Contrariando tendência global, exploração do produto avança no Brasil em meio a limbo jurídico. Mais de 60 países já proibiram o material devido aos riscos para a saúde. Recentemente, os Estados Unidos deram novos passos no banimento do amianto, que já ocorre em mais de 60 nações. Por sua vez, no Brasil, o tema se encontra em um limbo jurídico, já que a utilização do produto foi proibida, mas sua exportação prossegue – e avança.
Uma das razões é a guerra da Ucrânia, que fez com que países buscassem alternativas à Rússia, maior exportadora o mundo. Neste cenário, associações e especialistas afirmam que o amianto oferece riscos em toda a distribuição, e pressionam por um total banimento, enquanto os recursos recebidos pelos envios ao exterior seguem em alta e movimentam a economia da região exportadora.
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou a decisão de banir a extração, produção, uso e venda do amianto crisotila do Brasil, já que a substância foi considerada cancerígena. Neste contexto, a empresa belga Eternit, que é responsável pela empresa Sama, chegou a suspender as atividades na cidade de Minaçu. O munícipio no norte de Goiás conta com a mina de Cana Brava, de onde se origina a produção brasileira. É a terceira maior produção de amianto crisotila do mundo.
Por sua vez, em 2019, a Assembleia Legislativa de Goiás aprovou a lei nº 20.514, autorizando as atividades no estado com fins exclusivos para exportação, e as atividades foram retomadas. Em novembro de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) atendeu um pedido do Ministério Público Federal (MPF) e determinou a suspensão da exploração até que fosse avaliado se a legislação é ou não inconstitucional. Já em janeiro de 2023, o STF permitiu a continuidade da exploração até que o tema tenha uma resolução final por parte da Corte.
A fundadora da Associação Brasileira dos Expostos por Amianto (ABREA), Fernanda Giannasi, aponta que a questão atualmente saiu de pauta. “O tema não é visto como prioridade, e há uma situação muito negativa. O prazo nos preocupa, já que não se sabe quando o processo terá um término”, lamenta.
No meio da disputa judicial, a pequena Minaçu, com cerca de 30 mil habitantes, apresentou grande expansão na receita de seus envios do material ao exterior nos últimos anos. A alta foi acima de 55% entre 2021 (US$ 61,4 milhões) e 2022 (US$ 96,6 milhões), segundo dados da Comex. Em 2023, o valor seguiu em nível semelhante, com US$ 95,9 milhões.
“A guerra da Ucrânia levou muitos países a garantirem o abastecimento de amianto. Quando houve restrições às exportações da Rússia, muitos buscaram alternativas, como no caso do Brasil”, afirma Giannasi, que é presença constante em fóruns internacionais sobre o amianto.
“A cidade vai acabar”
O antropólogo Arthur Pires Amaral morou por dez meses em Minaçu entre 2016 e 2017 visando escrever sua tese de doutorado intitulada Com o peito cheio de pó, defendida na Universidade Federal de Goiás (UFG). O estudo se debruça sobre o amianto na cidade. Em 2017, seguindo a proibição pelo STF, Pires lembra que o clima era de grande pessimismo devido às perspectivas de fim da exploração do minério.
“Os moradores diziam que a cidade ia acabar”, conta. O antropólogo lembra que eram comuns as demissões em empregos ligados à exploração de amianto, incluindo de engenheiros.
Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em 2017, Minaçu registrou 222 de demissões no setor extrativo de minerais, frente a apenas 20 admissões, com um saldo negativo de 202 empregos. No entanto, com o boom das exportações, o cenário se inverteu. Em 2023, o setor contratou 404 pessoas, contando com 166 demissões, em um balanço positivo de 238 vagas. A atividade lidera as contratações na cidade, com a indústria de transformação em segundo lugar, com 238 admissões.
Os volumes das vendas de amianto também seguiram a tendência de recuperação. Em 2018, segundo balanço anual da Eternit, ano que a empresa aponta que houve forte impacto no mercado interno pela proibição, 119,1 mil toneladas foram entregues pela empresa. No ano de 2023, as vendas totalizaram 190 mil toneladas, uma alta de quase 60%.
