Enquanto D. Pedro 1º, o grande artífice da independência brasileira, tem uma reputação marcada pelas humilhações públicas que impôs à Imperatriz Leopoldina, pela fama (exagerada) de que lhe faltava sofisticação intelectual, por seu temperamento explosivo e até pelo folclórico episódio da disenteria no 7 de setembro, a imagem de outro personagem da proclamação se sedimentou ao longo da história de uma maneira bem diferente.
Conhecido até hoje pelo epíteto de “patriarca da Independência”, José Bonifácio ganhou destaque como um gênio político que concebeu um projeto de nação brasileira à frente de seu tempo.
Há, em sua trajetória, as defesas da luta abolicionista em meio a uma sociedade fortemente escravocrata, da ampliação do acesso à educação para a população e da avançada ideia de uma consciência ambiental.
Visões mais recentes, no entanto, jogam luz sobre uma figura mais complexa. A carreira tida como brilhante na Europa é relativizada após um exame mais demorado sobre sua passagem no continente.
O entusiasmo pelas ideias liberais e iluministas, em voga entre intelectuais do começo do século 19, se choca com episódios de posições antidemocráticas.
As origens
José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1763, uma vila colonial decadente na época, com população de pouco mais de 1.500 pessoas.
Foi batizado como José Antônio (o Bonifácio do pai seria incorporado ao seu nome apenas na cerimônia de crisma) e cresceu em uma família de nove irmãos (uma décima irmã morreu ainda bebê). O pai tinha uma das maiores fortunas da região: era dono de imóveis, terras e uma fazenda.
Aos 14 anos, foi para a cidade de São Paulo estudar aos cuidados de um frei. Um pouco mais tarde, empreenderia uma viagem ainda mais importante para a sua formação: seguiu rumo a Portugal em 1783 com objetivo de estudar direito e filosofia na Universidade de Coimbra.
Era um roteiro conhecido para os filhos da elite do Brasil colônia. A maioria, porém, retornava pouco depois da conclusão dos estudos para assumir os negócios da família.
José Bonifácio demorou-se muito mais na Europa — e em tempos de particular efervescência no continente. A revolução francesa, em 1789, reverberaria por décadas nas ideias políticas europeias.
Mas o José Bonifácio dessa arena só ganharia proeminência depois. Sua especialização intelectual nessa época se deu no ramo das ciências naturais, mais especificamente a mineralogia. Havia razões pragmáticas para isso.
Conhecer e saber diferenciar os minérios e seus valores era de grande interesse a reis ou rainhas. E, para avançar em suas ambições na carreira científica, o patrocínio do Estado seria importante.
Passou por lugares como Alemanha, Itália, Hungria, Áustria, Suécia, Dinamarca e Noruega. Em seus escritos, anotações sobre as características dos povos locais.
Segundo ele, alemães se comportam nos teatros como “mortos, batem apenas um instante de palmas” e suecos “cuidam ser perfeitos e não tentam melhoria”.
Longe de ser apenas um observador de costumes estrangeiros, Bonifácio se destacou em sua área ao registrar quatro espécies minerais até então desconhecidas (espodumênio, petalita, criolita e escapolita) e entrou num seleto grupo de mineralogistas que fizeram descobertas.
Mas, segundo a biógrafa e historiadora Mary del Priore, autora de As Vidas de José Bonifácio (Estação Brasil, 2019) pouco provável que tenha sido amigo de Alexander von Humboldt, um dos maiores nomes das ciências naturais na história, como costuma-se contar na sua trajetória.
Suas andanças pelo continente também serviram para acumular informações sobre as maneiras que as intendências locais exploravam comercialmente suas minas.
Uma década depois, já aos 37 anos, voltou a Portugal. Teve grande proximidade com d. Rodrigo de Souza Coutinho, afilhado político (e de batismo) do outrora poderoso Marquês de Pombal. Coutinho liderava um projeto de modernização do país que tinha influência liberal.
Assim, Bonifácio galgou posições tanto na Academia de Ciências de Lisboa (onde chegou a secretário, o cargo máximo) quanto na administração do reino (ficou responsável pelo importante papel de gerenciar e aumentar a eficiência das minas e ferrarias de Portugal).
Protoecologista
Uma de suas marcas, segundo biógrafos e historiadores, foi estender sua visão além da exploração econômica e contemplar o desenvolvimento social dentro de um projeto de desenvolvimento.
Aí também desponta a faceta hoje vista como de protoecologista. Defende em escritos o plantio de novos bosques em Portugal como parte do que hoje poderia ser entendido como sustentabilidade.
“José Bonifácio era um cientista com a preocupação de dar aplicação prática a seus conhecimentos científicos. Ainda em Portugal, esteve a cargo de administração e conservação de bosques e escreveu a respeito. Foi sem dúvida um pioneiro na preocupação com o que hoje se chama ecologia”, diz o historiador e membro da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho.
