O leilão de bens de réus em ações penais antes do trânsito em julgado da sentença condenatória é inconstitucional, embora seja uma prática comum na Justiça Criminal. Em grandes processos, juízes acabam acumulando a função de administradores de propriedades. Como não têm prática na atividade, seria mais eficaz nomear os réus depositários fiéis de seus bens, avaliam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, estendeu ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu (PT) os efeitos da decisão que declarou o ex-juiz Sergio Moro suspeito para atuar em processos contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Com a extensão, todas as decisões de Moro contra Dirceu na “lava jato” estão anuladas, inclusive as condenações, e o ex-ministro volta a ter seus direitos políticos. Dirceu foi condenado por Moro em 2016 a 23 anos de prisão por corrupção passiva, recebimento de vantagem indevida e lavagem de dinheiro.
No ano seguinte, houve uma segunda condenação a 11 anos e três meses de prisão, também por corrupção e lavagem de dinheiro. Os casos envolvem a suposta participação de Dirceu em esquemas de corrupção na Petrobras.
Nesses processos, bens confiscados de Dirceu já haviam sido leiloados para garantir o ressarcimento aos cofres públicos. Um apartamento e uma casa em São Paulo e uma caminhonete foram leiloados por ordem judicial.
Leilão inconstitucional
O leilão de bens antes do fim do processo é inconstitucional, pois viola os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência, afirmam os advogados Eduardo Sanz e Fernando Fernandes.
Porém, o artigo 144-A do Código de Processo Penal prevê hipóteses excepcionais em que o Judiciário pode promover a alienação antecipada de bens ,desde que presente os seguintes requisitos processuais: finalidade de preservar o valor dos bens constritos; condicionado a probabilidade de haja qualquer grau de deterioração ou depreciação; ou, ainda, quando houver dificuldade para sua manutenção.
“A alienação antecipada de bens é realizada frequentemente em bens móveis como veículos e embarcações, dada a desvalorização rápida no mercado e a dificuldade, e até mesmo impossibilidade, de o Estado manter os bens apreendidos adequadamente”, explica Sanz.
O assunto já foi bastante debatido nos tribunais. O Informativo 768 do Superior Tribunal de Justiça tem a seguinte redação: “É possível alienação antecipada de bens que correm o risco de perecimento ou desvalorização, ou quando houver dificuldade para sua manutenção.”
Se os bens do réu foram leiloados, e ele for posteriormente absolvido, deve ser indenizado pelo Estado, ressalta Fernandes.
“Na hipótese de absolvição e de devolução do valor, é muito comum haver perda patrimonial significativa em face do leilão, e por óbvio, na ausência de interesse de aumento patrimonial por parte das autoridades públicas. Nessa situação, a parte prejudicada deverá procurar os seus direitos em futuras ações de reparação contra o Estado pela via judicial”, destaca Eduardo Sanz.
Caso Youssef
Em setembro, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou que a 12ª Vara Federal de Curitiba explique a destinação de valores obtidos a partir do leilão de imóveis do doleiro Alberto Youssef.
A renúncia dos bens que foram a leilão consta em uma das cláusulas do acordo de colaboração premiada fechado por Youssef em 2014. O valor obtido, que chega a cifras milionárias, foi utilizado como troféu pela “lava jato”, que prometia a devolução aos cofres públicos. Não se sabe, no entanto, onde a totalidade do dinheiro foi parar.
Reportagem do jornalista Pedro Canário, do portal UOL, mostrou que ninguém sabe ao certo o que foi feito dos 99 imóveis que Youssef se comprometeu a entregar à Justiça no acordo de colaboração premiada. De acordo com pessoas com conhecimento do caso, nunca foi feita perícia judicial para saber quanto valiam os imóveis no momento da entrega pelo doleiro.
‘Lava jato’
Na finada “lava jato”, a 13ª Vara Federal de Curitiba e a 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, que era comandadas pelos juízes Sergio Moro e Marcelo Bretas, respectivamente, tornaram-se grande administradoras de bens.
“A ‘lava jato’ virou uma caixa preta quanto às questões financeiras, e os exageros em relação às consequências econômicas dos processos devem ser profundamente investigados, diz Fernando Fernandes.
Eduardo Sanz sugere que os réus sejam nomeados depositários fiéis de seus bens. A figura é prevista no artigo 159 do Código de Processo Civil, aplicado por analogia com fulcro no artigo 3º do Código de Processo Penal.
“O depositário não terá a disponibilidade do bem de modo a desfazer-se do mesmo. Porém terá a obrigação de conservá-lo até decisão judicial posterior. Tal medida se mostra mais efetiva, porque o próprio proprietário do bem tem interesse em preservá-lo, ou até mesmo, beneficiá-lo. Além de garantir ao proprietário continuar fruindo do bem que, até que se julgue definitivamente o caso (art. 5º, LIV, da Constituição), de fato lhe pertence”, afirma Sanz.
“Essa situação garante ao proprietário, em verificando a depreciação do bem (pense-se em um veículo), venha postular a venda do mesmo junto ao juízo, que deve autorizar a operação, desde que o valor seja depositado em conta judicial, ou mesmo, venha a ser investido em novo veículo alterando-se a constrição do antigo (depreciado) para o novo (valorizado)”.
