Número de brasileiros que fizeram pedido de residência em Portugal subiu 36% no último ano
A advogada brasileira Márcia Alcantara, de 41 anos, foi transferida pela empresa no qual trabalha para Portugal em agosto.
Todos os custos da mudança foram pagos pela companhia, e um serviço de realocação foi contratado para ajudá-la a achar um lugar para morar com seu marido e dois filhos.
Mas, apesar de todo esse apoio, Márcia ficou com uma péssima lembrança do dono de um dos imóveis em que tinha interesse.
“Quando a pessoa que estava me ajudando a achar apartamento, uma portuguesa muito experiente, disse que era para uma cliente do Brasil, ele simplesmente começou a se exaltar”, conta Márcia.
“Ele disse que não alugava apartamentos para brasileiros, que são todos ‘fanfarrões’ e barulhentos, que colocam muitas pessoas na casa porque não têm condições, etc.”
Márcia conta que a assessora portuguesa então explicou calmamente que o proprietário estava enganado e que sua cliente era uma advogada casada e com filhos que tinha um contrato de trabalho fixo.
“Ao receber essas informações, ele se acalmou um pouco e tentou voltar atrás, se explicar, mas aí quem não quis nem ver a casa fui eu, tamanho foi o desrespeito sem nem ao menos saber sobre minha história.”
Brasileiros que têm atravessado o Atlântico para começar uma nova vida em Portugal têm encontrado essa mesma dificuldade na hora de buscar um lugar para morar.
A corretora brasileira Amanda Barreto Mello, que trabalha com venda e aluguel de imóveis em Portugal desde 2015, diz que já ouviu claramente de donos de imóveis que eles não gostariam de alugar para brasileiros.
“Em uma das vezes, a proprietária disse: ‘Não quero pretos e nem brasileiros! Não sou preconceituosa, mas tive más experiências’.”
Embora não haja dados oficiais de denúncias feitas a órgãos de governo, as reclamações de brasileiros rejeitados como inquilinos, em alguns casos com alguma dose de xenofobia, são relatadas com frequência em grupos e perfis em redes sociais.
Quando Paloma Guedes, da BBC News Brasil, perguntou a brasileiros que vivem em Portugal em grupos no Facebook se alguém já havia passado por problemas ou sofrido xenofobia dos proprietários, a maioria das respostas foi que sim.
“A pergunta é: quem não teve dificuldade?”, disse um usuário.
Outro afirmou: “Se alguém passou ou tá passando? É melhor perguntar quem não passou!”.
Mas uma usuária argumentou que o comportamento dos conterrâneos também não ajuda.
“Muitos brasileiros estragam os imóveis, fora as músicas altas e gritarias. Digo isto porque foi um próprio senhorio que disse.”
Esses motivos são apontados com frequência por donos de imóveis ao recusar potenciais inquilinos brasileiros, diz a corretora Amanda Barreto Mello.
“O que sempre ouvi, de forma geral, é que os brasileiros fazem mais barulho, escutam música alta e colocam mais pessoas em casa do que foi dito inicialmente”, afirma.
Amanda acrescenta que “a falta de fiador, não ter a declaração do imposto de renda e não ter um contrato de trabalho são, sem dúvidas, as maiores dificuldades que os brasileiros têm na hora de alugar um imóvel aqui em Portugal”.
A corretora portuguesa Ana Aires Pereira argumenta que as dificuldades enfrentadas por brasileiros para alugar uma casa ou apartamento estão mais ligadas a questões financeiras e burocráticas do que à sua nacionalidade.
“As dificuldades que os brasileiros têm são as mesmas de todos os que não têm como provar os seus rendimentos ou não têm histórico suficiente para dar as garantias que os senhorios solicitam, inclusivamente os portugueses”, diz.
As exigências são feitas pelos proprietários para diminuir o risco de receber um calote e passam pelo pagamento adiantado de três aluguéis e duas cauções e apresentação de fiador e de contrato de trabalho sem data para terminar.
“São condições difíceis de reunir em simultâneo para quem procura alugar um imóvel e acabou de chegar do estrangeiro”, afirma a corretora.
“Os proprietários não discriminam pela nacionalidade do locatário, mas pela falta de dos requisitos que determinaram.”
Demanda de brasileiros por imóveis em Portugal em alta
A demanda por imóveis em Portugal por brasileiros é grande e vem aumentando.
Segundo dados do governo português, até outubro deste ano, foram contabilizados 392.757 brasileiros com manifestação de interesse para moradia no país.
Esse é um documento necessário para a regularização dos estrangeiros que desejam viver em Portugal.