“Autoritário e defensor da ecologia, se hoje vivesse, estaria pondo na cadeia os responsáveis pelos crimes ecológicos”, complementa.
Já para a historiadora da USP e biógrafa Miriam Dolhnikoff, autora de José Bonifácio (Companhia das Letras, 2012), essa visão era mais centrada numa busca por produtividade econômica.
“[Ele] denunciou em alguns dos seus escritos o uso irracional da natureza. Mas esta denúncia tinha caráter econômico. Para ele, o problema era o arcaísmo da exploração da terra, que comprometia a produtividade da agricultura e de outras atividades econômicas”, diz.
“É completamente anacrônico falar em qualquer tipo de ambientalismo no Brasil do século 19.”
Agitação na Europa
Os projetos e ambições de ascensão na administração após o retorno se chocaram com a burocracia portuguesa — algo que se agravou com a saída forçada de D. Rodrigo. Dolhnikoff, em seu livro, aponta o peso de outro fator nessas dificuldades: a quantidade de cargos que José Bonifácio acumulou como funcionário público.
Nesse meio-tempo, a agitação no continente europeu crescia. Napoleão Bonaparte ameaçava invadir Portugal, que vivia sob a órbita de influência dos ingleses, rivais da França.
Quando isso se concretizou, a família real portuguesa zarpou em mais de 30 navios para se instalar no Brasil, longe das forças bonapartistas, mas José Bonifácio permaneceu em Portugal como parte da resistência.
Ficou encarregado da fábrica de pólvora na contraofensiva e, em fase posterior, assumiu o Serviço de Segurança do Exército para combater a espionagem francesa e os colaboracionistas.
Passado o conflito e expulsos os franceses, as dificuldades no exercício de suas funções na administração portuguesa permaneceram. Ele se queixava, por exemplo, da falta de estrutura como professor na Universidade de Coimbra. Mas as críticas à visão lusitana das coisas tinha amplo escopo.
As frustrações na metrópole e a relevância que o Brasil ganhou ao ser elevado a reino ajudaram a materializar finalmente o retorno tantas vezes ensaiado de José Bonifácio à terra-natal.
Aos 56 anos, embarcou em 1819 com a mulher e a filha mais nova, Gabriela. A mais velha, Carlota, já casada, ficou em Portugal. Também seguia uma criança fruto de um relacionamento extraconjugal de José Bonifácio que foi batizada com o nome de sua esposa, Narcisa Cândida.
Biógrafos de diferentes épocas detalham a partir dos próprios escritos de Bonifácio o intenso interesse sexual pelas mulheres, em relações casuais ou visitas a bordéis.
Há frases dele que hoje não seriam aceitas: “As mulheres têm sido a peste da minha vida — amo-as, mas não as estimo muito”, anotou certa vez.
“A misoginia era uma característica da época. A virilidade fazia parte da construção social, daquilo que era respeitado num homem. O homem tinha que ser viril. Ele tinha e podia ter amantes. Até porque, em geral, casava-se dentro de uma rede de interesses”, diz Mary del Priore.
Sem aposentadoria
Após três décadas e meia fora, José Bonifácio aporta em território brasileiro aparentemente disposto, como manifesta em cartas, a aproveitar a aposentadoria.
Mas logo retoma o seu trabalho científico em viagens mineralógicas ao lado do irmão Martim Francisco — o outro, Antônio Carlos, estava preso no Nordeste por conta de seu envolvimento na revolução pernambucana de caráter separatista em 1817.
E o espírito crítico que dedicava aos portugueses seguiu em plena forma com o que via no Brasil.
Havia impressões sobre ruas e caminhos em estado de desleixo que é “entretido e aumentado pelas ideias supersticiosas e fanáticas que uma boa parte do clero da vila [de Itu, no interior paulista] prega ao povo, e que muitas vezes tem sido a causa de desunião das famílias, da corrupção da mocidade e do afrouxamento do serviço público”.
É nessas imediações que também vê com desgosto a situação dos índios, ainda alvo de traficantes, e o mecanismo de uma sociedade escravocrata.
“A sorte daqueles índios merece toda nossa atenção […] para que não ajuntemos ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos d’África o ainda mais horrível dos infelizes índios de que usurpamos as terras, e que são livres não só pela razão, mas, também, pelas leis.”
Segundo Miriam Dolhnikoff, para Bonifácio, “a escravidão seria um obstáculo instransponível para a construção do novo país, em primeiro lugar porque seria necessário combater permanentemente um inimigo interno: a população escravizada”.
