A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) precisa ajudar a “reconstituir um tecido social esgarçado” após uma polarização que rachou comunidades, diz dom Jaime Spengler em entrevista a Anna Virginia Balloussier, da Folha de São Paulo.
O arcebispo de Porto Alegre tomou posse na semana passada como novo presidente da mais representativa entidade católica do país. Herdou com o cargo a missão de conduzir o alto clero por uma cena social turbulenta.
Por um lado, a cúpula dos bispos enfrenta nos últimos anos resistência de núcleos católicos alinhados ao bolsonarismo. A defesa de causas como vacinação e meio ambiente lhe rendem o rótulo de esquerda. Prefere falar no que tem como “centro, o Evangelho”.
Por outro, setores progressistas questionam os bispos por posições tidas como conservadoras do Vaticano. À Folha dom Jaime falou sobre presença feminina na Igreja (“o que seria de nós sem vocês?”) e sobre o que chamou de “chaga” do racismo. Comentava, então, a eleição de uma diretoria toda branca na CNBB. “A natureza que me fez assim.”
O sr. fala em “diálogo” e “oração” para encarar esta nova missão na CNBB. Qual vê como maior desafio em tempos tão polarizados? Em primeiríssimo lugar, é anunciar o Evangelho de Jesus. A segunda exigência grande é colaborar num processo de reconciliação do nosso Brasil. Precisamos reconstituir o tecido social, que está muito esgarçado. Temos comunidades divididas.
Vê a Igreja Católica dividida? Mensagem recente da CNBB fala em “criminosa tragédia ocorrida com o povo yanomami”, “importância da vacinação” e “modelo econômico cruel”. Grupos bolsonaristas têm tentado rotular a entidade como “de esquerda” por posicionamentos assim. A Igreja não está dividida, estamos muito unidos. O que talvez chama atenção: somos seres políticos por natureza e temos nossas posições pessoais. E aí alguns as expressam de forma mais alargada, digamos assim. As leituras se pautam através desse modo de se posicionar. Mas não podemos jamais nos calar diante das situações em que a vida não é respeitada, independentemente de quem esteja no poder. Não seria digno de um discípulo de Jesus.
Concepções como esquerda e direita valem para a Igreja? Nós temos como centro o Evangelho. É o que nos pauta. A nota talvez tenha causado desconforto em alguns setores. Algo muito bonito que está no Evangelho de Mateus, mas que é extremamente desafiador: lá diz que seremos avaliados diante de situações muito simples. Estava com fome, me destes de comer. Tinha sede, me destes de beber. Não podemos jamais perder isso de vista.
O sr. certa vez falou sobre a indiferença religiosa. Uma ameaça ao catolicismo até maior do que a expansão evangélica. Por que aumenta tanto o número de pessoas sem qualquer religião? Aqui você toca numa questão muito sensível. Realmente acho que o segmento que mais cresce hoje são os indiferentes e aqueles que se dizem agnósticos. Talvez haja um certo desencanto, de alguns, com a forma como a mensagem é transmitida. Há ainda situações que podem ser contratestemunho, e isso traz o descrédito.
Uma dessas situações é a questão do abuso contra fiéis, sobretudo menores de idade. É uma realidade que faz parte do convívio humano. As notícias que emergiram trouxeram situações vergonhosas. Diminuem aquilo que se espera de um ministro do Evangelho. É muito oportuna a iniciativa do Santo Padre de trazer de forma explícita essa realidade.
O sr. disse, em 2022, que quem divulga mentiras não é digno de assumir cargo público. A fala foi entendida por grupos católicos bolsonaristas como recado a Jair Bolsonaro. Foi? Não colocaria aquela minha fala dirigida objetivamente a uma pessoa, mas a um contexto social que estávamos vivendo. E eu a repetiria no momento atual também, viu? É algo que está aí no cotidiano. A verdade abre horizontes. A mentira fecha.
O Congresso discute agora o PL das Fake News, que enfrenta forte oposição de religiosos, inclusive da Frente Parlamentar Católica. O que acha dele? Somos contrários à divulgação de falsas notícias. Agora, não tenho condições de aqui no momento fazer uma avaliação do projeto em si. Realmente não o li nas suas entrelinhas.
