Uma esperada revolução começa a ocupar os consultórios e hospitais de referência em cardiologia globalmente: trata-se do uso de ferramentas que contam com inteligência artificial para avaliar exames com mais precisão ou orientar procedimentos de tratamento.
Segundo Mariana Rosário, do O Globo, essas novidades, em geral, partem de processos já usados e bem estabelecidos na prática médica, mas que com as novas funcionalidades — que levam em conta a capacidade de softwares de interpretar sons e imagens junto de seus desfechos para a saúde— ajudam os médicos a tomar decisões mais certeiras e embasadas.
Com o esperado avanço dessas ferramentas, e, claro, o devido rigor dos pacientes em seguir as orientações clínicas, é possível esperar um futuro em que os ataques cardíacos, e outros problemas semelhantes, sejam mais detectáveis e ainda mais tratáveis, explicam os especialistas. Uma das ferramentas disponíveis recebeu o importante aval da Food And Drug Administration (FDA), a reputada agência reguladora dos Estados Unidos, no começo do ano.
O produto em questão é um estetoscópio com capacidade de interpretar se as batidas do coração estão fracas, avaliando tanto o som quanto a atividade elétrica do órgão. O item foi teve desenvolvimento acompanhado pela Mayo Clinic em parceria com uma empresa privada e chama-se Eko. Antes da chegada desse apetrecho, o time de pesquisadores da Mayo Clinic observava se era possível adaptar o corriqueiro exame de eletrocardiograma para o mesmo diagnóstico. E foi.
— Com esses modelos de IA é possível dar indicativos clínicos e colher informações que você não conseguiria normalmente. Focamos inicialmente em eletrocardiogramas de 12 derivações, um exame amplamente usado em todo mundo, mas que não diz se as batidas do coração estão fracas (um indicador de insuficiência cardíaca). E esse é um diagnóstico muito importante porque atinge cerca de 2% da população, o que salta para 9% em pessoas acima de 60 anos — diz Paul Friedman, professor e presidente do departamento de medicina cardiovascular da Mayo Clinic, em Minnesota (EUA). — Com o desenvolvimento, foi possível adicionar à análise um novo diagnóstico desconhecido do paciente ou do médico, que é justamente essa batida fraca do coração.
Uma nova análise com o mesmo estetoscópio dá pistas de que esse tipo de inovação pode tornar-se útil para acessar países de baixa renda ou que tenham dificuldades em realizar exames. Publicada no periódico Nature, o estudo levou em conta a saúde de 1.200 mulheres grávidas na Nigéria. Com ele, foi possível identificar duas vezes mais cardiomiopatias nessas pacientes, quando comparado com exames regulares feitos até agora.
Esses diagnósticos poderiam ser difíceis de realizar porque os sintomas desse problema de saúde, diz Paul Friedman, se confundem com outras queixas relacionadas à gravidez, como cansaço e palpitações. É possível, inclusive, esperar que o sistema do estetoscópio seja treinado para identificar outras doenças. Desde que passe por testagens para esse novo trabalho.
— O Eko foi desenvolvido para gravar sinais do coração, como sons e (realizar) ecocardiogramas. Não foi pensado para identificar uma única doença. Há outros algoritmos que podem ser testados nele, mas é claro que tudo isso precisa ser estudado — afirma o médico.
Tomografia e cirurgia
No Reino Unido, o sistema nacional de saúde (NHS) iniciou um programa piloto para incluir uma nova funcionalidade a exames de imagem. Com a nova análise, testada pela Universidade de Oxford, será possível prever em até uma década antes se aquele paciente em questão tem risco de sofrer um ataque cardíaco. A análise faz adaptações em tomografias, as chamadas angiotomografias coronarianas, para observar áreas não visíveis em regiões perivasculares, ao redor das artérias.