Para Sanz, isso deve ser replicado em quase todas as hipóteses de bloqueios patrimoniais, inclusive em investimentos de valores, desde que não sejam de alto risco.
“Pense-se, por exemplo, em um bloqueio de valores em conta bancária que possui valores aplicados em investimentos de renda fixa de boa rentabilidade e baixo risco (como títulos do tesouro, por exemplo). Não faz sentido retirar esses valores do bloqueio para trazer a depósito judicial, onde sofrerá depreciação financeira, quando poderiam eles ficar bloqueados na própria conta do proprietário, dentro de suas respectivas aplicações. Afinal, tal medida garante o direito constitucional da parte (art. 5º, incisos LIV e LVII, da Constituição), assim como promove o princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da Constituição). Cuidando do seu patrimônio a parte, ao fim e ao cabo, estará também cuidando do patrimônio público, já que em havendo uma condenação com trânsito em julgado, o patrimônio será revertido ao Estado”, opina o advogado.
Essas medidas, segundo Sanz, retiram o ônus do Estado de conservar apropriadamente bens bloqueados. Também atendem ao interesse público do Judiciário de que os bens estejam em bom Estado de conservação até o final do processo. E reduzem a onerosidade da medida na esfera patrimonial do atingido.
“Além disso, evita-se a incidência de responsabilidade civil do Estado, prevista no artigo 37, parágrafo 6ª, da Constituição. Já que, por exemplo, na hipótese de um veículo que esteja apreendido, sob a custódia do Estado, sofra depreciação, o acusado pode acionar o Estado e requerer ressarcimento do valor/diferença referente a esta avaria; ou mesmo, acionar o Estado para rever prejuízos patrimoniais decorrentes da pior remuneração dos valores”, ressalta Eduardo Sanz..
Gestão de bens
Em julho de 2019, a 7ª Vara Federal Criminal do Rio informou que, em 25 desdobramentos da “lava jato”, havia apreendido 699 imóveis, além de navios, aeronaves, joias e R$ 1,7 bilhão.
Segundo Sérgio Rodas, editor da revista Consultor Jurídico, perguntou à Justiça Federal no Rio quantos imóveis foram apreendidos por ordem de Bretas e quantos estão sob administração da 7ª Vara Federal Criminal. A assessoria de imprensa do órgão disse que não poderia precisar o número.
Administrador de bilhões em valores e bens apreendidos, Bretas — que está afastado do cargo por decisão do Conselho Nacional de Justiça — ocupava-se, sozinho, de alugar imóveis, leiloar veículos e destinar dinheiro para a polícia, por exemplo. Enquanto zelava pelos bens, Bretas ainda tinha de decidir sobre o futuro de réus de renome. E caía em contradições ao adotar penas até 350% diferentes em relação a condutas idênticas, a depender do réu.
Cuidar dos bens de uma clientela abastada ocupava o tempo do antigo titular da 7ª Vara Federal, que despachava até sobre os aluguéis de cada um dos imóveis confiscados. O apartamento da família Cabral no Leblon, por exemplo, foi alugado por R$ 25 mil ao mês, indo R$ 19,6 mil mensais para o proprietário, R$ 5,4 mil para o condomínio e R$ 700 anuais para o IPTU, contou o jornal O Globo.
Em junho de 2018, ele disponibilizou, para o Gabinete de Intervenção Federal no Rio, R$ 1,132 milhão do dinheiro sob os cuidados da vara, para que fossem comprados equipamentos para a Polícia Civil do estado — do que a própria Justiça Federal se ocupou, segundo o jornal Extra.
No mesmo mês, o Centro Cultural da Justiça Federal pediu ao juiz, para custear uma mostra, R$ 18,3 mil dos valores recuperados pela “lava jato”. Ao ser informado, o presidente do TRF-2, André Fontes, censurou a atitude. À ConJur ele disse ter como “princípio intransigível o de que não é possível à administração receber recursos oriundos das partes das ações em tramitação ou julgadas pela Justiça Federal da 2ª Região”.
Além dos valores apreendidos, a conta judicial da vara recebia depósitos de multas impostas em condenações e do pagamento de fianças por réus com prisão preventiva decretada. O banqueiro Eduardo Plass, por exemplo, preso em agosto de 2018, pagou R$ 90 milhões para ser solto. Plass é acusado de participar do esquema de ocultação de bens de Sergio Cabral, diz o portal g1.
De Eike Batista, o juiz bloqueou outros R$ 900 milhões em investigações da “lava jato”. Em 2016, Bretas já havia bloqueado R$ 1 bilhão de Sergio Cabral, da multinacional Michelin e de seus executivos, devido a acusações de concessão ilegal de incentivos fiscais.
Os funcionários da 7ª Vara Federal do Rio não suportaram tamanho grau de envolvimento na administração dos bens, e o juiz pediu à Presidência do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em maio de 2018, um reforço no quadro. A ideia era criar um setor específico para gerir os imóveis de investigados na “lava jato”.