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segunda-feira 14 de março de 2022 às 05:43h

Internet precária cria fosso de acesso à Justiça para população vulnerável

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A virtualização trouxe um paradoxo em relação ao acesso à Justiça. Por um lado, permitiu a participação de forma online de quem mora longe de fóruns e tribunais. Por outro, a má qualidade da internet comprometeu a utilização dos serviços do Judiciário.

A tecnologia para juízes, advogados e procuradores atenderem a distância ganhou ares de solução diante da pandemia da Covid.

“Essas medidas de inovação que surgem no contexto da pandemia, e que se disseminam em razão das necessidades dela, vieram para ficar”, diz Valter Shuenquener, secretário-geral do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

“Duvido que algum advogado aceitará o fim do Balcão Virtual ou do Juízo 100% Digital, porque isso gerou conforto e redução de despesa [ao eliminar a necessidade de despachar pessoalmente com juízes].”

O Balcão Virtual é uma ferramenta do Programa Justiça 4.0 que funciona como um balcão de atendimento a distância.

Já o Juízo 100% Digital —que também inclui o uso da ferramenta— prevê a tramitação processual de forma inteiramente digital, mediante o consentimento dos envolvidos. Com isso, audiências também passam a ser realizadas virtualmente.

Shuenquener, que também é juiz e durante a pandemia julgou casos de audiência de custódia, avalia que, apesar das dificuldades, é melhor que essas audiências aconteçam do que sejam paralisadas, sob o risco de deixar pessoas presas sem necessidade.

“Presidi uma audiência em um domingo e, se eu não pudesse fazer por vídeo, na melhor das hipóteses, a audiência seria na segunda-feira em horário de expediente. Essa pessoa ficaria pelo menos mais um dia presa. Determinei a soltura do réu no domingo mesmo.”

As audiências de custódia em formato virtual não proíbem que os defensores públicos estejam fisicamente junto de seus assistidos. O réu é levado ao fórum para que participe da audiência virtual.

A resolução 329/2020 do CNJ estabelece que as audiências de custódia por vídeo são legais. O preso tem direito de falar com o advogado em particular por qualquer meio possível e de ser acompanhado por seu defensor durante a audiência.

O ambiente durante a audiência deve ser filmado por meio de câmeras de 360 graus ou pelo uso de mais câmeras que possibilitem ver todo o local, bem como a parte de dentro e de fora da porta da sala. Exame de corpo de delito é obrigatório antes do julgamento da custódia.

Ativistas e organizações de defesa dos direitos humanos, porém, afirmam que a Justiça, já considerada elitista, distanciou-se ainda mais de pessoas em situação vulnerável.

Mara Campos, 57, diz que vivenciou isso, em janeiro de 2021, após a detenção do filho mais velho —preso há um ano, segundo ela, após uma sacola com vidros de lança-perfume ser deixada no carro dele sem autorização.

A mãe diz que não houve audiência de custódia e que o julgamento foi feito de forma virtual, sem espaço para que ela pudesse esclarecer os fatos. Mara conta que o filho já havia cumprido pena por tráfico de drogas e que o histórico foi usado contra ele.

“Ele está preso e pegou seis anos. Meu filho já tinha mudado de vida e não teve como se defender”, disse.

O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) diz que os magistrados têm independência em suas decisões e que discordâncias podem ser manifestadas por meio de recursos.

Sobre a audiência de custódia, a corte informou que elas foram suspensas em razão da pandemia, mas que, mesmo assim, os juízes realizam as análises das prisões em flagrante normalmente, após as manifestações da acusação e da defesa.

Em relação ao depoimento de Mara no julgamento, o tribunal informou que a defesa não a colocou como testemunha no processo.

Antônia Mendes de Araújo, 44, que atua no Fórum Justiça Ceará, uma organização de direitos humanos, é professora e trabalhou como ouvidora externa da Defensoria Pública do estado de 2019 a 2021.