— Essas informações estão relacionadas à gordura que circunda os vasos e podem fornecer uma métrica muito precisa da inflamação das artérias do coração. Quanto mais inflamação tivermos, maior será o risco de um ataque cardíaco nos próximos anos — diz Charalambos Antoniades, professor da Universidade de Oxford e líder do grupo responsável por estudar o sistema em larga escala. — Em seguida, usamos um algoritmo de IA complexo que integra essas informações com vários outros tipos de dados extraídos dos exames para fornecer o risco absoluto de um ataque cardíaco nos próximos 10 anos. Essa tecnologia foi desenvolvida usando dados dos EUA e, em seguida, foi validada na Europa e no Reino Unido, mostrando que ela realmente previu quase todos os ataques cardíacos que aconteceram mais de uma década após o exame.
Estima-se que, ao usar essa tecnologia, o NHS, diz o professor Antoniades, registrará 11% menos ataques cardíacos, 12% menos mortes, 4% menos novas insuficiências cardíacas e 4% menos derrames. A ferramenta, no estudo de Antoniades e que levou em conta 40 mil pacientes, mudou o tratamento de 45% dos participantes da análise.
— É um grande desenvolvimento na cardiologia preventiva. Isso ocorre porque ele pode prever ataques cardíacos que vão acontecer, mas com muitos anos de antecedência, mesmo quando todos os testes convencionais (até mesmo a interpretação atual das próprias tomografias) não mostram sinais de doença cardíaca — antecipa.
Caminho luminoso
Marcos Queiroz, diretor de medicina diagnóstica, e Gilberto Szarf, coordenador da área de radiologia, ambos do Hospital Albert Einstein, acompanham de perto essas inovações e dizem que o centro de saúde planeja dedicar-se a alguma funcionalidade semelhante em breve.
— Tratar um paciente com insuficiência cardíaca, por exemplo, é muito caro. Trabalhar com a prevenção também faz sentido financeiramente. Isso sem contar todo o aspecto humano, para aquele paciente — diz. Szarf. — Essas ferramentas nos dão uma capacidade enorme de encontrar pessoas que precisam ser tratadas.
Na área do tratamento, o Brasil também estuda soluções. No Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, a cirurgia de angioplastia com stents — pequenos dispositivos para desobstruir artérias — tem sido realizada com a ajuda de um modelo de IA cuja função é prever com alta precisão, ao receber informações de um cateter, onde é o melhor ponto para a aplicação do stent. A técnica, vale dizer, é absolutamente dominada pelos especialistas há décadas e, tem na nova ferramenta, um tipo de colaborador ao cirurgião.
A tecnologia de imagem foi desenvolvida pela Abbott e o Brasil foi o primeiro país latino a usá-la.
— A ferramenta demonstra a quantidade de cálcio e gordura no segmento daquela artéria. Quando ela te define isso, inclusive numericamente, é possível ver exatamente (em milímetros) onde é indicado colocar o stent. Essa funcionalidade é capaz de exibir que área da artéria precisa ser protegida — diz Alexandre Abizaid, diretor de cardiologia intervencionista do InCor. — Esse aparelho ainda é capaz de falar o potencial de expansão do stent. Indica ainda se você pode fazer expansões maiores, o que leva a menos chances de trombose na prótese ou do retorno da lesão.
Abizaid lembra, porém, que a possibilidade de ocorrer uma trombose em um procedimento como esse não chega a 2%. Para os pacientes nas quais ocorrem, porém, as consequências podem ser catastróficas. Daí a importância de um avanço tecnológico do tipo — embora a angioplastia feita atualmente, mesmo sem IA, seja de alta taxa de efetividade.
Roberto Kalil, presidente do conselho diretor do InCor, porém, faz um alerta: a despeito de todo avanço tecnológico de ponta, há uma estratégia absolutamente estabelecida para manter-se longe de cardiopatia por décadas, trata-se do rigor em manter uma rotina saudável e, claro, ouvir o aconselhamento médico.
— Não podemos esquecer que a grande arma para diminuir a mortalidade segue sendo a prevenção. Diabetes, colesterol alto, hipertensão precisam ser tratados. Além de não fumar e fazer exercícios — afirma. — Além disso, os diagnosticados precisam aderir ao tratamento.