Sem limite de tolerância
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as fibras de amianto do tipo crisotila causam danos ao pulmão e são cancerígenas, não existindo limites de tolerância para exposição. Entre 1996 e 2017, a Fundacentro apontou mais de 3.000 mortes ligadas ao amianto no Brasil.
Giannasi aponta que todos incluídos na cadeia da exploração seguem expostos ao material. Desde a retirada do amianto das minas, passando pelo transporte terrestre e portuário, existem riscos, indica. Nos casos de acidentes com os caminhões transportando o material, não somente o próprio motorista como todos os presentes na pista podem sofrer a contaminação, lembra Giannasi.
Em março, os Estados Unidos anunciaram a proibição da única forma da forma crisotila, décadas depois de a maioria dos países desenvolvidos ter começado a eliminar gradualmente a matéria-prima.
A permissão nos Estados Unidos era um dos argumentos utilizados por defensores do amianto, como o Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC), para manter a exploração do produto no Brasil. Procurado, o IBC não atendeu ao pedido de resposta.
Sama é “mãe de Minaçu”
Por sua vez, na visão de Pires, as notícias internacionais não alteram a percepção sobre o tema em Minaçu. “O banimento na União Europeia (UE) não teve grande impacto”, aponta. O antropólogo conta que a atividade no munícipio gira no entorno do amianto, que é inclusive exaltado em monumentos pela cidade.
“Muitas pessoas me diziam que a Sama é a ‘mãe de Minaçu’”, diz. A cidade começou a ser construída em volta da mina da Cana Brava, e a exploração atraiu uma série de trabalhadores em situações vulneráveis de diferentes estados do interior do Brasil. “Eram famílias que não tinham alternativas e receberam uma oportunidade pela Sama”, pontua.
Além dos trabalhos, o antropólogo destaca que a empresa costumava oferecer as principais atividades culturais de Minaçu e escolas para os filhos dos empregados. “O amianto dominou não apenas a economia, mas também a cultura de Minaçu”, Pires resume. “Nunca houve a construção de uma alternativa econômica durante estes 50 anos de exploração. Não se pensava sequer na possibilidade da mineração de amianto se exaurir”, afirma.
Neste cenário, os riscos envolvendo o material e os questionamentos à exploração ficaram de lado. “O desemprego aparece como um risco mais proeminente do que aqueles associados ao material. Há certo ocultamento dos adoecimentos”, conta Pires.
Além disso, segundo o antropólogo, há uma grande culpabilização individual das vítimas. “Todos sabem de alguém que morreu após trabalhar na Sama. Mas falam que a pessoa adoeceu por não usar os equipamentos de segurança corretamente, ou então culpam hábitos como fumar e consumir bebidas alcoólicas”, afirma.
Problema exportado à Índia
Na Índia, o uso do amianto não é restrito, mas a mineração sim, o que impulsiona o país como o maior importador global, com mais de 40% das encomendas. Até 2021, o maior fornecedor era a Rússia, posto ocupado pelo Brasil a partir de 2022. Em 2023, 84,6% dos envios de amianto brasileiro foram para o país.
“Promovido como um material barato, o uso do amianto está generalizado em toda a Índia”, afirma Pooja Gupta, que foi coordenadora da Rede de Banimento do Amianto na Índia (BANI). Segundo ela, as associações veem o aumento da produção no Brasil com preocupação, pois pode levar a níveis mais elevados de exportação para o país.
“O movimento pode ser visto como uma ameaça à saúde pública na Índia, pois pode perpetuar o uso de produtos que contêm amianto e aumentar o risco de doenças relacionadas ao material entre os trabalhadores e a população em geral”, avalia. “Houve uma redução na importação de amianto brasileiro em 2018 e esta foi uma notícia positiva. Mas, infelizmente, com a retomada da produção, os trabalhadores indianos estarão novamente sujeitos a mortes devido ao amianto extraído no Brasil”, aponta.
“O aumento da produção de fibras minerais de amianto no Brasil para exportar para países como a Índia é um exercício de duplo padrão”, afirma Gopal Krishna, um dos fundadores da BANI. Em 2023, durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Índia, durante a cúpula do G20, a BANI exigiu a paralisação da exportação de amianto ao país, já que “a biologia humana é a mesma em todos os lugares”.