária com a qual teremos que conviver eternamente. Como se nada pudesse ser feito para evitar o sofrimento de centenas de milhões de homens, mulheres e crianças.
Isso não é verdade, e nós fomos capazes de provar no Brasil.
Com vontade política, tiramos 36 milhões de pessoas da extrema-pobreza. Infelizmente, desde o golpe de 2016 contra presidenta Dilma Rousseff e a chegada da extrema-direita ao poder, o Brasil voltou ao Mapa da Fome.
Até mesmo o Bolsa Família, invenção brasileira replicada em diversos outros países, acaba de ser extinto pelo atual governo.
Hoje, mais de 116 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar, de moderada a muito grave. Pessoas que conseguem fazer apenas uma refeição por dia. Ou que chegam a passar um dia inteiro sem comer.
O Brasil voltou à triste normalidade da qual havia finalmente se livrado, depois de 500 anos de história.
Meus amigos e minhas amigas.
A solidariedade internacional, que envia às pressas toneladas e toneladas de alimentos para países devastados pela fome, será sempre bem-vinda.
Mas, ainda que bem-vinda e indispensável, a solidariedade internacional só é capaz de oferecer um alívio provisório. Porque a fome voltará assim que virarmos as costas. E continuará voltando, até que tomemos a decisão política de enfrentar e arrancar a sua raiz, que está na desigualdade.
Não falo da desigualdade apenas pelo que li nos livros, ou do que vi e ouvi nas minhas andanças pelos recantos mais pobres do Brasil, da América Latina e da África.
Sei a dor que a fome provoca no ser humano, porque vivi na pele. Nasci numa das regiões mais pobres do Brasil, filho de uma mãe pobre, analfabeta e lutadora, que criou seus oito filhos sozinha. Enfrentei a fome, o trabalho infantil, o desemprego, as injustiças.
Cresci com a certeza de que aquilo não era normal, que o mundo não foi feito para o prazer de poucos e o sofrimento de tantos. Entrei para a luta sindical, fundei um partido político, perdi quatro eleições antes de ser duas vezes escolhido pelo povo para governar o Brasil.
Dediquei cada dia dos meus oito anos de mandato a livrar o Brasil da desigualdade. Tenho certeza que essa luta não foi em vão, e que muito em breve nós voltaremos a fazer do Brasil um exemplo para o mundo de que é possível vencer a extrema pobreza e a fome, num curto espaço de tempo.
Quero terminar dizendo que não estamos sozinhos. Somos muitos. Vários de nós estamos reunidos aqui nesta Casa, neste exato momento, buscando soluções para a reconstrução do planeta pós-Covid-19.
Reconstruir o planeta significa construirmos juntos um novo normal.
Precisamos encontrar alternativas para a geração de emprego em meio a transição causada pela digitalização do trabalho, que tem gerado desemprego em massa, perda de direitos trabalhistas, empobrecimento e exaustão física e mental.
Esse desafio precisa ser encarado por todos: governos, sindicatos, centrais sindicais, universidades. Para que voltemos a gerar empregos em quantidade suficiente, com salários dignos e garantia de direitos trabalhistas. Para que o trabalhador seja tratado como pessoa, e não como um algoritmo descartável.
Precisamos mudar nossa relação com o meio ambiente e proteger natureza. Cuidar do nosso planeta deve ser compromisso de todos os governos, sobretudo dos países ricos, que se industrializaram há mais tempo. Mas muitos deles se recusam a cumprir as metas de redução de emissão de gases poluentes, tornando-se cúmplices de uma tragédia ambiental da qual talvez não haja retorno.
Temos que impulsionar a transição energética e ecológica, desenvolver novas formas de produção e consumo ambientalmente sustentáveis. E os investimentos nessa direção, podem ser oportunidades de novos empregos, novas tecnologias, com mais desenvolvimento científico e impulso a inovação.
Os países ricos investiram quase 2 trilhões de dólares para salvar o sistema financeiro durante a crise de 2008. Os Estados Unidos gastaram 8 trilhões de dólares nas suas guerras no Oriente Médio.
Ou seja, recursos financeiros existem. Infelizmente, não vemos a mesma generosidade quando se trata de salvar o planeta do aquecimento global, combater a crescente desigualdade e eliminar a miséria no mundo.
Esses grandes desafios não serão solucionados pelo sistema criado após a Segunda Guerra Mundial. Como ocorreu depois de outras grandes crises, é necessário reconstruir as institutições internacionais sobre novas bases.
É urgente convocar uma conferência mundial, com representação de todos os Estado, e participação da sociedade civil, para definir uma nova governança global, justa e representativa.
Meus amigos e minhas amigas,
Somos partes de gerações e gerações de jovens que alimentaram o sonho de mudar o mundo.
Mas mudar o mundo não pode ser apenas um sonho de juventude, que vamos esquecendo com o passar do tempo e a chegada da maturidade.
Mudar o mundo deve ser sempre a nossa profissão de fé, a própria razão para existirmos e nos lançarmos a uma luta árdua e permanente, da qual não poderemos jamais descansar.
Nosso maior alento é a certeza de que a construção de um outro mundo é perfeitamente possível, porque já fomos capazes de construí-lo. Um mundo mais sustentável, menos desigual, mais justo, mais solidário e mais feliz.
É este o novo normal que desejamos. E que vamos construir juntos.
Muito obrigado