Após a morte do fundador da extinta União Soviética, Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lênin, em janeiro de 1924, alguns dos médicos que cuidaram dele propuseram a remoção de seu cérebro para estudá-lo.
Há cem anos, o objetivo desses cientistas e de políticos aliados era descobrir onde residia o que consideravam a “genialidade” de Lênin.
A ideia foi aprovada pela hierarquia soviética, que criou uma instituição com a finalidade de realizar tais pesquisas.
Um século depois, onde está o cérebro de Lenin e que resultados as análises mostraram? Para responder a essas e outras perguntas, a Juan Francisco Alonso, da BBC News, conversou com historiadores e neurocirurgiões que pesquisaram o caso.
Um convidado incômodo
“A história do cérebro de Lênin começa com uma proposta ao Politburo (comitê central do partido comunista da extinta União Soviética) do ministro da Saúde, Nikolai Semashko, e do assistente pessoal de Stalin, Ivan Tovstukha, de ‘exportar’ o órgão para Berlim (Alemanha) para estudo”, disse o historiador americano Paul Roderick Gregory.
O especialista, que escreveu o livro Lenin’s Brain and Other Tales from the Secret Soviet (em tradução livre, “O cérebro de Lenin e outras histórias dos arquivos secretos soviéticos”) especificou que, no momento da morte do líder, a Rússia carecia de neurocientistas.
E, por isso, as autoridades soviéticas convidaram o médico alemão Oskar Vogt (1870-1959) para analisar o órgão, que foi colocado em formaldeído (conhecido como formol) após ter sido retirado durante a autópsia.
Vogt era um renomado neurologista que fundou e dirigiu o Instituto Imperador William para Pesquisa do Cérebro (hoje Sociedade Max Planck, uma prestigiada organização que reúne vários centros científicos alemães).
“A Alemanha tinha o melhor nível científico da época e o maior número de prêmios Nobel”, explica José Ramón Alonso, professor de Neurobiologia da Universidade de Salamanca (Espanha), à BBC News Mundo.
“E embora Vogt tivesse alguma relutância em aceitar a tarefa, o governo alemão o instou a fazer isso. Naquela altura, a Alemanha estava interessada em manter boas relações com a URSS, para ultrapassar através daquele país as sanções que a impediam de desenvolver armamentos após a Primeira Guerra Mundial”, acrescenta o especialista, que estudou o assunto para seu livro Historia del Cerebro (“História do Cérebro”).
Contudo, o plano de levar o cérebro de Lênin para Berlim foi abortado.
“Stalin não gostou da ideia de um estrangeiro estar envolvido nesse processo, porque não conseguiria controlá-lo”, diz Gregory, que é bolsista do Instituto Hoover da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
‘Como um queijo suíço’
Apesar das objeções de setores da liderança soviética, Vogt acabou sendo convidado a participar da pesquisa e recebeu uma das 30.953 partes em que foram divididos o cérebro do falecido líder, que ele poderia levar para seu laboratório na Alemanha para estudá-lo.
Em troca, Moscou pediu ao especialista alemão que treinasse médicos russos na área de neurociências e dirigisse a criação do Instituto Russo do Cérebro (hoje Academia Russa de Ciências Médicas).
No entanto, anos mais tarde, confrontos que Vogt teve com o regime nazista não só lhe custaram as suas posições na Alemanha, mas também ofereceram a Stalin a desculpa para dispensá-lo, acrescentou o historiador americano.
As dúvidas soviéticas sobre a intervenção estrangeira pareciam justificadas. Na década de 1930, do Terceiro Reich, alegaram que Lênin estava doente e que seu cérebro parecia “queijo suíço”, lembra Alonso.
E é por isso que, quase no final da Segunda Guerra Mundial, Moscou lançou uma operação secreta para resgatar a amostra que estava nas mãos de Vogt, disseram os pesquisadores belgas L. van Bogaert e A. Dewulf.
“Os soviéticos temiam que a amostra que Vogt tinha caísse nas mãos dos americanos e pudessem usá-la para desacreditar Lênin, dizendo que ele sofria de sífilis ou que não era um gênio”, afirma o professor espanhol.
Tentativa fracassada de agradar
No final da década de 1920, Vogt apresentou os resultados preliminares de seus estudos em uma série de palestras na Europa. E ali afirmou que “os neurônios piramidais da camada III do córtex cerebral de Lênin eram excepcionalmente grandes e numerosos”.
Para o neurologista alemão, isso explicava a “mente ágil” do falecido líder e a sua capacidade de “relacionar ideias muito rapidamente, bem como o seu sentido de realidade”, razão pela qual chamou Lênin de “atleta do pensamento associativo”.
Embora à primeira vista o especialista tenha dado a Moscou o que procurava, alguns líderes soviéticos não ficaram satisfeitos. A razão? Outros especialistas da época sustentavam que grandes e numerosos neurônios piramidais também eram característicos de atraso mental, alertou um líder comunista em um relatório.
“As descobertas de Vogt foram amplamente criticadas porque se acredita que ele disse aos russos o que eles queriam ouvir: que o cérebro de Lenin era único e excepcional”, diz Alonso.
