Os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) só podem fornecer dados à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) quando for demonstrado o interesse público — e isso não pode ser feito para atender a interesses privados. Todas as requisições de informações devem ser motivadas, para controle de sua legalidade pelo Judiciário. Mesmo quando houver interesse público, informações bancárias, fiscais e telefônicas dependem de autorização judicial para ser compartilhadas. E nas hipóteses de repasse de dados à Abin, deverá haver procedimento e registros para responsabilização em caso de irregularidades.
Essa é a interpretação conforme à Constituição conferida pela maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal, por liminar, nesta última quinta-feira (13), ao parágrafo único do artigo 4º da Lei 9.883/1999.
O dispositivo estabelece que “os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência fornecerão à Abin, nos termos e condições a serem aprovados mediante ato presidencial, para fins de integração, dados e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais”.
Na ação direta de inconstitucionalidade, PSB e Rede Sustentabilidade argumentam que o dispositivo possibilita o desvirtuamento de finalidade da Abin, uma vez que o poder requisitório de informações e dados de todos os integrantes do Sisbin depende de regulamentação pelo presidente da República. O Decreto 10.445/2020 deixou de restringir as hipóteses de requisição de informações no âmbito do Sisbin pela agência. Segundo os partidos, com a mudança, basta uma requisição para que o diretor-geral da Abin tenha conhecimento de informações sigilosas. O advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Jr. sustentou que o decreto trata apenas da estrutura regimental da Abin.
A relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, afirmou que a atividade de inteligência é “muito grave” e precisa de cuidados adicionais, avaliou a ministra. Dessa maneira, é preciso, de um lado, preservar os direitos fundamentais, e, de outro, cumprir os deveres do Estado. Assim, os dados requisitados pelos integrantes do Sisbin devem ter interesse público e justificação específica. E a troca de informações depende de requisição, não podendo ser automática.
De acordo com a ministra, o fornecimento de informações para defesa de instituições e interesses nacionais é legítimo desde que respeite os direitos fundamentais. E o agente que solicita e obtém informações de pessoas fora dos estritos limites da legalidade comete crimes, destacou Cármen.
“A sociedade não é refém do voluntarismo de governantes. O abuso da máquina estatal para o atendimento de interesses pessoais é antidemocrático e não existe no Direito brasileiro. Os mecanismos legais de compartilhamento de dados e informações servem para atender o interesse público, não interesses privados em espaço público. Estes são inválidos e inconstitucionais”, disse a ministra.
Dessa forma, a magistrada votou para deferir parcialmente a medida cautelar para dar interpretação conforme a Constituição ao parágrafo único do artigo 4º da Lei 9.883/99 para estabelecer que:
a) os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência somente podem fornecer dados e conhecimentos específicos à Abin quando comprovado o interesse público da medida, afastada qualquer possibilidade desses dados atenderem interesses pessoais ou privados;
b) toda e qualquer decisão que solicitar os dados deverá ser devidamente motivada para eventual controle de legalidade pelo Poder Judiciário;
c) mesmo quando presente o interesse público, os dados referentes às comunicações telefônicas ou dados sujeitos à reserva de jurisdição não podem ser compartilhados na forma do dispositivo em razão daquela limitação, decorrente do respeito aos direitos fundamentais; e
d) nas hipóteses cabíveis de fornecimento de informações e dados à Abin é imprescindível procedimento formalmente instaurado e a existência de sistemas eletrônicos de segurança e registro de acesso, inclusive para efeito de responsabilização, em caso de eventuais omissões, desvios ou abusos.
Proteção de dados
O voto da relatora foi seguido pelos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. O item “d” da decisão foi incluído após sugestão de Barroso e Toffoli.
Após criticar os aparatos de espionagem do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura militar (1964-1985), Fachin afirmou que o Brasil vivencia um “cenário de ausência de protocolos mínimos na proteção de dados, com dossiês investigativos contra servidores públicos e cidadãos de oposição”. E isso “deve gerar preocupação”, disse. Segundo o ministro, o Sistema Brasileiro de Inteligência deve preservar a soberania nacional, o Estado Democrático de Direito e a dignidade humana.
Fux, por sua vez, informou que na maioria dos países os serviços de inteligência ficam submetidos a uma autoridade autônoma independente, e não ao Executivo, como ocorre no Brasil.
Já Gilmar Mendes ressaltou a importância da proteção de dados, que tem o objetivo de valorizar a dignidade humana, resguardar a intimidade e assegurar o Habeas Data. Para o ministro, o processamento de informações pessoais pelo poder público deve perseguir uma finalidade legítima e proporcionalmente compatível.
Voto vencido
O ministro Marco Aurélio divergiu da relatora. A seu ver, o dispositivo não contraria a Constituição Federal.
O vice-decano da corte também não enxergou urgência a justificar a concessão de liminar. Isso porque a Lei 9.883/1999 está em vigor há 21 anos.