Maria Quitéria estava em casa, na fazenda Serra da Agulha, quando representantes do Conselho Interino da Província bateram à porta de seu pai, o fazendeiro Gonçalo Alves de Almeida, para recrutar soldados. O viúvo explicou que não tinha filhos com idade para servir, nem enviaria escravos para o campo de batalha. E mais: ele próprio estava muito velho para lutar pela Independência do Brasil. Era setembro de 1822.
Assim que os emissários foram embora, sua filha pediu permissão para se alistar. “Mulheres fiam, tecem e bordam. Não vão à guerra”, resmungou o pai. Maria Quitéria não aceitou o ‘não’ como resposta. Correu até a casa da irmã, que lhe emprestou o uniforme do marido. A jovem, então, cortou o cabelo bem curto, vestiu a farda militar do cunhado e, sob a alcunha de ‘Soldado Medeiros’, foi se apresentar ao comando de Cachoeira.
O pai, ao notar o desaparecimento da filha, saiu à sua procura. Logo, a encontrou entre os oficiais da infantaria. Mesmo depois de ter seu disfarce revelado, não abandonou o Exército. Ela integrava o Batalhão dos Periquitos, apelido dado ao regimento que usava uniforme com verde e amarelo nos punhos e na gola. Entre outras proezas, a moça-cadete capturou prisioneiros entre as tropas portuguesas durante uma batalha em Itapuã.
“No dia 1º de abril de 1823, ao lado de outras mulheres, Maria Quitéria, com água quase até o pescoço, avançou em direção a uma barca portuguesa e impediu o desembarque dos que não reconheciam a Independência”, descreve o jornalista Eduardo Bueno, autor de Dicionário da Independência — 200 Anos em 200 Verbetes. “Dom Pedro I a condecorou com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”.
Terminada a guerra, Maria Quitéria voltou para casa. Meses depois, se casou com o agricultor Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha, Luísa Maria da Conceição. Morreu em 1853, aos 61 anos, quase cega e sem dinheiro. Quanto ao seu pai, ele nunca a perdoou por tê-lo desobedecido.
Mulheres à frente de seu tempo
O nome de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) não pode faltar em nenhuma antologia que se propõe a resgatar grandes personagens femininos da História do Brasil. Como o recém-lançado Independência do Brasil — As Mulheres que Estavam Lá, organizado por Heloísa Starling e Antonia Pellegrino.
A obra apresenta a biografia de sete autênticas heroínas, como Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748-1828), Bárbara de Alencar (1760-1832), Urânia Vanério (1811-1849), Maria Felipa de Oliveira (1800-1873), Maria Leopoldina (1797-1826) e Ana Lins (1764-1839), além de Maria Quitéria.
“As mulheres reunidas neste livro têm um traço em comum: elas assumiram protagonismo e decidiram agir politicamente em público, o espaço por excelência da política, um espaço rigorosamente proibido para uma mulher”, explica a historiadora e cientista política Heloísa Starling. “Seja no Brasil, seja na Europa, as mulheres atuavam confinadas em casa. Podiam ganhar a vida com o próprio trabalho ou, então, sustentar maridos. Mas, de jeito nenhum, podiam reivindicar voz pública, visibilidade e participação política”.
Coordenadora do Projeto República, núcleo de pesquisa, documentação e memória do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloísa acrescenta que as sete personagens do livro levaram a sério um projeto de Independência para o Brasil. E viveram esse projeto de diferentes maneiras, partiram de patamares sociais desiguais e atuaram de forma diversa.
Algumas empunharam armas. Outras se engajaram no ativismo político. Outras, ainda, fizeram uso da palavra escrita no debate público. Mas, todas recusaram o lugar subalterno que lhes era reservado. “Até hoje, sabemos pouco ou quase nada sobre a história dessas mulheres e o modo como se posicionaram na cena pública brasileira durante a Independência. Seu protagonismo continua ignorado. A vedação ao acesso da mulher ao mundo público foi de tal forma enraizada na sociedade que se mantém no centro da desigualdade de gênero até hoje. Para as mulheres brasileiras, a fronteira da política foi e continua sendo a mais difícil de transpor”.
Uma mulher entre os inconfidentes
Além de organizar a obra, Heloísa Starling assina o capítulo dedicado à mineira Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, a única mulher a participar da Conjuração Mineira, em 1789, um dos principais movimentos separatistas do Brasil Colônia, que abre a antologia.
Filha de um rico casal de portugueses, Hipólita se casou tarde, por volta dos 33 anos, com o coronel Francisco de Oliveira Lopes, amigo do alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), o Tiradentes. “Pouco se sabe sobre essa mulher, mas uma coisa salta aos olhos: era destemida. Quando a notícia da prisão de Tiradentes chegou à fazenda da Ponta do Morro, na noite de 20 de maio de 1789, Hipólita decidiu, sozinha, levar a revolta adiante. Tudo indica que partiu dela a ordem de dar início ao levante militar”, afirma Heloísa Starling.
