O confronto na linha de frente pode ter sido interrompido, mas a guerra segue na Ucrânia. Em Bakhmut, uma cidade que Moscou vê como chave para obter o controle de toda a área de Donbass Oriental, centenas de soldados são mortos e feridos todos os dias, de acordo com analistas dos EUA.
E o impasse continua.
Essa é a realidade na Ucrânia, quase um ano depois que a Rússia invadiu o país em 24 de fevereiro de 2022. Muitos “observadores” experientes da política russa falharam em prever o conflito e acreditaram que Vladimir Putin estava apenas estacionando suas tropas na fronteira com a Ucrânia para impedir a expansão da UE e da Otan em sua esfera de influência, num show de “diplomacia heavy metal”.
Dado o fracasso em prever a guerra, há alguma chance de antecipar como ela pode se desenvolver?
Até agora, o conflito gerou muitas “surpresas” militares, diplomáticas e estratégicas. Por um lado, Moscou foi surpreendida pela combatividade das forças ucranianas e o apoio da UE e dos Estados Unidos a Kiev.
Por outro lado, as chancelarias ocidentais também tiveram que lidar com canais diplomáticos bloqueados nas Nações Unidas e um apoio comedido à Rússia pela China, Índia e vários países africanos.
Apesar da série de sanções ocidentais implementadas com o objetivo de transformar a Rússia em um pária internacional, Moscou continua a atuar com desenvoltura. E a gigante onda de migração ucraniana para a Europa pegou muitas capitais ocidentais de surpresa.
Prevemos que o conflito pode se desenrolar de três maneiras.
Cenário 1: A Rússia sofre um grande revés
No primeiro cenário calculado, a Rússia lança uma nova ofensiva em Kiev, bem como em Donbass e na província de Kherson.
Esses ataques falham, no entanto. A Rússia perde muitos homens e uma grande parte das quatro províncias anexadas ilegalmente em setembro de 2022. Moscou descobre que não atingiu seu objetivo estratégico inicial de mudança de regime em Kiev. A Ucrânia retoma as fortalezas russas e avança para a Crimeia.
Vários fatores contribuem para essa derrota russa. Internamente, torna-se mais desafiador mobilizar os homens, com cidadãos elegíveis fugindo do país em massa. O comando sofre para formar novos recrutas e a base tecnológica e industrial de defesa (DTIB) dá sinais de esgotamento. As sanções ocidentais continuam duras, enquanto uma crise se espalha entre os dirigentes e o governo.
Na Ucrânia, o sucesso desse cenário depende de vários fatores. Por um lado, o país resistiu ao desgaste da guerra e desfruta de estabilidade política antes das eleições parlamentares de outono de 2023. A ajuda militar europeia e americana chega constantemente, e o Exército ucraniano consegue manter várias frentes simultaneamente.
Em dezembro de 2022, o chefe de gabinete Valeri Zaloujny converteu esse sucesso em números: 300 tanques, 600-700 veículos de combate de infantaria e 500 obuses.
No cenário internacional, essa hipótese pressupõe que a Rússia perca a posição de força que lhe foi conferida em 2022 pelo aumento dos preços da energia. Isso exigiria que seus compradores encontrassem fontes alternativas de abastecimento.
A longo prazo, esse cenário abriria caminho para um cessar-fogo e, eventualmente, para negociações de paz genuínas (que não seriam sinônimo de vitória russa). Para a Ucrânia, com vitória não há “negociações”; o país retornará às suas fronteiras originais, os russos serão processados por crimes de guerra e também pagarão pelos danos.
No entanto, se a derrota russa for severa, a desordem política interna pode paralisar a liderança e criar o caos em Moscou, privando o país da capacidade de realmente se engajar em negociações. A Rússia teria que considerar a guerra perdida para sempre, mantendo uma cadeia de comando eficaz. Duas questões difíceis de lidar seriam o destino da Crimeia e a adesão à Otan. Em suma, esse cenário se basearia nas contra-ofensivas ucranianas bem-sucedidas de agosto a novembro de 2022.
