Uma das hipóteses da Polícia Federal para explicar a motivação do plano da maior facção criminosa do país de sequestrar o senador Sergio Moro (União-PR) e o promotor de Justiça Lincoln Gakiya é segundo a colunista Malu Gaspar, do O Globo, que fosse uma vingança por medidas que ajudaram a desarticular a cúpula da organização.
A principal delas, autorizada em 2019 por Moro, então ministro da Justiça, Gakiya e outras autoridades, foi a transferência de 22 lideranças da facção do sistema penitenciário de São Paulo para presídios federais em outras regiões. Entre esses presos estava Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo da organização.
Hoje, sua soltura é considerada questão de honra e tida como um importante elemento agregador da facção.
Aos 54 anos, Marcola está encarcerado de forma ininterrupta desde 1999, condenado a mais de 300 anos de cadeia por homicídio, tráfico de drogas, formação de quadrilha, roubo e outros crimes. Mas isso não impediu que assumisse o comando da organização em 2002.
“Marcola é uma liderança muito emblemática desta facção, que funciona como um colegiado. Ele se tornou o grande mandachuva do grupo e exerceu essa função mesmo preso sob o regime disciplinar diferenciado, em presídios de segurança máxima, antes da transferência para fora de São Paulo”, explica Renato Sérgio Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Soltá-lo não é só questão de honra. Demonstraria a força bélica e a unidade da organização para as autoridades”.
As transferências e outras medidas restritivas no sistema prisional adotadas quando Moro era ministro da Justiça de Jair Bolsonaro são citadas na decisão da juíza federal Gabriela Hardt, que autorizou a operação que prendeu nove integrantes da facção na última quarta-feira, como uma possível motivação para a conspiração.
Hardt, que substituiu Moro na condução da Lava-Jato em 2019, afirma no despacho que um eventual atentado da organização contra o ex-ministro e sua família demonstraria poder e causaria temor ao Estado “como forma de supostamente diminuir a alegada opressão sofrida pela facção” dentro dos presídios federais.
A distribuição dos criminosos por diferentes unidades de segurança máxima não só isolou a cúpula de criminosos, praticamente impedindo a comunicação entre eles dentro das prisões, como também preveniu que a facção criasse ramificações nos presídios e corrompesse o sistema.
A medida rompeu a comunicação entre Marcola e os demais níveis hierárquicos da facção e exigiu um rearranjo completo da cúpula, já que a maior parte dos outros 21 transferidos faziam parte de seu núcleo de poder.
Segundo Lima, isso provocou uma mudança geracional radical no grupo, com a ascensão de criminosos mais jovens ao comando dos negócios. Mas não alterou a imagem mítica de Marcola diante da facção, que já elaborou diversos planos para soltá-lo.
O último foi descoberto pela PF em janeiro deste ano e levou à transferência de Marcola de Rondônia para o presídio da Papuda, em Brasília.
“Marcola é cultuado dentro da facção. Mesmo que ele não mande mais no dia-a-dia, os novos líderes não têm a mesma força política dele e dos outros 21 transferidos em 2019”, explica Lima.
“O grupo ainda entrou em algumas disputas internas com o assassinato do Gegê do Mangue [Rogério Jeremias de Simone, considerado o homem de Marcola fora dos presídios e acusado de traição] e a prisão do Fuminho [Gilberto Aparecido dos Santos, o maior fornecedor de drogas da facção]. Mas Marcola continua sendo um grande símbolo de agregação e mobilização”.
Entre os presos pela Polícia Federal na última quarta está Valter Lima do Nascimento, conhecido como Guinho. Ele é braço-direito de Fuminho, preso em Moçambique há quase três anos e apontado como o mentor de um plano cinematográfico para o resgate de Marcola em Presidente Venceslau (SP), antes da transferência de 2019, que acabou frustrado pelas autoridades policiais.
A investigação da PF, conforme Malu Gaspar, ainda está em curso e há diversos elementos a serem esclarecidos sobre o caso. As transferências, oficializadas durante a gestão Moro, foram planejadas ainda em 2018, quando as tratativas eram lideradas pelo governador de São Paulo Márcio França (PSB) e o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, do governo Michel Temer.
Mas a remoção dependia do aval de diferentes instâncias: do governo estadual, do Ministério Público, das Justiças estadual e federal e, por fim, do governo federal, que precisa sinalizar se há vagas no seu sistema prisional.
À época, um impasse entre as partes envolvidas atrasou o processo, apesar do pedido ter sido formalizado por Gakiya. Ainda assim, a transferência de Marcola foi uma promessa de campanha do então candidato tucano ao Palácio dos Bandeirantes, João Doria, que acabou derrotando França no segundo turno.
Os louros – ou, levando em conta os últimos acontecimentos, os ônus – acabaram com Moro, Bolsonaro e Doria.