Com raros representantes no Congresso ao longo da história, os povos indígenas do Brasil deram um salto neste ano segundo Rafael Neves, do UOL, e elegeram cinco candidatos, sendo quatro mulheres, para a Câmara dos Deputados. O número inédito, no entanto, não significa unidade: enquanto três das eleitas pertencem a partidos de esquerda, uma é do PL, legenda do presidente Jair Bolsonaro.
Duas das novas deputadas, Sônia Guajajara (PSOL-SP) e Célia Xakriabá (PSOL-MG), integram uma articulação nacional para formar a “bancada do cocar”, voltada à defesa dos povos originários. Outra eleita, Juliana Cardoso (PT-MG), é aliada do movimento, mas construiu a carreira política na periferia de São Paulo. Já Silvia Waiãpi (PL-AP) é militar, bolsonarista e contrária às pautas progressistas.
Questionadas pelo UOL Notícias, as novas indígenas na Câmara não creem que seja possível dialogar com o lado oposto. Enquanto as representantes do PSOL e do PT veem no atual governo uma ameaça à existência dos povos tradicionais e do meio ambiente, a eleita pelo PL endossa os discursos de Bolsonaro sobre o tema.
“É impossível ter diálogo com quem defende o Bolsonaro. O fato de uma deputada ter origem indígena não quer dizer que defenda as pautas coletivas dos povos”, afirma Sônia Guajajara, que foi candidata à vice-presidência da República em 2018. Segundo ela, o movimento está unido pela demarcação de territórios e contra a abertura destas áreas para atividades como o garimpo.
Silvia Waiãpi, por sua vez, faz coro ao discurso de Bolsonaro e das Forças Armadas de que entidades como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que se opõem ao governo, defendem interesses estrangeiros e atrapalham o desenvolvimento econômico do país.
“Eu não defendo nenhuma iniciativa que contribua para a instabilidade política da minha nação, ou que coloque em risco a soberania nacional. As minhas experiências me conduzem para um tipo de pensamento, que defende a soberania do país”, afirma.
Quantos indígenas disputaram as eleições? O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) registrou neste ano, para todos os cargos em disputa, um total de 186 candidatos que se identificaram indígenas. Foi um recorde desde a adoção da declaração por cor/raça, em 2014, quando 85 nomes haviam entrado nessa categoria.
O deputado federal Paulo Guedes (PT-MG), que conquistou um novo mandato, também declarou origem indígena. A lista incluiu ainda nomes como o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), recém-eleito senador.
A Apib, que congrega associações indígenas regionais de todo o país, apoiou 30 candidaturas para os cargos de deputado federal ou estadual. Uma delas, Joenia Wapichana (Rede-RR), se tornou a primeira mulher indígena eleita deputada federal em 2018, mas não conseguiu repetir o feito esse ano.
Das quatro eleitas em 2022, três estarão em minoria na Câmara: os partidos alinhados ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terão, somados, 135 deputados, menos de um terço da Casa. Mesmo que o petista vença Bolsonaro em 30 de outubro, elas estarão em número desfavorável nas votações.
Silvia, por sua vez, está no PL, que terá a maior bancada nas duas casas do Congresso. A amapaense foi eleita pela “liga da lealdade”, uma frente de 22 candidatos da sigla, que usaram o mesmo número de urna em estados diferentes. O grupo, articulado pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), teve como pré-requisito a fidelidade a Bolsonaro.
Célia Xakriabá (PSOL-MG)
Quem é Célia Xakriabá? Célia foi criada na terra indígena Xakriabá, onde moram cerca de 8 mil indígenas do povo de mesmo nome. Situada no norte de Minas Gerais, a área foi reconhecida em 1987 após décadas de luta, que culminaram com o assassinato de três lideranças em fevereiro daquele ano. Foi lá que Célia nasceu, dois anos depois.
“O povo Xakriabá teve a identidade muito questionada, porque o impacto da colonização é antigo e as pessoas não associam Minas Gerais a povos indígenas”, explica ela. “Durante a campanha, estive no território do povo Maxakali, que é o segundo maior de Minas e foi quase exterminado na década de 1940. É preciso enfatizar que lugar de indígena são todos os lugares”, defende Célia.