Cenário 2: A Rússia alcança um sucesso tangível
O cenário inverso enxerga uma série de vitórias militares para a Rússia a partir do final do inverno. O país retoma a maior parte da província de Kherson, ameaça Kiev diretamente da Bielorússia e avança em direção a Odessa. Esse resultado depende de várias condições – sendo a principal delas o esgotamento humano e material dos ucranianos.
Do lado russo, o Kremlin acerta em várias áreas onde falhou até recentemente. As tropas mobilizadas no outono de 2022 são efetivamente treinadas e implantadas taticamente. As cadeias de suprimentos se sustentam nas três principais frentes (norte, leste e sul). Aprendendo com a contra-ofensiva ucraniana, o exército russo colocou seus centros de logística fora do alcance do HIMARS, o míssil fabricado nos Estados Unidos.
Tais sucessos resultariam em uma clara vitória russa na Ucrânia, com anexações ilegais consolidadas no leste do país e um governo pró-Rússia. A Ucrânia não teria a unidade necessária para reconstruir o país.
Para a Ucrânia, esse pior cenário poderia se concretizar se vários desenvolvimentos ocorressem. Em primeiro lugar, as Forças Armadas estarem severamente desgastadas e enfrentarem problemas de abastecimento de armas. Também veríamos uma Presidência de Zelensky mais fraca, possivelmente sob pressão de um escândalo de peculato, de um “partido da paz” ou, ao contrário, de nacionalistas exigindo poder mais forte. O governo pode falhar em manter o apoio ocidental ou se cansar das interferências ocidentais.
Internacionalmente, esse cenário pressupõe a continuidade das exportações russas de energia para a Ásia e uma estratégia de preços por parte das potências do gás. Moscou exploraria ao máximo suas redes diplomáticas, desfrutando de forte apoio da China em face da influência americana.
Enquanto isso, a influência dos governos pró-ucranianos na Polônia e dos países do norte da Europa na União Européia diminuiria. Para que a tempestade fosse perfeita, um desenvolvimento internacional como uma crise em Taiwan absorveria a atenção dos EUA.
Cenário 3: Guerra prolongada
Um terceiro resultado desse conflito pode ser a incapacidade de ambos os protagonistas de obter vantagem sobre o outro por um período de vários anos.
Esse cenário pode ocorrer com a estabilização das principais linhas de frente, pois as batalhas continuam a irromper em localidades de importância secundária (cruzamentos de estradas, eclusas de rios, pontes). Moscou poderia, por exemplo, retomar a ofensiva em direção a Kiev com sucesso limitado e concentrar seus esforços na consolidação de Donbass.
Por outro lado, a Ucrânia poderia tentar aumentar sua vantagem de Kherson para o sul para ameaçar a Crimeia. Este cenário não exclui combates intensos e sucesso limitado de ambos os lados. Isso não mudaria o equilíbrio geral do conflito.
Vários fatores podem se combinar para provocar essa situação. A ajuda militar ocidental pode atingir um “platô” devido ao estado dos estoques e à natureza das armas. A combatividade ucraniana poderá manter-se sem produzir os efeitos espetaculares do final do verão de 2022 por causa de uma “curva de aprendizagem” do lado russo, especialmente na articulação entre os diferentes exércitos.
Do lado russo, isso pode ocorrer devido aos limites estruturais de sua ferramenta militar: rigidez tática, logística deficiente, frentes e cadeias de suprimentos esticadas, limites de recursos humanos, cultura de mentiras nas administrações públicas, etc.
Fatores exógenos também podem levar à decadência militar e diplomática. Nenhum dos lados está em posição de fazer com que sua própria população e aliados aceitem negociações com base no atual equilíbrio de poder militar. Para a Rússia, não houve sucesso claro; para Kiev, a integridade territorial ainda não foi restaurada.
Entrar em negociações seria uma admissão de fracasso para Vladimir Putin e o colocaria em risco. Para Volodymyr Zelensky, concordar com as negociações seria uma renúncia que o faria perder o amplo apoio de que atualmente desfruta tanto interna quanto externamente.
Neste cenário, a Ucrânia se tornaria em 2023 palco de um novo conflito não resolvido no espaço pós-soviético.
*Florent Parmentier é secretário-geral do Centre de Recherches Politiques de Sciences Po (CEVIPOF) e professor da Sciences Po. Cyrille Bret é especialista em geopolítica, também da Sciences Po.