Hipólita escreveu cartas para o marido e demais inconfidentes, relatando a prisão de Tiradentes e denunciando a traição de Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819). Pedia a todos que tomassem cuidado e lembrava a eles que estavam lutando por algo maior. “Quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas”, dizia a carta. “Mais vale morrer com honra do que viver com desonra”.
Em 19 de abril de 1792, seu marido foi condenado ao exílio na África, onde morreu. Hipólita, então, teve seus bens confiscados. No entanto, argumentou que boa parte de seu patrimônio tinha sido herança paterna. Ao fim de uma longa batalha, que durou até 1795, conseguiu reaver sua fortuna.
“Ao se colocar como exímia negociadora e competente administradora, Hipólita rompeu com a imagem de mulher submissa”, afirma a jornalista Duda Porto de Souza, coautora de Extraordinárias — Mulheres Que Revolucionaram o Brasil. “Por um lado, Hipólita se mostrou implacável na defesa de seu patrimônio. Por outro, se revelou generosa ao distribuir parte dele entre os mais pobres da região”.
As sentinelas da Ilha de Itaparica
Duas das heroínas do livro lideraram revoltas populares: Maria Felipa de Oliveira, na Ilha de Itaparica, na Bahia, e Bárbara de Alencar, em Crato, no Ceará. “Não se sabe ao certo se Maria Felipa de Oliveira, negra da ilha de Itaparica, era escrava, se foi alforriada ou se nasceu livre”, observa a jornalista Aryane Cararo, coautora de Extraordinárias. “Como se voluntariou para lutar contra os portugueses, a opção mais provável é a última”.
Maria Felipa era marisqueira (vendedora de frutos do mar) e liderou as Vedetas da Praia. Armadas de facas, arpões e peixeiras, emboscavam os soldados da Coroa que mal atracavam nas imediações da Ilha de Itaparica. Às vezes, surravam os portugueses com galhos de cansanção, arbusto espinhoso que provoca úlcera e coceira. Outras, ateavam fogo em suas embarcações com tochas feitas de palha de coco e chumbo.
“Embora suas habilidades como guerreira sejam cantadas em prosa e verso, é necessário destacar seus predicados como comerciante e navegadora numa guerra em que as questões ligadas ao abastecimento de comida foram determinantes para os portugueses abandonarem a derradeira batalha de 2 de julho de 1823, em Salvador, escapando pelo mar. Eles não tinham mais o que comer”, revela a escritora Cidinha da Silva. “Segundo registros históricos, morreram mais soldados vitimados pela fome e por doenças do que por balas”.
Violência política de gênero
Filha de mãe indígena e pai português, Bárbara de Alencar tinha 57 anos quando, em maio de 1817, conduziu a multidão da cidade de Crato, a 508 km de Fortaleza, até a Câmara Municipal. Acompanhada de seus filhos, familiares e outros combatentes, todos homens, retirou a bandeira da Coroa Portuguesa e hasteou outra, branca, símbolo dos republicanos, em seu lugar. Não satisfeita, ainda destituiu seus membros e nomeou novos representantes que aboliram impostos, soltaram presos e confiscaram armas e bens dos portugueses.
Acusada de traição, rebeldia e resistência à prisão, Bárbara foi mandada para a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, na capital cearense. De lá, foi transferida para prisões no Recife e em Salvador. Foi solta, quatro anos depois, em 17 de novembro de 1821, graças a um decreto de Dom João 6º que anistiou presos políticos.
“Bárbara de Alencar sabia que poderia ser punida com pena de morte. No entanto, suas convicções eram maiores que seus medos. Ousada e corajosa, é considerada a primeira presa política brasileira. E, por mais brutal que tenha sido o cárcere, ela não se intimidou. Continuou fiel aos seus ideais revolucionários. Tanto que, anos depois, participou também da Confederação do Equador”, destaca a roteirista Antonia Pellegrino.
Além de ser a primeira mulher presa por suas convicções políticas, Bárbara de Alencar entrou para a História também como a primeira vítima de violência política de gênero no Brasil. Ao ser presa, foi acusada de amasia (concubinato) por causa de sua amizade com o vigário-geral do Crato, Padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, e perdeu todos os seus bens. Dizia-se até que José Martiniano, o caçula de seus cinco filhos, seria dele. “A acusação de amasia tinha por objetivo difamar a única mulher que participou da Revolução de 1817 para que ela não servisse de exemplo para nenhuma outra que tivesse aspiração política”, afirma a roteirista.
Maria Felipa morreu em 4 de janeiro de 1873, em local desconhecido, aos 73 anos. E Bárbara de Alencar em 28 de agosto de 1832, na fazenda Alecrim, no Piauí, aos 72. Seu corpo foi sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Itaguá, próximo à sede do município de Campos Sales, no Ceará. Uma curiosidade: o escritor José de Alencar (1829-1877) era filho de José Martiniano e neto de Bárbara de Alencar.
Uma autêntica chefe de Estado
Dos sete perfis apresentados em Independência do Brasil — As Mulheres que Estavam Lá, o mais famoso deles é o da Maria Leopoldina da Áustria. Nascida em 22 de janeiro de 1797, seu nome completo era Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena.