Ela afirma que houve um aumento da demanda pelos serviços da Defensoria com o início dos atendimentos virtuais, mas também muita dificuldade no acesso de pessoas que não tinham internet nem conhecimento sobre como fazer um download.

“Começamos a perceber que as audiências virtuais não estavam acontecendo porque muitas vezes os assistidos não tinham o equipamento, espaço no celular, não sabiam baixar aplicativos. O que a Defensoria fez? Abriu uma sala de atendimento para essas pessoas”, acrescenta.

O mesmo problema se repetiu no Acre, com pessoas com dificuldade para acessar o Judiciário por conta da conexão precária, conta a ouvidora da Defensoria, Solene Costa, 48.

“O fato de as pessoas terem o smartphone não quer dizer que tenham acesso à internet. Ela tem acesso ao WhatsApp, mas é limitado”, afirma.

No Rio Grande do Sul, o presidente da associação de defensores públicos do estado, Mário Rheingantz, estudou as audiências virtuais criminais no mestrado e destaca que a conversa entre o assistido e o defensor é totalmente diferente dos atendimentos presenciais.

“Ainda que em um grau inconsciente, o nível de confiança em uma conversa que acontece em um ambiente virtual é menor.”

Rheingantz diz ainda que a comunicação não verbal também foi prejudicada porque o que acontece na sala de audiência pode revelar situações que dificilmente seriam traduzidas e que podem ser importantes para a decisão judicial.

A dificuldade de acessar a internet prejudica o acesso à Justiça.

Segundo uma pesquisa do CGI (Comitê Gestor da Internet no Brasil), o número de pessoas com acesso à internet no país aumentou 9% em 2020 com relação ao mesmo período em 2019, chegando a 152 milhões de usuários com dez anos de idade ou mais.

Parece bom, mas não é bem assim. Isso porque 9 em cada 10 usuários das classes D e E (que ganham até quatro salários mínimos) acessam a internet pelo celular.

Frank William La Rue, especialista em direito do trabalho e relator especial da ONU para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão de 2008 a 2014, é referência na análise do que chama de hiato digital: a diferença entre aqueles que têm acesso às tecnologias e à informação e aqueles que têm acesso limitado.

É o caso de Joana (nome fictício), 36, cujo filho de 15 anos foi preso depois de ser atropelado por uma viatura da Polícia Militar após supostamente participar de um assalto.

A mãe afirma que o garoto teria sido enganado por um outro mais velho e que a própria vítima disse que o jovem não havia participado do assalto. O filho teve fratura exposta e foi socorrido, e o assaltante fugiu.

Joana não tem fácil acesso à internet e mora muito longe do centro de São Paulo, onde fica o escritório de advocacia que cuidou do seu caso sem cobrar nada.

“São quatro horas de ida e quatro de volta”, diz sobre o trajeto que faz diariamente para chegar à casa onde trabalha como doméstica. A advogada que assumiu o caso é amiga da empregadora de Joana.

Durante o trabalho, ela parava para falar com a advogada vez ou outra porque o sinal na casa da patroa nunca falhou. “Eles [empregadores] me deram todo o apoio, disseram que eu podia levar o tempo que precisasse se me ligassem.”

Durante os cinco dias em que seu filho esteve no hospital e na Fundação Casa aguardando a audiência de custódia, Joana diz que passou cerca de três horas diárias em um terreno a céu aberto ao lado de sua casa porque era o único lugar em que o sinal da operadora de celular funcionava.

Para participar da audiência virtual, ela precisou ir ao escritório dos advogados. Apesar disso, Joana diz preferir o formato virtual.

“Só de não ter que estar ali, no meio de todo mundo. Você já está passando pelo que está passando, né? Pela internet é bem melhor”, disse.

O filho de Joana foi liberado para responder ao processo em liberdade e está em casa com a família. Ele ainda anda com dificuldade, embora a perna tenha desinchado. O julgamento está marcado para março, mas ainda não há previsão sobre se será virtual ou presencial.

A Folha tentou contato com a Defensoria Pública do Acre, mas não houve resposta até a conclusão da reportagem.

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