“Para garantir a ordem era preciso transformar escravos em cidadãos que compartilhassem o pertencimento à nova nação. Em segundo lugar, a violência embutida na escravidão incapacitava, segundo ele, os homens livres para o exercício da cidadania. Uma elite que vivesse da exploração violenta de homens e mulheres não seria capaz de entender o sentido da cidadania em um regime liberal.”
A historiadora da USP lembra que “é importante ressaltar que a nação e o Estado projetados por Bonifácio deveriam refletir os interesses da elite branca a qual ele pertencia, a escravidão assim, para ele, era um obstáculo para materializar os interesses mais amplos da elite”.
Envolvimento na independência
Os ares de agitação que se encresparam com movimentos independentistas no Brasil ficaram ainda mais densos com a revolução constitucionalista do Porto, de 1820, que exigia a volta do rei D. João 6° a Portugal e a redação de uma Constituição.
D. João, após muitos adiamentos, cedeu e tomou o caminho de Lisboa, mas os portugueses estavam dispostos a reverter os privilégios que o Brasil havia obtido como sede da família real.
Uma das exigências era o retorno do príncipe D. Pedro e, na prática, uma anulação da autonomia que a antiga colônia havia conquistado.
Em meio a essa movimentação que desaguaria na independência, José Bonifácio, junto a seus irmãos (Antônio Carlos já havia sido libertado), ganhou proeminência na política paulista.
Participou da organização das eleições de deputados (mas não como candidato) para as Cortes de Lisboa que formulariam a nova Constituição.
Em determinado momento, ajudou a elaborar uma espécie de programa de governo para a província em que destaca a importância da educação.
Para ele, o desenvolvimento dependia de investir em educação para que “nunca faltem, entre as classes mais abastadas, homens que não só sirvam os empregos, mas igualmente sejam capazes de espalhar pelo povo os conhecimentos, que são indispensáveis para o aumento, riqueza e prosperidade da nação”.
A intensa pressão para a volta de D. Pedro colocou Bonifácio definitivamente no protagonismo do processo de independência.
No início de 1822, envia uma carta ao príncipe em que conclama que “vossa alteza real deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das Cortes Constituintes, não só para nosso bem geral, mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal”.
Estava aberto caminho para o “fico” de D. Pedro.
Logo seria o início de um relacionamento próximo e também turbulento entre o jovem monarca e o experiente pensador político, de personalidades bem diferentes. Bonifácio seria escolhido como o ministro do Reino e Negócios Estrangeiros.
Poucos anos depois do 7 de setembro e da proclamação da independência, as pontes entre os dois ruiriam.
“A resistência da maioria dos deputados lusitanos em Lisboa em aceitar um governo com autonomia no Rio de Janeiro e o medo da fragmentação da América acabou por desembocar na independência e neste processo D. Pedro e Bonifácio caminharam juntos”, diz Dolhnikoff.
“Contudo, havia divergências fundamentais no interior da elite brasileira. Bonifácio defendia um projeto de reformas que considerava centrais para viabilizar o novo país, entre elas o fim do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Projeto rejeitado por praticamente toda a elite, que se articulou contra Bonifácio, pressionando D. Pedro a demiti-lo do ministério.”
Tempos finais
Em novembro de 1823, D. Pedro 1º fecha a constituinte na qual Bonifácio tentava incorporar seu projeto de país e é condenado ao exílio no sul da França.
Lá, aparece um Bonifácio amargurado e magoado pela traição do pupilo que ajudou a colocar no poder. “Estou tão acabrunhado que suspeito às vezes se deixei de ser animal racional. Estou em torpor, como os bichos da terra que só vegetam no inverno”.
Havia um gosto de derrota por não ter concretizado seus planos de dar a forma imaginada a uma nova nação.
Sustentava-se na França com uma pensão paga pelo governo brasileiro que dizia ser insuficiente e paga com atraso. Sofria também com problemas de saúde e o desejo de voltar a uma América com temperaturas mais elevadas.
O retorno ao Brasil se dá quando é nomeado tutor de D. Pedro 2º depois da abdicação do trono brasileiro pelo pai. Novamente, Bonifácio entra em choque com a classe política de então, é destituído da tutoria e colocado em prisão domiciliar na ilha de Paquetá – em mais um ostracismo.
Morreu em 1838, aos 74 anos, uma idade bastante avançada para a época.
“A trajetória de José Bonifácio foi mitificada uma vez que foi alçado à figura de patriarca da independência. Defendia reformas profundas, mas as defendia porque considerava que eram imprescindíveis para a viabilidade da nação e do Estado. No entanto, era um homem da elite branca do século 19”, afirma Dolhnikoff.
“José Bonifácio não era, nem pretendia ser, um liberal e um democrata, mas era, sem dúvida, um estadista de grande visão e um defensor do progresso”, diz José Murilo de Carvalho.