“Estava completando 20 anos quando aceitou se casar com Dom Pedro e se mudar para um país distante e completamente diferente. No início do século 19, Viena e Rio de Janeiro não poderiam ser mais díspares”, observa a jornalista Virgínia Siqueira Starling. “Leopoldina estava empolgadíssima com seu casamento: não só representava a concretização de um dever público como também marcava sua passagem para a vida adulta”.
No início, Leopoldina até levou uma vida feliz ao lado do príncipe regente, mas, em pouco tempo, passou a sofrer com suas infidelidades conjugais. A futura imperatriz teve papel decisivo na separação entre Brasil e Portugal. Na manhã do dia 2 de setembro de 1822, assinou o decreto da Independência. Em seguida, escreveu uma carta a Dom Pedro 1º, entregue em mãos por Paulo Bregaro, o carteiro oficial da família real, às margens do Ipiranga, cinco dias depois. A correspondência o aconselhava a romper com Portugal, que ameaçava rebaixar o Brasil de reino para colônia. “O pomo está maduro. Colhei-o já. Senão apodrece”, aconselhou a princesa.
“Além de determinante na permanência de Dom Pedro no Brasil, Leopoldina era considerada uma excelente chefe de Estado. Muito de sua atuação é resultado da educação que recebeu desde criança. Proveniente de uma família rica e influente da Europa, os Habsburgo, serviu de referência intelectual e política até para Dom Pedro”, explica a historiadora Giovanna Trevelin. “Na carta que escreveu para Dom Pedro, Leopoldina o incentiva a concluir o processo. A Independência já estava basicamente decidida, só precisava ser proclamada”.
Pesquisadora do Grupo Nina Simone, um grupo de Estudos Interdisciplinares de Gênero da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Giovanna relata a existência de um movimento nascido na cidade de Saubara, a 110 km de Salvador: as Caretas do Mingau. “Mulheres se vestiam de branco e, com panelas de mingau na cabeça, saíam às ruas para assustar os portugueses. Quando eles fugiam apavorados, elas levavam armas e mantimentos para seus filhos e maridos, que lutavam contra as tropas”, revela a historiadora.
Indignação em forma de panfleto
O menos conhecido dos sete perfis é o de Urânia Vanério. A filha única de um casal de portugueses nasceu em 14 de dezembro de 1811, em Salvador (BA). Ainda na infância, foi educada pela própria mãe, Samoa Angélica Vanério, que lhe ensinou, entre outros idiomas, inglês, francês e italiano.
Urânia estava na janela de casa, provavelmente nos arredores da Praça da Piedade, em Salvador, quando, no dia 19 de fevereiro de 1822, assistiu à execução da abadessa sóror Joana Angélica de Jesus (1761-1822) a golpes de baioneta. A religiosa tentava impedir que tropas portuguesas invadissem o Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Eles acreditavam que soldados baianos estivessem escondidos no claustro. “Para trás, bandidos! Respeitai a casa de Deus! Só entrarão passando por cima do meu cadáver!”, teriam sido suas últimas palavras.
Indignada, Urânia, de apenas 10 anos, escreveu Lamentos de uma Baiana. Os versos inflamados denunciavam as atrocidades cometidas pelas tropas portuguesas. “Justos Céus, como é possível / Ficar impune a maldade / De monstros, que não perdoam / Nem mesmo o sexo, ou a idade…”, dizia o panfleto.
“Nos dias de hoje, Urânia seria considerada uma menina. Mas, naquele tempo, já era vista como uma moça. Em meados do século 19, elas se casavam entre os 13 e os 15 anos”, contextualiza a historiadora Patrícia Valim, do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Chama a atenção por ser uma menina que, aos 10 anos, se sentiu estimulada a participar do debate político por meio do engajamento de suas ideias”.
Em 1824, Urânia Vanério passou a trabalhar, ao lado dos pais, no antigo colégio da família e, dois anos depois, traduziu, a partir do francês, Triunfo e o Caráter do Patriotismo, escrito por M. de Florian, pseudônimo de Louis-Pierre Claris de Florian (1755-1794). Tudo indica que, aos 15 anos, Urânia Vanério se tornou a primeira tradutora do país, uma década antes de Nísia Floresta (1810-1885).
No dia 1º de março de 1827, Urânia se casou com Felisberto Gomes de Argollo Ferrão, filho de uma das famílias mais ricas e tradicionais de Salvador. O casal teve 13 filhos. Desses, dois nasceram mortos. Vítima de uma infecção na hora do parto de seu último filho, Urânia morreu em 3 de dezembro de 1849, aos 38 anos.
“Heroínas como Maria Felipa, Hipólita Jacinta e Bárbara de Alencar são invisibilizadas pela história hegemônica porque simbolizam ideias poderosas e, para nossa sociedade machista e racista, perigosas. Elas enfrentavam proibições à participação feminina na cena pública, bradavam seus ideais de liberdade e desafiavam as repetidas tentativas de apagamento de seus nomes”, afirma a jornalista Virginia Starling.
“Para resgatar essas mulheres do esquecimento e impedi-las de se perderem para sempre, é preciso continuar repetindo seus nomes e contando as suas histórias. Só assim a História do nosso país será mais rica e diversa”.