Célia é mestra em desenvolvimento sustentável pela UNB (Universidade de Brasília) e doutoranda em antropologia pela UFMG. Conhecida por apresentar o podcast Papo de Parente, da Globoplay, ela foi uma das principais apostas do PSOL em Minas e obteve 101.154 votos.
Juliana Cardoso (PT-SP)
Quem é Juliana Cardoso? Vereadora de São Paulo em seu terceiro mandato, Juliana Cardoso construiu sua carreira política em Sapopemba, bairro da zona leste da capital, onde nasceu e cresceu. A herança indígena vem pelo lado do pai, membro do povo Terena e que migrou de Nioaque (MS) para São Paulo na década de 1960.
Sua militância política, que a levou à eleição para a Câmara Municipal aos 28 anos, foi centrada especialmente na periferia de São Paulo. Para ela, a luta de povos indígenas e de outros grupos sociais tem pontos em comum.
“Eu tenho uma atuação ampla de defesa de políticas públicas. Para a classe trabalhadora, para as mulheres, para a população negra e o povo indígena. Se o indígena não tem a saúde funcionando, é porque o povo não tem saúde. Se não tem direitos, é o povo que não tem”, diz.
Silvia Waiãpi (PL-AP)
Quem é Silvia Waiãpi? Silvia nasceu em uma aldeia na terra indígena Waiãpi, no oeste do Amapá, onde viveu até os seis anos. Foi para a capital Macapá e, aos 14 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de estudo. Na capital fluminense, onde chegou a morar na rua, ganhou uma bolsa de estudos como atleta e se formou em fisioterapia.
Mais tarde, já com três filhos, passou em um concurso das Forças Armadas e foi subindo degraus até se tornar chefe de medicina física e reabilitação do Hospital Central do Exército, no Rio. Ela conta que foi nesse local que conheceu o então deputado Bolsonaro. Em 2018, partiipou da equipe de transição para o novo governo e trabalhou no Ministério da Saúde.
Waiãpi se diz favorável a pautas como o marco temporal das terras indígenas, que nega aos povos o direito de reivindicar terras que não ocupavam mais à época da Constituição de 1988. “O que aconteceu em 1500 acabou, passou, eu não vivo mais em 1500. Eu vivo em 2022”, diz.
Na visão dela, as terras indígenas devem estar mais abertas para obras de infraestrutura, como estradas, e a atividades como mineração e agricultura em larga escala.
“Eu defendo que todos tenham a liberdade de escolher o que é melhor para si. Se os povos acharem que precisam se desenvolver economicamente, para possuírem a mesma tecnologia que a sociedade urbana, sim, eles terão esse direito. Agora, se eles quiserem viver isolados, viverão isolados”, sustenta.
Sonia Guajajara (PSOL-SP)
Quem é Sônia Guajajara? Sônia é do povo Guajajara, que vive na terra indígena Araribóia, no estado do Maranhão. Há mais de 10 anos, tem ocupado espaços em eventos internacionais, inclusive da ONU, para denunciar ameaças ao meio ambiente e aos povos indígenas do Brasil.
Eleita por São Paulo, teve uma campanha focada especialmente na capital e conquistou 156.966 votos, o maior apoio nas urnas entre as quatro eleitas. Para ela, a condição de minoria que os partidos de esquerda terão na Câmara exigirá que a sociedade civil pressione o Congresso para impulsionar as pautas indígenas.
“A sociedade também tem que se envolver nesse campo do poder legislativo. Não adianta só eleger e depois não dar um respaldo para a nossa atuação”, afirma.
Guajajara diz que um dos eixos de seu trabalho na Câmara será a pauta climática, que a aproximou de organismos internacionais. Ao serem eleitas, ela e Célia Xakriabá foram parabenizadas pelo ator Leonardo Di Caprio, que já foi interpelado por Bolsonaro no Twitter ao falar do desmatamento na Amazônia.