O sr. disse em 2018 à rádio Vaticano, ao comentar o julgamento de Lula na segunda instância, que “a justiça deveria ser feita”. Depois de tudo o que aconteceu com o agora presidente, acha que a justiça prevaleceu? Essa é uma bela de uma questão que você me traz. Confesso que fico me perguntando como que num determinado momento existiam tantos elementos que levavam necessariamente à condenação deste ou daquele personagem, e depois de dois ou três anos simplesmente se diz que aqueles elementos não foram suficientemente avaliados, e aquela condenação de repente não foi justa. Não sei se me explico. Essa espécie de contradição jurídica é algo que também nos preocupa, sim. Porque a justiça, claro, precisa ser feita. Agora, não podemos nos deixar levar pelo calor do momento. Aliás, você que é jornalista pode até me ajudar, porque o meio jurídico não é meu âmbito.
No caso de Lula, um dos pontos postos em xeque foi a imparcialidade do então juiz Sergio Moro. Esse tipo de situação causa estranheza, né?
Para o sr., houve casuísmo político, seja na revogação de penas da Operação Lava Jato, seja na condenação? Essa também é uma boa pergunta. Não saberia responder. Mas digo que isso causa uma dúvida social na autoridade jurídica, e isso traz uma insegurança. Não é bom para nós.
Carta assinada por um padre e um frade acusa a CNBB de perpetuar o “pacto da branquitude” ao supostamente ignorar candidatos negros para postos da direção. Certamente a sociedade tem uma dívida com os povos originários e também com os afrodescendentes. Toda expressão de discriminação precisa encontrar caminhos para a superação. É uma chaga que marca nossa sociedade. Sobre a eleição, a assembleia [da CNBB] é soberana, escolhe seus representantes através do voto secreto. A verdade é que, sim, nós, os quatro membros da presidência, temos uma característica. Óbvio, olha aqui meu cabelo, minha pele. A natureza que me fez assim. Sou brasileiro, faço parte desta nação e com muito orgulho, viu? Tenho orgulho da minha origem sem diminuir jamais outras expressões.
À frente das 12 comissões que constituem a entidade, temos dois presidentes afrodescendentes. Temos que reconhecer que a presença no seio do clero ainda é pequena por fatores também históricos. No passado existia uma resistência. E a questão da vocação não é simplesmente expressão de uma decisão pessoal. É graça de Deus. É Ele quem chama.
O papa decidiu que as mulheres poderão votar pela primeira vez num sínodo. Acredita que as mulheres devem ganhar espaço no clero? É uma questão em debate. Há sinais de que no passado, sobretudo na origem da Igreja, existia, sim, um diaconato feminino. Precisamos aprofundar os estudos. Mulheres sempre tiveram lugar de destaque na promoção da fé. As testemunhas primeiras da ressurreição foram elas. Diria até brincando, já que estou aqui conversando com uma mulher: o que seria de nós sem vocês? Essa participação do feminino da vida ordinária da Igreja precisa ser promovida. Oxalá possamos juntos ampliar esses espaços.
O papa prega respeito à comunidade LGBTQIA+, mas defende a doutrina que enquadra a homossexualidade como pecado. Também já falou em “colonização ideológica” na educação sexual em escolas. Como a CNBB vai tratar o tema? Demorou para você trazer essa questão [ri]. Veja, parto de um princípio muito simples: são pessoas humanas, e merecem nosso respeito. O próprio Evangelho diz que há pessoas que foram feitas assim. Como ser, junto a essas comunidades, uma presença evangelizadora capaz de promover uma palavra de fé sem trair aquilo que para nós é importante? Temos que ir ao encontro dessas pessoas ajudando, se possível, a pautar a própria vida de acordo com aquilo que são os critérios do Evangelho.
Isso significaria o que exatamente? Querer que um gay deixe de sê-lo, por exemplo? Como também o hétero precisa manter um comportamento ético a partir daquilo em que acreditamos.
Dom Ricardo Hoepers, eleito secretário-geral da CNBB, defende o Estatuto do Nascituro, que prevê retirar o aborto legal em casos de estupro. A entidade defende a revisão de guaridas legais ao procedimento? Precisamos de espaços amplos para debate. Como Igreja, temos posição consolidada. Não podemos não defender a integridade da vida desde a concepção. Isso, para nós, é um princípio basilar. É claro que existem essas situações que você traz: violência, abusos também de menores. Situações muito delicadas que requerem consenso. Tem uma expressão de dom Helder Câmara: quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes.
RAIO-X
Dom Jaime Spengler, 62 anos
Catarinense, entrou numa ordem franciscana 41 anos atrás. Cursou filosofia e teologia na juventude e, mais tarde, fez doutorado em filosofia na Pontifícia Universidade Antonianum, em Roma. Em 2013, papa Francisco o nomeou arcebispo de Porto Alegre. Seis anos depois, virou vice-presidente da CNBB e, em abril, foi eleito líder da entidade até 2027.