“As autoridades soviéticas sustentavam que Lênin era o maior dos gênios e esperavam que o seu cérebro tivesse características especiais e que houvesse algo distinguível que lhes permitisse dizer que não era como o de qualquer outro ser humano”, acrescenta o neurobiólogo espanhol.
Vogt acreditava que havia ligações diretas entre a estrutura (tamanho e forma) do cérebro e a inteligência das pessoas.
Sob sete chaves
Uma pessoa que defendeu o uso do terror para controlar as massas ou que viveu às custas da mãe até ela morrer pode ser considerada intelectualmente superior?
Os biógrafos soviéticos ignoraram isso e destacaram que a grande memória de Lênin lhe permitiu dominar sete línguas e ser capaz de escrever um artigo para um jornal em apenas uma hora.
As investigações para encontrar a raiz de “gênio” do líder bolchevique duraram mais de uma década, pois foi necessário começar a coletar outros cérebros para que os especialistas pudessem compará-los com o do falecido revolucionário, explicam os estudiosos sobre o tema.
Essa é a razão pela qual nas prateleiras da Academia de Ciências Médicas de Moscou hoje não apenas o cérebro de Lênin é mantido trancado a sete chaves, mas também o do fisiologista Ivan Pavlov, o do engenheiro aeronáutico Konstantin Tsiolkovski e o do escritor Maxim Gorky.
No entanto, os pedaços de cérebro do fundador da URSS foram comparados não apenas com os de compatriotas brilhantes, mas também com os de dez cidadãos comuns. Os resultados não foram divulgados e apenas apresentados às mais altas autoridades.
“No Instituto Hoover há uma cópia do relatório que o Politburo recebeu, que tem 63 páginas. O relatório está em mau estado e contém muita linguagem científica e coisas sem sentido, mas é claro que conclui que Lênin foi um gênio até ao fim dos seus dias. Isso apesar de ele ter sofrido quatro derrames cerebrais e ter ficado incapacitado desde o segundo deles”, diz Gregory.
“Foi cômico ler esse documento, porque parecia que (seus autores) estavam inventando coisas para chegar à conclusão que queriam”, acrescenta.
Embora pesasse apenas em 1,3kg, em comparação com mais de 2 para alguns escritores famosos da época, os investigadores soviéticos asseguraram que o cérebro de Lênin apresentava uma “complexidade de relevos e peculiaridades na configuração dos sulcos e circunvoluções, especialmente no seu lobo frontal” dignos de alguém com “altas habilidades intelectuais”.
Alonso rejeita as conclusões de Vogt e daqueles que o sucederam.
“Ninguém acredita que o tamanho ou a forma do cérebro tenha alguma coisa a ver com a inteligência (…) Há pessoas com cérebros grandes que deixaram grandes obras artísticas ou científicas, mas também há pessoas com cérebros pequenos que o fizeram. Não encontramos um padrão que nos permita dizer onde está a genialidade”, explica.
E Alonso lembra que “hoje continuamos discutindo o que chamamos de inteligência”.
“(O pintor Vincent) Van Gogh é considerado um gênio artístico, mas era uma pessoa com muitos problemas. O mesmo aconteceu com (o físico Isaac) Newton, que é considerado o melhor cientista da história, mas não tinha amigos e vivia quase na miséria, apesar de ter dinheiro”, conclui o especialista.
Uma arma política
Após a dissolução da URSS em 1991, alguns cientistas que guardavam ou examinavam o cérebro de Lênin começaram a oferecer outras versões além da oficial.
“Certamente tinha um grande lobo frontal e um grande número de neurônios piramidais. Agora, o que isso significa? Só podemos especular (…) que o cérebro não tem nada de especial”, admitiu Oleg Adrianov em 1993, então diretor do centro que protege os cérebros do líder bolchevique.
“Não creio que ele fosse um gênio”, concluiu o cientista russo em declarações à imprensa britânica.
O estudo do cérebro de Lênin também foi uma das armas com as quais Stalin procurou se estabelecer como herdeiro do fundador da URSS.
“Stalin não só queria provar a genialidade de Lênin, mas também se tornar o intérprete desse gênio, a fim de fortalecer a sua posição na luta pelo poder que começou assim que Lênin morreu”, acrescenta Gregory.
Mas o cérebro de Lênin não foi a única coisa que Stalin usou na sua guerra pelo poder. Ele ignorou os desejos do seu antecessor e da sua família e decidiu preservar o corpo de Lenine e exibi-lo publicamente como o de um santo no mausoléu construído sob os muros do Kremlin, onde permanece até hoje.
No entanto, especialistas como o historiador cubano Armando Chaguaceda acreditam que o próprio Lênin deu origem em vida ao seu posterior processo de endeusamento.
“Lênin foi o criador do Estado totalitário soviético, que tem a propaganda entre os seus pilares”, diz.
“Uma coisa é o que dizem os dirigentes e outra coisa é o que acontece na prática, para todos estes líderes: Lênin, Fidel Castro ou Mao Tse Tsung disseram que não queriam um culto à personalidade à sua volta, mas isso era retórica, porque em vida eles organizaram ou patrocinaram um culto à sua figura e isso continuou após suas mortes”, afirma.