Pesquisas realizadas há 60 anos mostram como a opinião popular oscilou antes e depois do golpe que depôs João Goulart e instaurou a ditadura no Brasil. Segundo pesquisadores, mídia da época teve papel decisivo. Havia um clima de tensão em março de 1964. Entre os dias 20 e 30 daquele mês, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) foi às ruas de três cidades paulistas — São Paulo, Araraquara e Avaí — para medir a aprovação popular do presidente da República, João Goulart (1919-1976), o Jango.
Na capital paulista, apenas 19% o reprovavam — entre ruim e péssimo. Em Araraquara, eram 22% os descontentes e, em Avaí, apenas 10%. Os índices são de amostragens locais, porque naquela época institutos de pesquisa não tinham estrutura para grandes levantamentos nacionais. Mas revelam que, ao contrário do que a historiografia costuma dizer, Jango não era um político isolado e sem apoio popular. Em outras palavras: não parecia haver uma pressão do povo pela intervenção militar, a julgar pelos números.
Dados de pesquisas de opinião dos anos 1960 são de difícil acesso. Em geral, os levantamentos não eram realizados para serem publicados pela imprensa — eram feitos sob contratação de empresas, pessoas ou grupos políticos interessados, e utilizados como referência interna. Professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o historiador Rodrigo Patto Sá Motta vem há anos esmiuçando esses dados para tentar entender o ânimo político da população brasileira no período.
“A interpretação dessas pesquisas é complexa. Elas mostram que João Goulart era popular antes do golpe e que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a maior parte das pessoas aceitava bem a ideia de fazer reformas, inclusive reforma agrária”, comenta ele. “No entanto, pesquisas anteriores ao golpe mostram que havia uma forte rejeição à imagem da esquerda radical, em especial ao comunismo. Então, reforma era uma coisa, mas a experiência comunista era outra.”
No levantamento Ibope de 20 a 30 de março, apenas 7% dos paulistanos entrevistados afirmaram que as reformas de base de Jango não eram necessárias. Para 55% dos ouvidos, as últimas medidas do governo João Goulart eram “de real interesse para o povo e para o país”.
A mesma pesquisa também perguntou às pessoas o que elas achavam que o comunismo representava para o Brasil. Em São Paulo, 32% dos entrevistados afirmaram que era “um perigo imediato”, 36% que era “um perigo futuro” e apenas 19% acreditava não ser um perigo — 13% não souberam responder.
Oscilação
Após o deferimento do golpe, contudo, a opinião pública parece ter mudado. O Ibope ouviu paulistanos entre 12 e 22 de maio e perguntou se a deposição de Jango era benéfica ou prejudicial. Dos entrevistados, 54% classificaram como algo positivo, 20% como prejudicial e 26% declararam não saber — 70% dos ouvidos disseram acreditar que o Brasil tendia a melhorar após o golpe.
“As oscilações [de opinião], a gente não pode ignorar que o poder tem uma força gravitacional muito importante sobre elas e que as pessoas têm uma inclinação para apoiar governos fortes, caso eles não estejam, evidentemente, violentando as suas demandas, seus interesses”, analisa o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal Fluminense e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na mesma pesquisa, o instituto perguntou ao povo quais razões teriam levado à queda de Jango. Para 34%, o presidente havia sido deposto porque “estava levando o Brasil para um regime comunista”. Outros 17% disseram que ele “estava tomando medidas populares que contrariavam fortes interesses de grupos econômicos e financeiros, nacionais e estrangeiros”. Para 21% dos ouvidos, ele “pretendia fechar o Congresso para se tornar ditador”.
Mas, ao que parece, a população ainda entendia o regime de exceção como algo pontual e provisório. Em levantamento realizado na última semana de maio pelo Ibope no antigo estado da Guanabara e em São Paulo, respectivamente 80% e 77% dos ouvidos afirmaram que a melhor forma de escolha do presidente da República era por eleição direta. Em 13 de fevereiro de 1965, nova pesquisa perguntou se “a eleição para presidente deve ser realizada em 1966 como foi marcada” e esse ponto foi concordado por 75% dos entrevistados.
“Mesmo quem apoiava a queda de Goulart preferia o regime democrático. As pessoas não imaginavam que apoiar a derrubada de João Goulart significava apoiar uma ditadura”, comenta o historiador.
Para Motta, é importante ressaltar que “nem todo mundo via o Goulart como alguém envolvido ao comunismo, até porque isso não era nada óbvio, ele não tinha discurso radical de maneira alguma”. “O que aconteceu é que a direita golpista conseguiu colar em sua imagem o comunismo. Muita gente que gostava do Goulart foi convencida de que, se ele continuasse governando, poderia haver o risco de o comunismo tomar o poder no Brasil”, diz o historiador.
Já a mudança de opinião de parte da população, indicada pelas pesquisas, é vista pelo pesquisador como um sinal da influência da mídia. “Depois da derrubada do Goulart houve pressão dos discursos públicos que foram emitidos, principalmente pela imprensa, que publicou muitos artigos de que o Brasil havia sido salvo do comunismo, que a queda de Goulart era para salvar o Brasil do comunismo”, avalia.
O historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista, e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, lembra que havia uma polarização muito grande no Brasil do início de 1964, e isto era visível em eventos como o Comício da Central, realizado no Rio, e a primeira Marcha das Famílias, de São Paulo. “No interior do Brasil, no Brasil profundo [não captado pelas pesquisas], havia um apoio importante à intervenção militar”, argumenta ele.
Professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing, o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez lembra também do papel da mídia na construção dessa imagem de Goulart. “Os meios de comunicação o associaram ao comunismo, ao soviético. A imprensa fez tudo para colocar João Goulart como alguém que pudesse deixar em risco a propriedade, a família, mudar a cor da bandeira brasileira”, diz ele. “Grandes empresários e grupos religiosos acabavam influenciando a subjetividade da população e isso fez com que Goulart fosse demonizado pelas instituições […], se tornando uma espécie de governante maldito.”
Jango conciliador
O historiador Reis atenta para o fato de que muitos veem no apoio popular a Jango um motivo para tachá-lo de “covarde” por não ter empenhado uma resistência ao golpe. “Ele evidentemente tinha informação de seus níveis de popularidade. Mas não resistiu porque a luta aberta, o conflito armado, é alguma coisa muito contrária à orientação política conciliatória dele”, pontua. “O Jango herdou essa disposição conciliatória do [ex-presidente] Getúlio Vargas [(1882-1954)].”
“Isso não tem nada a ver com covardia ou com coragens individuais. É uma concepção política de que as coisas devem caminhar através da conciliação, do diálogo, da barganha. Isso faz parte da filosofia política do varguismo, da qual Jango é o principal herdeiro”, analisa Reis.
O historiador ressalta que o ex-presidente Goulart não deve ser encarado como “bode expiatório” da derrota ao golpe civil-militar.