Divisão da base, insatisfação de parlamentares e falhas na articulação acentuam fragilidades do Planalto
A aprovação na Câmara do PL 490/2007, que define a data de promulgação da Constituição de 1988 para a demarcação de terras indígenas, soma-se a um cenário de derrotas sucessivas impostas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso. A votação do chamado PL do Marco Temporal nesta última terça-feira (30) teve a adesão de 283 deputados – 98 deles filiados a partidos com assentos na Esplanada dos Ministérios.
Como publicou Isabella Alonso Panho, do Estadão, nunca um governo enfrentou tantas comissões parlamentares de inquérito em um tão pouco tempo de gestão. Em cinco meses, foram abertas as do MST, do 8 de Janeiro, das Americanas e das Apostas. Deputados de oposição ainda se articulam pela CPI do Abuso de Autoridade, motivada na cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), ex-procurador da Lava Jato.
Uma das formas pelas quais o governo tem tentado lidar com a desarticulação no Congresso é formar uma “base” no Judiciário, e não no Legislativo, como mostrou a Coluna do Estadão. A própria indicação do advogado Cristiano Zanin, que defendeu o petista na Lava Jato, para a vaga aberta coma aposentadoria de Ricardo Lewandowski no Supremo, tem sido costurada buscando o aval de membros do Judiciário.
Veja as 5 principais derrotas que Lula sofreu no Congresso em 5 meses de mandato:
1. CPI do MST
A proximidade do governo com o Movimento Sem Terra (MST) é alvo de uma das investigações abertas no Congresso. O objetivo da comissão, cujo relator é o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro (PL), é apurar influência política e supostos financiamentos ao grupo. A instalação da CPI é interpretada como uma resposta da bancada do agronegócio à postura do presidente.
Durante o chamado “Abril Vermelho”, quando os sem-terra intensificaram as invasões de propriedades produtivas, o governo abriu margem de negociação com o movimento e prometeu o aumento de verbas para a reforma agrária. Paralelo a isso, outro episódio que fragilizou a relação de Lula com o agronegócio foi a Agrishow, maior feira do setor no País. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, foi “desconvidado” para a abertura devido à presença de Bolsonaro.
O gesto teve vários desdobramentos. Durante uma agenda na Bahia, Lula se referiu ao “desconvite” como iniciativa de “alguns fascistas” de São Paulo. Dias depois, ministros e o vice-presidente Geraldo Alckmin compareceram a uma feira do MST no Parque da Água Branca, em São Paulo. O vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) na Câmara, Evair de Melo (PP-ES), disse que “o governo arrancou a ponte com o agro e não tem mais diálogo”.
2. CPMI do 8 de Janeiro
O Planalto sofreu uma derrota com a abertura da CPMI do 8 de Janeiro. Logo no começo do mandato, dez dias depois dos ataques às sedes dos três Poderes, em Brasília, Lula disse em uma entrevista à GloboNews que a abertura da comissão poderia “criar uma confusão tremenda”. “Não precisamos disso agora”, afirmou o petista. O governo defende a condução das apurações pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Inquéritos abertos no STF tratam do caso.
A avaliação do Planalto era de que a CPMI poderia atrapalhar a articulação no Congresso. Como mostrou o Estadão, o governo tentou até o último momento impedir a instalação da CPMI, para preservar a votação do arcabouço fiscal. O receio de Lula se concretizou: apenas nos três primeiros dias de trabalho, a CPMI do 8 de Janeiro recebeu 396 requerimentos.
O deputado Arthur Maia (União Brasil-BA) é o presidente do colegiado e a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), a relatora. A comissão é composta de 16 deputados e 16 senadores. Bolsonaro disse em um evento de líderes do PL que seus apoiadores não deveriam ir à manifestação a favor de Dallagnol para concentrar esforços na CPMI. Bolsonaro é investigado no Supremo por causa dos ataques aos três Poderes em 8 de janeiro.
3. Marco do Saneamento e PL das Fake News
A primeira grande derrota de Lula no Congresso foi imposta no dia 3 de maio. Na ocasião, 295 deputados derrubaram trechos de dois decretos editados pelo presidente com regras vistas por parlamentares e pelo mercado como afronta ao Marco Legal do Saneamento, em vigor desde 2020, por dar sobrevida à operação de estatais. O governo teve o apoio de 136 parlamentares da Câmara na análise da matéria.
O movimento foi articulado por aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), como o deputado Fernando Monteiro (PP-PE), que é sobrinho do ministro José Múcio Monteiro (Defesa), e pela oposição. A votação contra os decretos de Lula contou com o apoio de deputados de partidos com cadeira na Esplanada.
Um dos trechos derrubados liberava empresas públicas estaduais de saneamento para prestarem serviços a microrregiões ou regiões metropolitanas sem licitação. O marco obriga os municípios a abrirem concorrência. Do outro decreto, caiu o artigo que possibilitava que estatais incluíssem no processo de comprovação da capacidade econômico-financeira operações que hoje estão irregulares. Pela lei, os municípios que estão nessa situação teriam de promover uma nova licitação para contratar seu prestador de serviços.
Um dia antes, Lira adiou a votação do PL das Fake News, cuja redação, alterada pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), era de interesse do governo. O texto foi fatiado para facilitar a tramitação, mas a votação foi mais uma vez adiada e o PL continua emperrado na pauta da Câmara.
4. Marco Temporal
A votação desta terça foi mais uma derrota para o governo Lula. O PL 490/2007 estabelece um critério de interpretação para o artigo 231 da Constituição, de modo que as demarcações de terras indígenas possam ser deferidas apenas quando forem referentes a terras ocupadas por povos originários depois da promulgação da Magna Carta, em 5 de outubro de 1988 – o chamado “marco temporal”.
A proposta foi aprovada por 283 votos a 155, com o apoio de 98 parlamentares que compõem a base do governo. Apesar de o Planalto afirmar o compromisso com a causa indigenista, que foi uma das bandeiras de campanha, na Esplanada dos Ministérios não há unanimidade sobre a proposta. Enquanto Marina Silva (Meio Ambiente) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas) se articularam contra o PL do Marco Temporal, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, defendeu a proposta na segunda-feira, 22, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.
5. Convocação de ministros
Outra derrota que o presidente acumula na Câmara é a convocação de ministros para depor e prestar esclarecimentos no Congresso. As iniciativas, capitaneada por parlamentares de oposição, são uma tentativa de “emparedar” os chefes das pastas do Executivo.
Inicialmente, em março, a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) aprovou um requerimento para oitava dos ministros Flávio Dino (Justiça), Marina Silva (Meio Ambiente), Carlos Lupi (Previdência) e Carlos Fávaro (Agricultura). Um mês depois, Luiz Marinho (Trabalho), Renan Filho (Transportes), Camilo Santana (Educação), Nísia Trindade (Saúde) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e Silvio Almeida (Direitos Humanos) foram convocados por diversas comissões.
Flávio Dino (Justiça) foi novamente convocado, mas para a Comissão de Segurança Pública. A sessão precisou ser encerrada às pressas devido a um tumulto generalizado entre os parlamentares.
Na semana passada, mais sete ministros foram chamados pelas comissões – Marina, Almeida, Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação Social), Alexandre Silveira (Minas e Energia), Mauro Vieira (Relações Exteriores), general Marcos Antonio Amaro (Gabinete de Segurança Institucional) e Juscelino Filho (Comunicações). De todos os colegas, Dino lidera a lista de requerimentos para depor no Congresso. Foi chamado 63 vezes e até agora compareceu em três ocasiões na Câmara e uma no Senado.