Em 2022, o número era 239.744, ou seja, a quantidade de brasileiros que entraram com pedido de residência aumentou em 36% em um ano.
Desses quase 400 mil, 153 mil finalizaram o processo e possuem residência portuguesa.
Esses números levam em conta quem tem contrato de trabalho, visto de estudante e preenche outros requisitos do governo.
Não é possível contabilizar o número real contando com as pessoas que moram ilegalmente no país.
O português Antonio Valente investe em imóveis e aluga vários deles por inteiro ou apenas quartos individuais para garantir uma renda mensal.
“Como só alugo casas muito pequenas, o mercado destas casas são os estrangeiros, e desde que tenham documentação, trabalho, rendimentos compatíveis com o valor da renda e fiador, continuo a alugar a todos, inclusive a brasileiros”, diz.
Mas, em seguida, Antonio relata experiência ruins que teve com alguns de seus inquilinos do Brasil.
“Existem boas e más experiências, como em tudo. Tive alguns problemas com pagamentos com brasileiros que fugiram sem pagar, e um deles destruiu a casa”, conta.
“Os brasileiros não respeitam as tradições portuguesas. Fazem barulho, colocam um excesso de pessoas no imóvel, e isso cria autodefesas dos proprietários.”
Esse mesmo argumento sobre o comportamento dos inquilinos também foi usado para Bruna Dutra, de 37 anos.
Ela trabalha com realocação há quase dois anos e já escutou de portugueses que abertamente não aceitam brasileiros que tiveram experiências ruins.
“Quando dizem que não aceitam brasileiros, justificam que alugaram para um casal e eles destruíram o imóvel, ou para duas pessoas e colocaram lá dez.”
Bruna, que é brasileira, também sentiu na pele o preconceito quando fazia seu trabalho.
“Tive uma única situação onde telefonei a um corretor para perguntar se o imóvel estava disponível e ele, ao identificar meu sotaque, disse: ‘Está disponível, entretanto eu não tenho tempo para lhe ouvir. Com licença!’ e desligou”.
Ela então falou com o gerente da empresa e recebeu um pedido de desculpas formal.
‘É difícil denunciar porque situações são sutis’
Mas, geralmente, não há “pedido de desculpas” ou qualquer retratação, diz Ana Paula Costa, de 30 anos, vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa (CBL).
A associação de imigrantes sem fins lucrativos promove ações para ajudar na integração de quem vem de fora na sociedade portuguesa.
Segundo Costa, a CBL recebe várias queixas de xenofobia, inclusive na questão da moradia, mas ela diz ser complicado levar adiante, em termos jurídicos, essas denúncias.
“Normalmente, é difícil denunciar porque muitas vezes essas situações são sutis”, afirma.
“O preconceito não fica claro, mas você precisa comprovar que aquilo aconteceu. Pode até ter testemunha, mas acaba sendo sempre a palavra de quem discrimina contra a de quem foi discriminado.”
No entanto, a corretora Amanda Barreto Mello diz que tem notado nos últimos anos uma mudança da mentalidade dos donos de imóveis de Lisboa, onde trabalha.
“Muitos brasileiros de classe média, classe média alta, doutorandos, empresários começaram a vir para cá e notamos que houve uma ‘melhor aceitação’.”
A BBC News Brasil procurou a Associação Nacional dos Proprietários (ANP) para comentar sobre a resistência de proprietários portugueses a inquilinos brasileiros e a quantidade de brasileiros que alugam imóveis em Portugal.
A associação respondeu que “não pode se pronunciar sobre esse assunto pela falta de dados”.
Há relatos em que a desconfiança ou o preconceito persistem mesmo depois de o negócio ser fechado.
Uma brasileira de 26 anos, que prefere não se identificar, diz que ficou traumatizada pela forma como foi tratada por uma proprietária angolana no primeiro apartamento que alugou logo que chegou a Portugal.
“Ela falava sobre o meu jeito de vestir, sobre o que eu cozinhava, sobre o que eles viam na TV e no noticiário sobre as brasileiras, sobre como as pessoas de Portugal nos enxergavam e como eu deveria me portar” diz.
A brasileira conta que a senhoria morava embaixo do seu apartamento e subia sempre para “fiscalizar” o que ela estava fazendo.
“Ela controlava o tempo do meu banho, falava que era absurdo que durasse 15 minutos, me tratava como burra por ser brasileira”, desabafou.
Em casos como esse, ou qualquer outro de xenofobia, os brasileiros devem procurar a Comissão Para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), órgão do governo português, para fazer a denúncia por meio do site ou da Linha de Apoio ao Migrante.